Por Valerio Arcary

Como explicar o desalento de ativistas e ex-militantes?

“A paciência é a coragem da virtude” (Sabedoria popular portuguesa).

“É possível que a tensão entre a eficácia política que as organizações representam e os perigos ideológicos e políticos que elas encarnam seja insolúvel. Talvez seja algo com que tenhamos que conviver. Parece-me, no entanto, que é uma questão que deve ser encarada de frente e que deve ser amplamente discutida, caso contrário corremos o risco de ser divididos em duas facções absurdas, os “sectários” e os “marginais”. O número de indivíduos ao redor do mundo que são “ex-militantes” e que atualmente não são filiados, mas que de alguma forma desejam ser politicamente ativos, creio eu, aumentou enormemente após a decepção do rescaldo de 1968. Não acho que deveríamos interpretam isso como a despolitização daqueles que perderam suas ilusões, embora isso seja, parcialmente, verdade. É antes o medo de que a atividade militante seja apenas aparentemente eficaz. Mas se sim, o que pode substituí-lo (se houver algo que possa fazer isso)?” (Immanuel Wallerstein. 1968, Révolution dans le Sistème Mondial).

Há dezenas de milhares de ativistas ativos em partidos de esquerda no Brasil. São ativistas abnegados que permanecem organizados e comprometidos com um projeto estratégico. Mas, comparativamente, o número de ex-militantes é, incomparavelmente, muito maior. Talvez não seja um exagero estimá-los na escala das centenas de milhares.

Muitos fatores explicam o desalento de ex-militantes. A desconfiança das lideranças. O desgosto com as deformações burocráticas. A insatisfação com os erros políticos. A desilusão com a experiência de governos de esquerda. A desmoralização com as derrotas. A aflição com a fragmentação da esquerda. A frustração com as hesitações das massas. A amargura com os sacrifícios de uma entrega despojada. O desânimo que alimenta o cansaço.

A forma partido, uma “invenção” do XIX, conheceu o seu apogeu histórico no século XX. São instrumentos, ou um canal, para expressar pressões sociais. Não há forma de traduzir interesses, senão formulando um programa. Não há outra forma de defender um programa que não seja unindo pessoas e construindo organizações.

Um programa pode atender demandas parciais, e pode se expressar através de sindicatos, movimentos, grupos de ação ou iniciativa, ONG’s, etc., ou pode ser um programa para toda a sociedade, visando a luta pelo poder.

A forma de organização mais eficiente para a disputa do poder político, embora não seja a única, são os partidos. Mas hoje vive uma crise, sem precedentes, em quase todos os países: fraudes políticas abjetas (sendo a mais comum, a eleição com um programa, que depois se abandona); corrupção crônica (enriquecimento ilícito, financiamentos eleitorais nebulosos, favorecimento empresarial); aventuras pessoais (busca da imunidade parlamentar para encobrir atividades ilegais, acesso ao poder para intermediações empresariais).

O fenômeno da crise dos partidos é internacional e atinge, ainda que em diferentes proporções, a representação política de todas as classes. Na esquerda, ela tem como outro ingrediente a crise dos ex-partidos comunistas, inexoravelmente, associados às ditaduras de partido único no Leste Europeu e na URSS.. No Brasil, em especial, a forma partido está associada ao eleitoralismo, à representação parlamentar, e à disputa de cargos públicos e é, em geral, desprezada como uma via oportunista de ascensão econômico-social.

O carreirismo político passou a ser quase uma regra. A crise da forma-partido atinge também os partidos de esquerda, e é mais acentuada na juventude. As derrotas do início dos anos 1990 com a restauração capitalista deixaram seqüelas, e outras formas de organização política, não partidária, em torno de programas parciais, passaram a despertar interesse. Resta saber, se em uma nova maré montante da luta de classes, com “uma mudança de lua”, a forma partido poderia ter uma revitalização. Ou seja, resta saber, se estamos diante de um fenômeno estrutural, ou transitório.

É preciso considerar que o desinteresse pela forma partido é inexplicável sem considerar o desalento com a própria democracia representativa, e seu cortejo de mazelas. Se a luta de classes entrar novamente em uma fase mais aguda, e a política se deslocar do campo quase exclusivo das alternâncias eleitorais para as ruas, a tendência de decadência da forma partido, revalorizada para novas tarefas, poderia se inverter.

As pertubadoras limitações da forma partido, e a emergência dos movimentos sociais, feministas, ecologistas e anti-racistas, são fatores chaves para a reorganização da esquerda do século XXI. Elas são indivisíveis da dinâmica da luta de classes. Esta é condicionada pela evolução das crises do capitalismo.

O sentido da política burguesa é a conservação da ordem. O paradoxo da classe dominante é que a inércia é a paralisia do tempo, mas vivemos uma época de crises e elas são uma aceleração. Uma classe que é, historicamente, anacrônica, mas que permanece no poder, exige de seus partidos a ilusão de um projeto que não pode ser senão uma nostalgia de passado, ou seja, uma caricatura do que já foi, ou uma romantização do que deveria ter sido.

