Entrevista: Vincent Bevins

Tradução: Letícia Bergamini

 

A derrota dos movimentos socialistas e progressistas, do Brasil à Indonésia, foi resultado de uma campanha anticomunista global organizada pelos EUA e apoiada por outras potências ocidentais e elites locais. Descobrimos onde surgiu o “método” para esmagar as esperanças e os sonhos da esquerda nos países emergentes – para sempre.

 

Com os impactos econômicos e sociais da pandemia da COVID-19, a ordem global pós-Guerra Fria foi abalada estruturalmente. As grandes desigualdades foram reveladas não apenas dentro das nações, mas também entre elas.

Durante uma geração moldada pela derrota do comunismo realmente existente e do nacionalismo do Terceiro Mundo, uma de nossas dificuldades sempre foi acreditar que outro mundo era realmente possível. Nossos antecessores não tiveram esse problema. Eles acreditavam que não apenas uma sociedade mais justa era possível, como estava ao nosso alcance.

Mas não foram apenas as experiências econômicas fracassadas que acabaram com esses sonhos. A derrota dos movimentos socialistas e reformistas, do Brasil à Indonésia, foi o resultado de uma campanha anticomunista global organizada, liderada pelos EUA e apoiada por outras potências ocidentais e elites locais. E foi terrivelmente violento.

O primeiro livro do jornalista Vincent Bevins, The Jakarta Method: Washington’s Anticommunist Crusade and the Mass Murder Program That Shaped Our World é uma história perspicaz e original dessa violência infligida pelos EUA e seus aliados durante a Guerra Fria. Bevins argumenta que nosso mundo hoje é construído pela violência anticomunista.

O método Jakarta (The Jarkarta Method) vai além das conhecidas atrocidades da Guerra Fria, é um envolvimento empático com as esperanças e os sonhos de uma geração que viveu esses acontecimentos. O editor colaborador da Jacobin, Benjamin Fogel, falou com Bevins sobre como o anticomunismo transformou nosso mundo no planeta extremamente desigual em que vivemos hoje.

 

O que o inspirou a escrever este livro?

 

VB

Cheguei em Jacarta, na Indonésia, em 2017, para cobrir todo o Sudeste Asiático para o Washington Post. Em primeiro lugar, ficou muito claro, de imediato, que os fantasmas do massacre de 1965 estavam à espreita onde quer que eu olhasse. Ele reformulou absolutamente tudo, mas nunca se falou abertamente sobre. E, segundo, quando eu contava às pessoas de fora da região sobre o que aconteceu, elas reagiam invariavelmente com choque e interesse. Os assassinatos em massa na Indonésia foram talvez a maior “vitória” para o Ocidente em toda a Guerra Fria. Foi, de fato, muito mais importante para Washington vencer aqui do que no Vietnã. Os Estados Unidos ajudaram no massacre intencional de aproximadamente 1 milhão de pessoas inocentes. E, terceiro, descobri que havia muitas conexões inesperadas com países como o Brasil, Chile e a Guatemala – que conheço bem e onde realmente poderia acrescentar algo. Então eu senti que não tinha escolha.

 

Como exatamente o conflito na Indonésia foi mais importante do que a Guerra do Vietnã?

 

VB

A Indonésia é o quarto maior país do mundo em população. Dentro da “teoria do dominó”, era de longe o maior dominó – tinha quase três vezes mais pessoas que o Vietnã. No início dos anos 60, todos no establishment da política externa dos EUA reconheceram que a Indonésia era mais importante do que o Vietnã como uma questão de política externa, pois, Sukarno era um líder fundador do movimento do Terceiro Mundo. A Guerra do Vietnã dominou a política doméstica dos EUA por muitos anos, mas geopoliticamente não conseguiu absolutamente nada. A Indonésia de 1965-1966 mudou tudo.

 

O evento central do seu livro é uma campanha de extermínio em massa dirigida contra o Partido Comunista Indonésio (PKI), na época o maior partido comunista fora da China e da União Soviética. Como o partido teve tanto sucesso e foi visto como uma ameaça aos interesses dos EUA?

