Por Natalia Figueiredo

O número estimado de casos de estupro no país por ano é de 822 mil, o equivalente a dois por minuto. Desse número, apenas 8,5% chegam ao conhecimento da polícia e 4,2% são identificados pelo sistema de saúde.

Aproximadamente, 95% das mulheres temem ser vítimas de estupro no Brasil. Os dados são de um levantamento feito pelo Instituto Patrícia Galvão e Instituto Locomotiva após consultar 2 mil pessoas com 16 anos ou mais de idade. Se você é mulher, já viveu, presenciou ou conhece alguém que sofreu assédio ou violência sexual. Em muitos casos os dois.  

Quando eu tinha 15 anos, fazia ensino médio a 40 quilômetros de casa, no Colégio Pedro II, onde cursava o nível técnico. Pegava todos os dias um ônibus no mesmo ponto às 6h30 da manhã. Um dia, a caminho da escola, um homem mexia sem parar em sua calça por baixo de uma pochete, bem próximo do meu banco. Eu me movi para tentar afastar, coloquei a mochila como uma barreira. Quando cheguei no colégio e olhei, minha calça estava suja de branco. 

Nessa mesma idade, uma amiga, bastante próxima, que dormia na minha casa, confidenciou que foi abusada por um dos amigos do pai, dentro de casa, durante a infância. Nunca contou por medo de que ele matasse o agressor. 

Aos 18, quando entrei para a universidade pública, me mudei para uma cidade universitária, no município de Seropédica, no Rio de Janeiro. Lá, celebrava a conquista com outras amigas que moravam próximo. Todas cheias de sonhos e um futuro promissor pela frente. Fomos a uma festa dentro do campus, uma das amigas, uma estudante de Direito, saiu sozinha para ir ao banheiro, no caminho foi agredida, estuprada, levada ao hospital (bastante machucada) e a família trancou sua matrícula na instituição. 

Esses são alguns casos que já me atravessaram enquanto indivíduo, no entanto, são banalizados por uma cultura do estupro. Uma construção social a partir de normas de comportamento que toleram determinadas ações como a violência sexual e tentam exercer um estado de controle sobre nossos corpos e a nossa liberdade.  

Enquanto conceito sociológico, essa cultura serve para explicar como diante de crimes tão hediondos, a reação mais comum na sociedade é duvidar da denúncia ou colocar a culpa na vítima. Denys Cuche, em seu livro “A Noção de Cultura nas Ciências Sociais” (1999), explica que “a noção de cultura se revela então o instrumento adequado para acabar com as explicações naturalizantes dos comportamentos humanos. A natureza, no homem, é inteiramente interpretada pela cultura.” 

Ou seja, temos que tomar cuidado ao naturalizar comportamentos, pois eles não são naturais, e sim condicionados pela cultura. Essa pode ser boa em muitos aspectos – nos fortalecendo enquanto sociedade – e, por outro lado, perigosa para determinados grupos sociais. Para as mulheres, desde cedo, é fácil perceber que nossos caminhos são constantemente interrompidos por violências silenciosas. Se não cuidarmos uma das outras, quem o fará? 

Em Belo Horizonte, quando uma mulher foi abandonada desacordada na porta de casa por um motorista de aplicativo, carregada por outro homem e estuprada – ao contrário dessas histórias pessoais – o caso foi noticiado em todo o país. A jovem foi encontrada seminua em um campo de futebol por uma mulher que chamou uma ambulância do Samu. Câmeras de segurança registraram tudo e a rua deserta da capital mineira ganhou a primeira página do noticiário. A tragédia foi abordada em reportagem especial no Fantástico, em que a família, ainda devastada, foi entrevistada. 

As irmãs da vítima contaram que a principal motivação em ir a público pedir justiça é para que outras mulheres não passem pelo mesmo tipo de trauma e violência que a jovem sofreu. É muito simbólico que esse caso ganhe a projeção que necessita no mês de enfrentamento da violência contra a mulher, o agosto lilás, uma iniciativa de conscientização para dar visibilidade ao tema e ampliar o conhecimento sobre os dispositivos legais existentes.  

Em 2023, a campanha marca os 17 anos da Lei Maria da Penha. Lei Federal nº 11.340, elaborada para amparar legalmente as mulheres vítimas de violência, seja ela física, sexual, psicológica, moral ou patrimonial. O caso de Maria da Penha Maia Fernandes foi especialmente emblemático pela brutalidade e demora com que a Justiça atuou. 

A biofarmacêutica cearense ficou paraplégica em 1983, após ser vítima de tentativa de homicídio de autoria do ex-marido e pai de suas filhas, o economista colombiano Marco Antonio Heredia Viveros. Enquanto ela dormia, Marco disparou um tiro de espingarda que pegou nas costas de Maria. Para a polícia, Viveros declarou que o casal havia sofrido uma tentativa de assalto.  