Os capitalistas vivem a urgência da crise, ou a vertigem acelerada do perigo mudança, levantando seus olhos para o futuro com uma ansiedade de passado, isto é, de estabilização e ordem. Os seus partidos são prisioneiros desta angústia e vivem a armadilha do conflito entre o necessário e o impossível. Seus partidos insistem apagar o fogo com gasolina.

Do ponto de vista dos explorados e oprimidos a situação revolucionária é aquele momento raro em que as classes dominadas descobrem a política como o terreno de sua libertação, e reúnem irreprimíveis forças para abrir o caminho para a mudança de baixo para cima. É somente nessas circunstâncias que as amplas massas esmagadas sob o peso da luta pela sobrevivência buscam de forma sustentada, na sua unidade e mobilização e, na esfera pública, uma saída coletiva para a crise da sociedade.

Elas também vivem o desajuste entre existência e consciência, e o vivem de forma aguda e exacerbada. Só existem como atores políticos quando se libertam dos fantasmas do passado que governam as suas consciência. Mas o caminho de sua expressão política independente é muito difícil. Não possuem a sabedoria que o exercício do poder trouxe, através de gerações, às classes proprietárias: a relação entre os seus destinos privados e os dramas históricos em que estão envolvidas só se revela em situações excepcionais. Esse processo, necessariamente, lento, não possui atalhos, não se resolve de fora, é sempre o caminho de uma experiência que se constrói na luta, e através da luta. Por isso seus partidos se esvaziam em situações reacionárias, quando a esperança se perde. Os militantes cansam.

É assim porque a luta de classes tem uma dimensão imprevisível, e os seus desenlaces não aceitam prognósticos fáceis. A consciência flutua de acordo com as sucessivas alternâncias de vitórias ou derrotas. A primazia crescente da luta política não resolve, ao contrário, exacerba o paradoxo central da política: o que opõe necessidade à possibilidade. Os partidos são a expressão concentrada deste conflito. Agem a partir de programas, é certo, mas esses também mudam. E um programa é uma linha ténue que une fins e meios, o presente e o futuro, uma unicidade de tempo que só existe como possibilidade, e que só tem perspectiva como instrumento de mobilização, na luta pelo poder.

É nesse sentido, e somente nele, que Vladimir I. Lênin cunhou a célebre, e também mal interpretada frase: “fora do poder, tudo é ilusão”. Ao contrário das representações políticas da classe dominante, os partidos das classes populares, quando perdem a vocação de luta pelo poder, quando renunciam ao “instinto do poder”, perdem tudo.

As fórmulas teóricas que separam consciência e vontade, ou consciência e ação são estéreis. Consciência, como consciência de classe em construção e ação militante são indivisíveis, e se expressam em algum tipo de organização que busca perenidade, permanência, estabilidade. A forma-partido é aquela que, no mundo contemporâneo, correspondeu à necessidade de luta pelo poder: fora de uma situação revolucionária, os mais variados tipos de regime de partido são compatíveis com a resistência sindical e com a luta parlamentar. Mas é diante da crise revolucionária que a política assume as suas “formas heróicas”.

As classes em luta se preparam para um inadiável desenlace que as convoca para o combate frontal. Teriam-no evitado, se fosse possível. As classes proprietárias não mais são capazes de exigir os sacrifícios que antes apareciam perante as outras classes como toleráveis. Ou seja, o seu projeto não tem mais legitimidade, justamente porque o descompasso entre a promessa de futuro e a ruína do presente, colocou o Estado, sob o seu controle, em ruptura com a sociedade, e nesta, os trabalhadores, e outras camadas populares, emanciparam-se do seu domínio hegemônico, e assim, deslocaram as relações de força o que, politicamente, corresponde à dupla compreensão de que o possível, para a burguesia, é desnecessário, e que o que é necessário, para as massas, é inadiável.

O esforço das classes populares, pela construção da legitimidade de suas lutas, a única via que abre o caminho, para a luta pelo poder, tem duas dimensões. A primeira é a da disputa de projetos, a luta de idéias, para tentar ganhar a maioria do povo, para a justiça de suas reivindicações. Outra, é a luta pela construção de sua expressão sindical ou política independente, as super-estruturas “institucionais” próprias, a sua liderança, o material humano que será porta-voz e organizador de seu combate.

Já se disse que uma das premissas do marxismo é que o proletariado sendo “egoísta”, isto é, indo até ao fim na defesa dos seus interesses de classe, estaria defendendo a universalidade dos interesses da maioria do povo, de cuja sorte depende a vitória de uma saída anticapitalista para a crise. Os trabalhadores são social, cultural, e geracionalmente heterogêneos, e a construção da unidade para lutar contra inimigos comuns depende de um processo de aprendizagem que não é simples.

Mas as relações da classe trabalhadora com a sua vanguarda, os elementos mais ativos ou mais determinados, que nascem espontaneamente em cada luta e se colocam na primeira linha da defesa dos interesses da maioria não são simples. Cada classe ou fração de classe gera, nas lutas sociais, um setor mais avançado, mais disposto ao sacrifício, mais inteligente ou mais altruísta, que surge como liderança, conquistando uma autoridade moral, pela sua capacidade de traduzir em idéias ou em ações, as aspirações da massa.