 

VB

O PKI era o partido comunista mais antigo da Ásia, fundado antes mesmo do Partido Comunista Chinês e, desde o início estava comprometido com a colaboração de forças “nacional-burguesas”. Eles eram revolucionários de duas etapas que só queriam fazer a transição para o socialismo no futuro, após o pleno desenvolvimento do capitalismo. Foi muito moderado em comparação com o que os falantes de inglês pensam quando ouvem hoje “comunista”.

Na China, a Terceira Internacional realmente instruiu Mao Tsé-Tung a colaborar com os nacionalistas, pois, Moscou queria que os chineses replicassem o sucesso que os comunistas indonésios tiveram ao trabalhar com grupos muçulmanos. Não funcionou tão bem para Mao, mas o PKI permaneceu mais ou menos nesse caminho durante toda a sua existência. Depois que Sukarno e as forças revolucionárias expulsaram os holandeses em 1949, o PKI se tornou parte de uma nova democracia multipartidária independente.

O presidente Sukarno, herói da independência do país, não era comunista. Mas ele era um anti-imperialista de esquerda, governando em coalizão com muitas forças diferentes. Os comunistas indonésios não tinham armas e nem sequer contemplavam a possibilidade de luta armada. Até as autoridades estadunidenses notaram, na época, que eles eram simplesmente uma organização muito bem administrada – tinham programas culturais muito populares, organizações camponesas, uma enorme base feminista e não sofriam de corrupção desenfreada como todo mundo. Eles obtiveram mais e mais votos, o que desagradou a Washington – então os EUA tentaram detê-los de duas maneiras, e ambas fracassaram.

Primeiro, eles começaram a injetar dinheiro em um partido muçulmano mais conservador. Então, em 1958, os pilotos da CIA bombardearam a Indonésia, matando civis, na tentativa de destruir o país. Naquele ano, a inteligência britânica observou que o PKI seria o primeiro colocado nas eleições. Mas, apesar dos protestos dos comunistas, não houve mais eleições e o PKI continuou apoiando Sukarno, pois no outro extremo do espectro político havia militares treinados e financiados pelos EUA aguardando nos bastidores.

Parte da história que você está contando aqui é sobre como uma geração sonhava com um mundo melhor. Você pode falar um pouco sobre o que inspirou essa geração e o significado desses sonhos hoje?

 

VB

Eu dediquei bastante tempo e esforço para tornar essa história real, com seres humanos reais e os altos e baixos de suas vidas reais, em vez de fazer apenas uma análise ou contagem de corpos. As pessoas que acabei conhecendo dirigiram o livro para mim e o mudaram totalmente.

E uma coisa que foi realmente inesperada foi o mundo que eles abriram para mim, apenas ao lembrar como eles pensavam que o futuro seria. Nasci na década de 1980 e, para minha geração, tudo parece tão óbvio que o mundo seria assim; que você teria um capitalismo amável em todos os lugares, exceto nos países negros e pobres, onde poderia-se comprar e vender pessoas e sua força de trabalho com dinheiro que recebemos por nascer no Primeiro Mundo.

Para a minha geração, parecia claro que o “comunismo” perderia e seria varrido da face da terra, e você teria que maximizar seu valor em uma economia que você sabe que é meio que uma besteira; que o país mais poderoso da Terra estaria sempre conduzindo guerras com vários países. Tudo isso parecia que tinha que acontecer.

E apenas falando com essas pessoas, passando meses ganhando sua confiança e entendendo como eles viam o mundo se desenrolar nas décadas de 1950 e 1960, ficou muito claro que isso não tinha que acontecer.

O que aconteceu na Indonésia em 1965 e o que levou a esses acontecimentos? Você também poderia nos dar uma ideia de quais atores estadunidenses estavam envolvidos e por quais razões?

 

VB

A versão curta é que os militares apoiados pelos EUA usaram uma rebelião como pretexto para lançar uma grotesca campanha de propaganda anticomunista, prender e assassinar aproximadamente 1 milhão de esquerdistas ou acusados de serem de esquerda e colocar outro 1 milhão em campos de concentração.

Mas a versão longa é: primeiro, John F. Kennedy é assassinado. Isso muda totalmente a abordagem dos EUA à Indonésia, e o ano de 1965 é provavelmente a consequência mais importante de sua morta. Lyndon Johnson tem muito menos tempo para as travessuras anti-imperialistas de Sukarno, por causa de um confronto com a Grã-Bretanha pela criação da Malásia. A CIA e o MI6, serviço de inteligência inglês, intensificaram suas atividades clandestinas e de propaganda, e muito disso é secreto até hoje. Liguei para a CIA e perguntei o que eles fizeram e por que isso ainda está em sigilo e adivinhe: eles não me disseram.

