“Nas últimas semanas a discussão sobre políticas de identidade — e não de ‘identitarismo’, que já é em si uma forma pejorativa de rotular a questão dos direitos civis — sofreu vários reveses nas falas de políticos; Me refiro aqui a governadores e ao próprio presidente”. Lilia Schwarcz.

No evento de filiação de Marta Suplicy ao Partido dos Trabalhadores (PT), no dia 2/02/2024, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva trouxe a lume uma crítica contundente ao identitarismo na política brasileira. Descartando a consideração de fatores como raça, gênero e orientação sexual na análise das desigualdades, a valorização e o reconhecimento das experiências específicas de segmentos sociais, Lula avalia como inadequação o critério primordial na seleção de candidatos políticos, por ser branco, negro, mulher ou indígena.

 

Por Renísia Cristina Garcia Filice

No blog de Ismael Morais [https://www.esmaelmorais.com.br/lula-critica-identitarismo-e-reforca-compromisso-com-causas-populares/] consta a crítica do presidente Lula ao que a Esquerda tem chamado de identitarismo “a consideração de fatores como raça, gênero e orientação sexual na análise das desigualdades, o identitarismo busca reconhecer e valorizar as experiências específicas de cada grupo social. No entanto, enfrenta críticas por fragmentar movimentos sociais e dificultar a promoção de uma coesão social ampla”.

A pergunta que não cala: ampla para quem? Ampla como universal? O Todos? Começamos a tensionar por aí. Essa perspectiva de “identitarismo”, beneficia o status quo, o mais do mesmo. Apenas reforça o privilégio da branquitude e fortalece o sexismo, o capacitismo, e certamente o racismo.

A fala do presidente se alinha ao racismo estrutural, e revela falta de atualização acerca da perspectiva interseccional que possibilita com muita tranquilidade IDENTIFICAR lideranças dos movimentos sociais altamente qualificadas e reconhecidas enquanto tal, e que também devam compor seus quadros como representantes negros/as, mulheres, indígenas e PcD.

É extremamente vergonhoso reforçar essa leitura limitada e desinformada das atualizações no campo das públicas, das ciências humanas aplicadas de que nossas reivindicações sejam “identitárias” – leia-se, individualistas, desqualificadas,” ganhamos no grito”.

Reforça a ideia que nós, mulheres negras estudiosas do campo das políticas públicas, com nossos irmãos negros, somos as/os raivosos, aquelas/es que incomodam os tais defensores do “debate amplo”(universal, neutro, o tal “todos”).

É deprimente na fala do presidente não haver o reconhecimento que no movimento negro brasileiro tem pessoas que ajudaram a construir o PT e que nunca foram reconhecidas na sua militância qualificada, para ” sentar a mesa de negociações”. Há de se entender que “narciso acha feio o que não é espelho”.

O “nosso” presidente sofre do mesmo mal dos nossos “colegas” acadêmicos, empresários, profissionais liberais e tds que ocupam altos postos – os que pensam e desenham as políticas para a “ampla maioria”: só leram pessoas brancas, só se rodearam de pessoas brancas, só identificaram nos pares brancos, a tal competência para participar da burocracia de Estado (o tipo ideal weberiano, a materialização da “ação comunicativa” habermasiana irrealizável, do diálogo entre os desiguais, forjados + não enfrentados).

Uma lástima essa fala que escancara como pensa a ESQUERDA branca brasileira. Limites historicamente construídos em um país que não consegue ver, portanto não evidência, O PESO DO RACISMO, DO SEXISM0, DO CAPACITISMO na materialização dos seus “mais qualificados”. Reforçam – consciente e inconscientemente, a meritocracia.

O mais triste: quem se pronunciou contra a possibilidade interseccional (Crenshall, Collins, Akotirene, González, Carneiro) de enfrentar a DESIGUALDADE racializada, sexista, capacitista brasileira, foi o homem, branco, presidente, LULA, esse que nós elegemos para nos ajudar a construir um Brasil mais PLURAL e diverso. Mal sabíamos que ele não pode nos ajudar na quebra das hierarquias de raça, gênero e classe simplesmente porque ELE ESTÁ DESATUALIZADO acerca das ferramentas teóricas e práticas que possuímos para mudar o Brasil?

Não é só isso. É porque seu coração, sua mente não nos vê como tendo sendo excluídos UNICAMENTE por sermos negros/as, por pessoas brancas ou de mente embranquecidas, que pensavam por e para nós. Pessoas que conseguiram limitar nossas justas reivindicações. Temos excelentes quadros, reduzir a identitarismo a necessidade de estarmos JUNTOS/AS/ES, é grave. Triste.

Não será nos próximos 100 anos que veremos uma mudança com Justiça social e ambiental. Fica a pergunta: É tudo obra do acaso? Os dois Brasis – branco e negro (Hélio Santos e Mário Theodoro)? Quando enfrentarão as estruturas criadas pelo pacto da branquitude (Cida Bento)?

 

Renísia Cristina Garcia Filice

Profª Associada da Faculdade de Educação/Universidade de Brasília- UnB. Pós-Doutora em Relações Internacionais e Diplomacia Econômica (Universidade de Cabo Verde/ Uni-CV- 2022). Pós Doutora em Comunicação Aplicada, Cultura e Novas Tecnologias (CICANT – Centro de Investigação em Comunicação Aplicada, Cultura e Novas Tecnologias/Universidade Lusófona do Porto-2022). Pós-doutora em Sociologia (Centro de Investigação em Ciências Sociais (CICS) /Universidade do Minho (UMinho) /Portugal, 2017). Doutora em Educação (UnB-2010), Historiadora (UFU-2002); Especialista em Filosofia (UFU-2004); Mestre em História Social (PUC/SP-2007). Líder do Grupo de Estudo e Pesquisa em Políticas Públicas, História, Educação das Relações Raciais e de Gênero (Geppherg/FE – UnB/UFC), além de ser idealizadora da Rede Internacional de Pesquisadores e Ativistas Tecendo Redes Antirracistas.

Temas de pesquisa: Ensino de História do Brasil e Cultura Afro-brasileira; Intersetorialidade, transversalidade e interseccionalidade de raça, gênero e classe em políticas públicas e políticas de ações afirmativas; Educação e Direitos Humanos.

 

*Com edição de Valdisio Fernandes, Instituto Búzios.

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