Por Vanessa Rozan

Não se deixem enganar senhoras, a vida da esposa tradicional das redes sociais tem um preço — e ele é altíssimo.

 

Antes o problema era estético. O retrocesso das trends de TikTok vinha caminhando nesse âmbito mais velado, mostrando rostos e corpos magros e jovens, dos que pontuam 100/100 do padrão eurocêntrico. Até o momento em que a gente estava discutindo se a #ThatGirl ou a #CleanGirl são possíveis na vida real e não apenas um estilo de vida de herdeiras, ainda não era uma conversa comportamental. Até que emergiu do bueiro uma trend chamada #TradWife.

Ela consiste em vídeos de garotas que mostram o estilo de vida de uma esposa tradicional saída direto dos anos 1950. Claro, a mulher mais famosa a pregar esse estilo lá dentro da rede social parece fazer parte de uma publicidade antiga de aspiradores de pó, com vestido florido, cabelo modelado e avental. Mas a coisa não é só estética: é sobre submissão, valores ultrarreligiosos e a falácia de que a mulher foi “feita” para o lar e para os trabalhos domésticos.

Em “Emílio ou Da Educação”, Rousseau bateu nessa tecla ao pregar que Sofia era naturalmente dedicada à maternidade e submissa ao desejo do marido e que deveria ser domada por Emílio para que se mantivesse lá. Não tem nada de natural na nossa cultura, senhores. Tudo o que somos é uma construção da sociedade que vivemos. Ninguém nasce mulher, torna-se.

Que mulher, dentro do mercado de trabalho, se sente realmente valorizada pelo que faz?

E daí vamos aprofundar um pouco mais: que mulher, dentro do mercado de trabalho, se sente realmente valorizada pelo que faz? Quando você achou que ganharia como um homem fazendo a mesma coisa? Acha que estamos em paridade no tema trabalho fora de casa versus trabalho doméstico? Não tem dias da sua vida que você gostaria de catar frutinhas sem pensar nos boletos? Pois esse sistema não existe pra facilitar pra gente, o patriarcado se reformula de acordo com a linguagem atual e se apresenta de diversas formas.

A pandemia foi um grande agravante da desigualdade de gênero em muitos aspectos. A violência (de gênero) aumentou, a distância salarial, o desemprego e a relação das mulheres com o trabalho não remunerado. Frente a tudo isso, fica fácil romantizar esse passado norte-americano da dona de casa perfeita e correr pra lá. As trends de beleza e de moda vinham apontando para um certo escapismo e posso citar várias aqui: Barbiecore, MermaidCore e MobWife, essa ultima mostrando um estilo estético de mulher de mafioso, ou mulher troféu do submundo, cheia de referências casacos de pele, animal print, acessórios dourados. Só que agora chegamos em um ponto em que as opressões de gênero encontram uma “solução” em forma de tendência para voltar a esse passado idealizado.

Recomendo, para quem não entendeu o que de fato aconteceu com as mulheres norte-americanas nos anos 1950, a leitura de “Mística Feminina”, de Betty Friedman e o que levou a uma das ondas do feminismo nas décadas seguintes. Começou assim, devagar e silencioso, com algumas pesquisas que apontavam que se a mulher estudasse demais poderia interferir em sua fertilidade, essas pesquisas com zero fundamento teórico ou científico (a gente sabe como elas funcionaram para construir o racismo científico do século 19) iam aparecendo nas revistas femininas. O papel das heroínas dos anos 1930 e 1940, que pregavam a energia e o caráter, além da independência, mudou significativamente para a temática da dona de casa ou esposa-mãe e assim se manteve durante toda a década. A Mistica Feminina foi construída em cima da feminilidade e do papel biológico da mulher, bem ali do lado do que os nazistas pregavam: Kinder, Kurche, Kirche (crianca, igreja, cozinha, tradução minha aqui que não hablo alemão).

Assim como a mulher foi levada a acreditar que estaria segura nesses lugares, também havia um baita contra-ataque ao seu corpo. Betty cita que, a partir de 1939, “o manequim da mulher americana diminuíra 3 ou 4 pontos” e que “as mulheres adaptam-se às roupas e não vice-versa”, segundo um vendedor. E não estamos vendo isso de novo? As modelos mid-size e plus-size desapareceram silenciosamente das passarelas, segundo os dois últimos reports da Vogue Business, que acompanha esses números após cada edição, as influenciadoras com mais seguidores misteriosamente aparecem mais e mais magras.

É preciso ficarmos atentas a essa tentativa de retorno a um passado idílico, ainda mais quando ele prega uma solução mágica e um retorno à biologia

O que ninguém fala é que o uso dos remédios como Valium e outros antidepressivos subiram na década de 1950, em especial entre mulheres. Eles eram chamados de Mother ‘s Little Helper (ajudante da mamãe, tradução minha), os anúncios deste tipo de droga, que apareciam nas revistas, são dignos de uma análise. Com chamadas como “agora ela pode lidar com a situação graças ao Butizol, um sedativo diurno para o estresse situacional diário”, e outro que era mais ou menos assim “você não pode libertá-la, mas pode ajudá-la a se sentir menos ansiosa” e por último “agora ela pode cozinhar o café da manhã de novo, quando você prescreve o novo Mornidine”, é possível saber que havia ali um grande problema silencioso entre as mulheres, e que quando estas passaram a se organizar em grupos, foi entendido que era algo social e não somente pessoal.

As redes sociais promovem a ideia de uma vida perfeita, desde o surgimento do Instagram, com a possibilidade de edição de fotos no próprio app, até todos os outros que vieram depois. Só que a gente sabe que essa vida não é perfeita, mas às vezes, o que o cérebro vê, ele acredita ser verdade.

É preciso ficarmos atentas a essa tentativa de retorno a um passado idílico, ainda mais quando ele prega uma solução mágica e um retorno à biologia. Todos nós sabemos que mulheres são criadas para serem dóceis, serviçais e cordatas; o ataque ao nosso corpo é parte do jogo de ficarmos ali nos olhando, como se esse fosse nosso maior ou único valor. O patriarcado vai reformular seu discurso e o capitalismo não está do lado das minorias. A vontade de largar tudo e assar um bolo às 16h pode parecer ótima quando vista assim, de longe. Por sorte, temos registros dos estragos das décadas passadas quando esse tema apareceu em revistas. Portanto, não se deixem enganar senhoras, a vida da esposa tradicional das redes sociais tem um preço — e ele é altíssimo.

VANESSA ROZAN é maquiadora, apresentadora de TV e curadora de beleza e bem-estar. É proprietária do Liceu de Maquiagem, uma escola e academia de maquiagem e beleza profissional, aberta há 13 anos. Fez mestrado em comunicação e semiótica pela Puc-SP, onde estudou o corpo da mulher no Instagram.

 

Fonte: Gama Revista.

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