O que sabemos é que, em segredo, as autoridades ocidentais disseram repetidamente que a melhor coisa que poderia acontecer seria um “golpe comunista abortivo” que poderia ser usado como justificativa para esmagar o PKI. Muito misteriosamente, algo exatamente assim aconteceu. As várias teorias sobre o que realmente era a revolta poderiam preencher um emocionante podcast de cinquenta episódios, mas basta dizer que houve uma rebelião de oficiais do exército de baixo escalão, que alegaram que um grupo de generais estava planejando um golpe de direita. Seis desses generais acabaram mortos.

Logo depois disso, o general reacionário Suharto assumiu o controle de todo o país, fechou toda a mídia (exceto a dele) e os militares começaram a supervisionar assassinatos em massa. Foi dito aos cidadãos que matassem ou fossem mortos. Os EUA forneceram apoio material crítico, incentivaram os militares a matar mais pessoas e forneceram listas com nomes de pessoas a serem executadas. A esquerda não tinha ideia de que isso estava por vir. Muitos que conheci não tinham nenhuma concepção prévia de que ser “comunista” era até uma coisa ruim. O massacre sem desenfreado terminou no início de 1966, e as empresas norte-americanas se estabeleceram no país logo depois.

O outro grande evento do seu livro é o golpe militar de 1964 no Brasil, que implantou 21 anos de regime militar. Qual foi o significado do golpe e como ele se relaciona com os eventos de 1965 na Indonésia?

 

VB

O golpe brasileiro aconteceu primeiro, é claro. E para mim, a história da propaganda divulgada por Suharto em 1965 parece estranhamente familiar à lenda anticomunista que motivou as Forças Armadas brasileiras um ano antes. Mas de forma mais ampla, o que você tem aqui são dois países que passam pelo mesmo processo ao mesmo tempo e produzem o mesmo tipo de sociedade. Ambos os países têm golpes militares apoiados pelos EUA que criam estruturas sociais capitalistas autoritárias e anticomunistas, que na maioria das vezes permanecem em vigor até hoje.

As Forças Armadas dos dois países foram treinadas na mesma base nos EUA e tiveram muitas oportunidades de aprender umas com as outras; e certamente estavam estudando com os mesmos professores estadunidenses. Um personagem importante do livro, um homem incrível que tive muita sorte conhecer, me contou tudo sobre a maneira como esses homens viviam no Kansas nos anos 50.

Os golpes foram enormes vitórias para a direita global – afinal, são países enormes – e os regimes resultantes embarcaram em uma espécie de mini imperialismo anticomunista em suas respectivas regiões.

Então, no início dos anos 70, com o Brasil na fase mais brutal de sua ditadura e ajudando as Forças Armadas chilenas a preparar o terreno para o golpe no país, vemos atores de direita nos dois países buscando inspiração na Indonésia; isso é o nascimento do meme do terror “Jakarta”, que traço ao longo do livro, no mundo.

Meme de terror?

 

VB

Sim, a utilização e a reutilização de “Jacarta” em todo o mundo para indicar o assassinato em massa de esquerdistas. Pintado nas paredes, enviado em cartões postais, usado para nomear operações terroristas secretas e etc.

Como essas intervenções diferiram das intervenções anteriores da Guerra Fria, como as realizadas no Irã em 1953 e na Guatemala em 1954?

 

VB

Faço uma espécie de distinção entre a primeira fase das intervenções da Guerra Fria no Terceiro Mundo – o Irã, em 1953, e a Guatemala, em 1954, os melhores exemplos – e essas intervenções, mais silenciosas e muito mais bem-sucedidas, da década de 1960. No Irã, a CIA contratava homens fortes e artistas de circo para fazer protestos falsos. Na Guatemala, você tinha aviões lançando bombas sobre a capital e o governo negociando sua rendição diretamente com o embaixador dos EUA. Era óbvio que Washington estava orquestrando as coisas, mesmo que a imprensa não tenha dizia isso aos cidadãos estadunidenses.