Será neste material humano que se selecionarão e se formarão as direções das classes populares. Já a burguesia, como as outras classes proprietárias da história, descobriu outros caminhos para resolver o problema da formação dos seus quadros dirigentes. Quando não os encontram, pela tradição de comando ou pela seleção de talentos, em suas fileiras, entre seus filhos, vão buscá-los na “inteligência disponível”, e remunerá-los bem.

O proletariado e as classes populares não podem depender desse recurso, embora a força de atração de uma classe explorada se expresse, também, na sua capacidade de atrair para a sua causa os quadros mais sensíveis e abnegados que rompem, ideologicamente, com sua classe de origem. Têm que formar as suas lideranças, arduamente, nas lutas: em condições de normalidade política, ou seja, de defensiva, os sujeitos sociais subalternos não geram uma vanguarda ativista. Quando muito, surge uma vanguarda intelectual, muito diminuta, de suas fileiras.

As relações da massa dos trabalhadores com sua vanguarda, e vice-versa, desta com a massa, no entanto, não são simples. Nesta complexa relação, reside um dos problemas da construção da subjetividade, da maior confiança dos sujeitos sociais em si mesmos, e da maior ou menor fé na vitória de suas lutas.

A vanguarda das lutas, as lideranças enraizadas nas fábricas, escolas, empresas, bairros ou faculdades, só se formam nos processos de mobilização, e podem ou não, avançar até à organização sindical e política permanente. Freqüentemente, uma maioria desta vanguarda retrocede ao final da luta, em maior medida ainda, se esta for derrotada.

A vanguarda é um fenômeno, no sentido de que é um aspecto subjetivo da realidade em movimento, e pode tanto se organizar em uma super-estrutura da classe já existente, quanto pode voltar a se integrar na massa e abandonar a luta ativa ao final do combate. Na medida em que o impulso da luta for maior e mais consistente, a vanguarda se sentirá estimulada a aprender as lições das lutas anteriores. Procurará, então, se educar politicamente, e fará mais relações entre os fins e os meios, isto é, entre estratégia e tática, escolhendo a adesão a um partido ou sindicato, como via para a sua própria construção como liderança permanente.

Entretanto, nesse processo, a vanguarda vive um conflito, que pode se resolver, esquematicamente de três maneiras. O conflito é a luta, em um certo sentido, contra si mesma, para elevar-se acima das angústias das massas, que, como sabemos, hesitam, vacilam e retrocedem durante a luta, para depois voltar a avançar, e depois voltar a retroceder. Não é incomum que a vanguarda se exaspere diante destas fraquezas das massas, e desenvolva um sentimento de frustração e decepção em relação aos seus representados.

Esse sentimento, potencialmente, conduz a três atitudes diferentes: (a) uma parte da vanguarda fica tão desmoralizada com as limitações das massas em luta, que abandona o combate e desiste de tudo, guardando um ressentimento maior contra sua própria base social do que contra as classes socialmente hostis e suas lideranças; (b) outra parte da vanguarda, amargurada com o recuo e abandono das massas se separa destas, e se inclina por ações isoladas e exemplares para decidir sozinha a sorte do combate; (c) uma terceira camada escolhe o caminho de avançar junto com a massa e recuar, também, junto com ela, para ajudá-la a aprender as lições da luta, e garantir melhores condições de organização nos combates que se colocarão no futuro.

Se esta vanguarda encontra, durante a luta, um ponto de apoio para a sua formação como liderança de massas, uma parte dela pode se organizar, em forma estável, educar-se, e se construir como direção, para, na luta seguinte, combater em melhores condições. Mas, senão, a maior parte das lideranças “naturais” se perderão, e será necessário um novo ciclo de lutas, para que se possa gestar uma nova geração de ativistas.

Este processo de seleção “selvagem” de lideranças, em que uma incrível quantidade de energias se desperdiçam, tem sido uma das maiores dificuldades da construção de uma subjetividade dos trabalhadores.

Um outro aspecto da questão é a relação da vanguarda “emergente”, com as organizações sindicais e políticas pré-existentes, que expressam a tradição anterior de organização das classes populares: sendo elas plurais, e estando em luta umas contra as outras, para conquistar maior influência, é previsível que a vanguarda, em um primeiro momento se enerve contra todas elas, simplesmente por lhe ser difícil compreender por quê são rivais, e quais são as diferenças que as separam, sejam elas moderadas ou radicais.

Há momentos, muito raros, em que a nova vanguarda não se sente identificada ou representada, pela direção majoritária pré-existente. Nessas circunstâncias, abre-se um período de disputa aberta pela direção da classe, de “rebelião de base”, de reorganização sindical e política. Um período assim só é possível depois de esgotada uma experiência histórica, e exige, muito além de argumentos, e com menos razão, a repetição de velhos argumentos repetidos, a força inapelável de grandes acontecimentos.

A paciência ainda é uma qualidade pouco valorizada na esquerda.

*Valério Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de O encontro da revolução com a história (Xamã).

 

Fonte: A Terra É Redonda.

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