A versão do ex-marido foi desmentida pela investigação, incluindo um laudo da Polícia Técnica e testemunhos das empregadas domésticas que trabalhavam na casa. Quatro meses depois, após Maria da Penha realizar duas cirurgias e voltar para casa, aconteceu a segunda tentativa de feminicídio. Segundo Maria, Marco tentou eletrocutá-la durante o banho. Somente oito anos após o caso, em 1991, foi realizado o primeiro julgamento, condenando Marco pelo crime. Ele recorreu e só foi preso em 2002, 19 anos depois. Ficando detido por dois anos. 

Sentindo-se desamparada pela lei vigente no Brasil e com a repercussão de sua história, Maria da Penha levou o caso ao Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e ao Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM). O caso foi denunciado como uma grave violação de direitos humanos à CIDH, da Organização dos Estados Americanos (OEA). A OEA responsabilizou o Brasil por negligência em relação à violência doméstica e em 7 de agosto de 2006, foi sancionada a Lei 11.340, a Lei Maria da Penha. Um importante avanço para as mulheres brasileiras. Grande parte da história está na biografia que ela escreveu em 1994, intitulada “Sobrevivi… Posso contar”, em que narra as violências sofridas por ela e pelas três filhas. 

Quando falamos de invisibilidade das vítimas em casos de violência de gênero é porque suas vozes são constantemente deslegitimadas, ou relativizadas, em geral com o intuito de absolver socialmente os agressores. Há ainda obstáculos no acesso à justiça para as que buscam socorro no Judiciário. Isso porque, a despeito dos seus relatos de violência, nem todas as medidas protetivas de urgência têm sido concedidas. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, os índices de Medidas Protetivas de Urgência (MPUs) solicitadas e concedidas em 2022, apesar do aumento percentual em relação ao ano anterior, foi de apenas 85% de medidas solicitadas e atendidas. É um quadro que, no limite, coloca em questionamento a manifestação da própria vítima e aumenta a vulnerabilidade das mulheres que buscam apoio do Estado Brasileiro. 

No caso da Maria da Penha, mesmo depois da investigação criminal concluída no Brasil e em esferas internacionais, no último ano viralizou no TikTok um vídeo com a versão do ex-marido. Alegando que o tiro teria partido de assaltantes. A alegação falsa foi dita em um episódio de podcast da Jovem Pan e repudiada pelo Instituto Maria da Penha (IMP). Enquanto isso, no mundo real, fora das fake news, um estudo publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) chama a atenção para um problema crítico no Brasil: o número estimado de casos de estupro no país por ano é de 822 mil, o equivalente a dois por minuto. Desse número, apenas 8,5% chegam ao conhecimento da polícia e 4,2% são identificados pelo sistema de saúde. 

Com isso, além da impunidade, muitas vítimas ficam desatendidas em termos de saúde. Desencadeando casos de depressão, ansiedade, impulsividade, distúrbios alimentares, sexuais e de humor. Ainda mais grave, o fator de risco para comportamento suicida. Não por acaso, as mulheres têm mais chances de apresentar transtorno mental durante a vida, se comparadas aos homens. O estudo se baseou em dados da Pesquisa Nacional da Saúde, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (PNS/IBGE), e do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde. Segundo o Sinan, a maior quantidade de casos de estupro ocorre entre jovens, com o pico de idade aos 13 anos. 

Nesse cenário aterrorizante, a Informação é a principal ferramenta de luta. Conhecer os casos previstos é fundamental para que tanto vítimas, como familiares e amigos, possam identificar agressões, procurar ajuda, denunciar os crimes e romper com o ciclo de violência. 

Somente no ano passado, 245.713 mulheres registraram boletim de ocorrência para agressões ocorridas no ambiente doméstico. Isso significa que, diariamente, 673 mulheres se deslocaram até uma delegacia de polícia para denunciar um episódio de violência, crescimento de 2,9% em relação aos registros do ano anterior. Ao todo, foram registrados 899.485 acionamentos ao 190 relacionados a casos de violência doméstica. O número de emergência das Polícias Militares é uma das medidas mais utilizadas pelas vítimas como forma de acesso rápido à proteção policial.  

No entanto, as denúncias de violência contra a mulher podem ser feitas em delegacias e órgãos especializados, onde a vítima pode procurar por amparo e proteção. O Ligue 180, central de atendimento dedicado à mulher, funciona 24 horas por dia, é gratuito e confidencial. O canal recebe denúncias, esclarece dúvidas e compartilha informações específicas sobre a rede de atendimento e acolhimento. 

Em qualquer situação de violência. Não se cale. Denuncie. É por mim, por você e por nós! 

 

Natalia Figueiredo é jornalista, podcaster e acrobata. Formada em Comunicação pela UFRRJ, Cursou Video Jornalismo pela Columbia University e Pós-Graduação em Big Data e Inteligência de Marketing, pela ESPM. Atua como estrategista digital, CMO e é co-fundadora da agência Outlab. 

 

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil.

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