Com a Indonésia e o Brasil foi diferente. Na Indonésia, em 1958, a CIA tentou reproduzir o sucesso do manual de instruções da Guatemala em 1954. Não funcionou. Eles tinham pilotos estadunidenses lançando bombas em ilhas tropicais e matando civis, mas foram pegos. Então eles mudaram para uma estratégia diferente: alinhar-se profundamente a um exército fortalecido – algo semelhante ao que vinha acontecendo entre o Brasil e os EUA desde a Segunda Guerra Mundial.

Então, quando houve os golpes em 1964 e 1965, os atores locais lideravam eventos em grande escala, mesmo que as autoridades estadunidenses estivessem envolvidas nos bastidores, constantemente informadas e dando sua aprovação e conselho, deixando claro para os brasileiros e indonésios o que eles devem ou não fazer. Para o cidadão médio na Indonésia e no Brasil, parecia que era um segmento de seu próprio país que havia tomado o poder. Até certo ponto, isso era verdade.

E acho que não é coincidência que os regimes estabelecidos no Brasil e na Indonésia tenham tido muito mais sucesso em criar um legado mais estável e duradouro do que os governos criados no Irã em 1953 e na Guatemala em 1954.

O que é exatamente o método Jacarta, então?

 

VB

O método Jacarta consiste em reunir e matar um grande número de militantes de esquerda desarmados a serviço do estabelecimento de um tipo específico de ordem social. Ao eliminar essas pessoas, essa oposição potencial, você abre caminho para o capitalismo autoritário em casa e para a criação de um ator geopolítico que se encaixa em um sistema crescente liderado pelos EUA.

A Indonésia, em 1965, sofreu na época a mais mortal consequência deste “método”, embora não tenha sido a primeira vez que ele fora implementado. Por causa de sua fama e importância, a direita nos países da América Latina começaram a usar o método “Jakarta” em seus programas de extermínio.

A razão pela qual eles fizeram isso, e a razão pela qual este é um momento tão chocante na história do século XX, é porque o método Jakarta funcionou. E a razão pela qual funcionou tão bem foi a postura do poder proeminente do mundo, os EUA. A direita global viu o que aconteceu na Indonésia e viu que Suharto foi rapidamente aceito na constelação de respeitados aliados dos EUA. A esquerda global também viu e reagiu de maneiras que viriam a ter consequências duradouras para os movimentos socialistas.

Mas o “Jakarta” foi efetivamente implementado na América do Sul e na América Central, bem como em partes da Ásia (embora não usassem o mesmo nome), e esses regimes acabaram construindo o mundo em que estamos hoje. A lista é imensa: Chile, Brasil, Guatemala e Argentina, para citar alguns. Os principais componentes de um novo sistema globalizado, especialmente no “mundo em desenvolvimento” – isto é, a grande maioria do planeta. Então acho que, em grande parte, vivemos em um mundo criado por massacres anticomunistas.

Eu acho que o que é mais notável nesses acontecimentos é que, com algumas exceções, os casos que ancoram seu livro – Brasil e Indonésia, juntamente com o exemplo posterior do Chile em 1973 – eram projetos reformistas e comunistas que buscavam mudanças através da democracia eleitoral em vez de meios revolucionários. Você acha que há lições aqui para a esquerda de hoje?

VB

Com toda certeza. De um modo geral, e especialmente no caso do Partido Comunista da Indonésia, foram os movimentos gradualistas e não violentos que foram mortos. A explicação simples é que não teria sido tão fácil matá-los se eles estivessem armados, ou mesmo esperando por isso. Mesmo nos países onde você teve violentos movimentos de guerrilha (como na América Central), a maior parte dos mortos geralmente não eram os fortes combatentes das colinas, mas os camponeses que foram pegos de surpresa quando os esquadrões da morte chegaram.

Passei um tempo em uma vila guatemalteca onde isso ocorreu, e é impossível comunicar as profundezas da depravação aqui, para não mencionar a injustiça ardente da vida que restou após o fim da violência. Comparado com a atual situação, me sinto até culpado por dizer isso, mas esse foi um livro emocionalmente difícil de escrever. O que encontrei foi realmente sufocante, me deixou totalmente desequilibrado e me fez questionar muitas coisas. Embora me certificasse de não tornar o livro violento ou horrível, estava nadando muito fundo em algumas coisas escuras e sanguinárias.

Talvez por esse motivo eu não seja a melhor pessoa de onde se possa extrair as lições. Eu definitivamente acho que há lições. Só acho que elas não são cem por cento claras. Elas exigem uma consideração cautelosa. Eu acho que, por exemplo, apoiadores entusiasmados da campanha de Bernie Sanders podem encontrar alguma ressonância para o momento atual. Mais diretamente, os leitores que vivem no “mundo em desenvolvimento” podem achar, imagino, que isso lança alguma luz sobre a situação contemporânea. E a história certamente nos diz muito sobre a natureza hegemônica dos EUA. O que eu realmente gostaria é que outras pessoas estudassem o livro inteiro e me digam quais são as lições.

Você argumenta no livro que a violência anticomunista destruiu o potencial de experimentos alternativos em desenvolvimento para o chamado Terceiro Mundo, levando à nossa atual desigualdade global. Você pode explicar o que isso significava, por exemplo, em Bandung ou na Nova Ordem Econômica Internacional, no sentido de que essas experiências econômicas terminaram com mais sangue do que em erros econômicos?

 

VB

Uma das coisas mais comoventes, talvez mais do que a violência, foi sentar-se com esses idosos e conversar por horas sobre como eles entendiam o mundo no início dos anos 1960.

O Terceiro Mundo – usado no sentido original totalmente otimista e triunfante – havia acabado de alcançar a independência do imperialismo europeu. Os povos das nações anteriormente colonizadas estavam se reunindo para ocupar seu lugar no cenário mundial. É claro que eles mudariam as regras da ordem global. É claro que eles alcançariam o Ocidente. É claro que eles avançariam em direção ao socialismo. Não eram apenas os militantes de esquerda que acreditaram nisso – na Indonésia, essa era basicamente a ideologia nacional e, em toda a Ásia, África e América Latina, parecia óbvio: “você se livra do colonialismo e agora é igual aos países ocidentais”. Eu podia ver seus olhos brilhando quando eles se lembram desse sonho.

Isso não aconteceu, é claro. E tento demonstrar neste livro que uma parte significativa da razão disso, um elemento constituinte da “globalização” que alcançamos, era um novo tipo de violência. E se você olhar para as pessoas que foram mortas simplesmente por suas crenças naquele futuro progressista – a feminista Gerakan Wanita na Indonésia, por exemplo – você descobre que elas representavam coisas que quase todo bom liberal no mundo de língua inglesa agora defende.

Um dos argumentos que você usa é que o anticomunismo é uma ideologia (ou mesmo uma religião) fundadora em países como Indonésia e Brasil. O que isso significa e como continua a moldar a política contemporânea? Você acha que isso também é verdade nos EUA?

 

VB

Bem, não é controverso que o anticomunismo tenha sido a ideologia fundamental para os regimes criados em 1964 e 1965. Mas o que eu acho realmente interessante é que ninguém presta muita atenção ao que isso realmente significa. Sinto como se fosse o peixe tentando descrever a água. Vivemos em um mundo onde é tão óbvio que os anticomunistas venceram que não vemos como isso afetou nossa trajetória.

E o que isso significava para as ditaduras anticomunistas do século XX é que qualquer tipo de crítica à ordem social, qualquer pressão de baixo para cima, qualquer troca entre capital e trabalho – o tipo de coisa que todo mundo reconhece como essencial para o capitalismo funcionar – pode ser descartado como “comunismo” e deixado de lado. O que gera a forma profundamente corrupta de capitalismo que você vê agora basicamente em toda parte, exceto na Europa Ocidental e talvez na América do Norte.

Mas no Brasil e na Indonésia, o legado anticomunista é especialmente óbvio. Até hoje, ainda é ilegal defender o “comunismo” na Indonésia, o que leva a histórias absurdas de turistas sem noção vestindo uma camiseta de um país comunista e sendo presos, ou muito mais seriamente, meus amigos e meu colega de quarto sendo ameaçados e aterrorizados quando se reúnem para conversar sobre a história de seu país. Quando comecei a trabalhar neste livro, em 2017, disse que o fantasma do violento anticomunismo no Brasil nunca havia sido exorcizado e poderia voltar a aterrorizar o país. Agora que Jair Bolsonaro é presidente, não sinto orgulho de me provar mais certo do que eu esperava.

Coincidentemente, seu filho, o deputado Eduardo Bolsonaro, quer tornar o “comunismo” ilegal no Brasil, citando a lei indonésia como inspiração.

Esses eventos têm sido reformulados de acordo com os vencedores no Brasil, por exemplo, como uma revolução em defesa da democracia contra o comunismo. Nos dois casos, em graus variados, prevalece um tipo de amnésia em massa. Como você acha que esse revisionismo molda a política contemporânea?

 

VB

É importante enfatizar duas coisas ao mesmo tempo. Por um lado, não havia ameaça comunista no Brasil. Por outro lado, havia uma ameaça real à ordem social que as elites brasileiras, os militares e os Estados Unidos queriam manter. Essa ordem era muito frágil e precisava que a violência hierarquizada fosse sustentada.

O presidente “Jango” Goulart foi um reformista liberal, o Partido Comunista era muito pequeno e Moscou não tinha interesse em tentar provocar Washington fomentando a revolução na América do Sul. No entanto, se ele tivesse permissão para concorrer novamente, provavelmente teria vencido. Se ele tivesse implementado algumas de suas reformas básicas – permitindo que todos votassem, implantando uma reforma agrária básica, promovendo a alfabetização em massa – isso teria mudado o país, inclusive para as elites. O Brasil é uma colônia violenta, amplamente definida pela elite aterrorizada com as rebeliões de escravos ou com revolução vindo de baixo, e mais uma vez a classe dominante se enfureceu e atacou primeiro. O golpe de 1964 interrompeu a evolução social e congelou a ordem social de meados do século, em grande parte até hoje.

Claro, todo mundo no Brasil luta por definir e redefinir a história, e Bolsonaro foi notavelmente vitorioso de dois a três anos para cá. Atualmente, vemos com frequência uma versão anticomunista mais virulenta e distorcida do que a apresentada pelos generais em 1968.

Em sua opinião, qual é o legado desse anticomunismo na política estadunidense?

 

VB

Bem, acho que há duas coisas. Por um lado, não construímos as estruturas social-democratas que a Europa Ocidental construiu nos anos pós-guerra e acho que um pouco disso – nem tudo – pode ser atribuído a esse impulso anticomunista. Não tenho certeza se foi isso que nos impediu de expandir nosso Estado de bem-estar social nos últimos anos, porque esse tipo de expansão não aconteceu basicamente em nenhum lugar do mundo desenvolvido desde a queda do Muro de Berlim e o começo do neoliberalismo no mundo. Mas acho que não é coincidência que o único país rico sem um sistema de saúde universal também tenha sido a “fortaleza global do anticomunismo”, como afirmou o historiador brasileiro Rodrigo Patto Sá Motta.

E segundo, essa memória muscular ainda está lá, obviamente. Acho que a Russiagate foi provavelmente um bom exemplo disso. Eu não acompanhei as coisas de perto, mas acho que os historiadores provavelmente vão olhar e concluir: “Bem, parece que os liberais tiveram um tipo de surto, entraram em estado de negação por seus compatriotas elegerem Donald Trump e deslizaram para uma vilania da antiga Guerra Fria porque era mais fácil do que olharem para si mesmos”, deixando de lado, é claro, todas as maneiras pelas quais Vladimir Putin foi realmente ruim em 2016.

Não foi exatamente sobre isso que você perguntou, mas acho que o verdadeiro legado de nossa “cruzada anticomunista”, como eu disse, não é tão doméstico, já que definiu nossa posição geopolítica, nossa relação com o resto do mundo. E para tal, isso era tudo. Acho que Odd Arne Westad está certo ao dizer que grande parte do sistema global foi derrotada nos conflitos da “Guerra Fria”, e este é provavelmente o sistema global mais extenso e robusto da história do planeta.

 

SOBRE OS AUTORES

Vincent Bevins é jornalista e autor do livro The Jakarta Method: Washington’s Anticommunist Crusade and the Mass Murder Program That Shaped Our World.

Benjamin Fogel é historiador e editor contribuinte de Africa is a Country e Jacobin.

 

Fonte: Jacobin.

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