Relatório citando o Brasil aponta impunidade no uso de força excessiva contra afrodescendentes. Documento apresentado ao Conselho de Direitos Humanos também menciona racismo sistêmico na Itália, onde vítimas enfrentam dificuldades para obter justiça e reparação; especialistas pedem criação de instituições sólidas para combater impunidade e promover igualdade racial.

 

Pessoas africanas e afrodescendentes que sofreram uso excessivo da força e outras violações de direitos humanos por parte de agentes da lei enfrentam ampla e contínua impunidade, revela um novo relatório.

O Mecanismo Internacional de Especialistas Independentes para Promoção de Justiça e Igualdade Racial na Aplicação da Lei apresenta o documento ao Conselho de Direitos Humanos nesta quarta-feira, em Genebra, juntamente com as conclusões das visitas ao Brasil e à Itália.

Racismo sistêmico

No Brasil, o mecanismo constatou que o racismo contra pessoas afrodescendentes é sistêmico e generalizado. Devido a uma prática sistêmica de perfilamento racial por parte da polícia, os afro-brasileiros têm três vezes mais probabilidades de serem mortos pela polícia.

Os especialistas disseram que, além disso, os direitos das vítimas à justiça, à verdade, às reparações e às garantias de não repetição foram “raramente cumpridos” e recomendaram várias medidas que os Estados devem tomar para proporcionar justiça, responsabilidade e reparação.

A presidente do Mecanismo Internacional de Especialistas Independentes para Promoção de Justiça e Igualdade Racial na Aplicação da Lei, Akua Kuenyehia, afirma que as “manifestações de racismo sistêmico contra pessoas africanas e afrodescendentes pela aplicação da lei e nos sistemas de justiça criminal ainda são predominantes em muitas partes do mundo, e a ampla impunidade persiste”.

Recomendações para ação

A especialista Tracie Keesee, que integra o grupo, adicionou que pessoas e comunidades afetadas pela violência e má conduta policial relataram dificuldades que enfrentam ao exigir justiça, responsabilidade e reparação por violações cometidas por agentes da lei.

No relatório apresentado para a 57ª sessão do Conselho de Direitos Humanos, o mecanismo de especialistas avaliou as barreiras enfrentadas por pessoas africanas e afrodescendentes ao exigir justiça, responsabilidade e reparação.

O Mecanismo está alarmado com os números e as circunstâncias nas quais as pessoas são assassinadas pela polícia no Brasil. 

  • Nos últimos dez anos, 54.175 pessoas foram mortas por policiais no país, com mais de 6.000 indivíduos mortos todos os anos (17 todos os dias) nos últimos seis anos.
  • As mortes causadas pela polícia aumentaram significativamente de 2.212 em 2013 para 6.393 em 2023. O dado mais recente representa 13% do total de mortes violentas intencionais no país.
  • Das 6.393 pessoas mortas pela polícia em 2023, 99,3% eram homens; 6,7% crianças entre 12 e 17 anos; e 65% eram jovens adultos: 41% tinham entre 18 e 24 anos e 23,5% entre 25 e 29 anos.

Os dados disponíveis mostram que as pessoas afrodescendentes têm três vezes mais chances de serem mortas pela polícia do que as pessoas brancas, com 82,7% dos assassinatos cometidos pela polícia em 2023 sendo de pessoas afrodescendentes em comparação com 17% de pessoas brancas, com uma taxa por de 3,5 a cada 100.000 habitantes para pessoas afrodescendentes contra 0,9 para pessoas “brancas”.

Os dados revelam que os mais afetados pela letalidade policial são jovens afrodescendentes que vivem na pobreza em áreas empobrecidas.

O Mecanismo concluiu que:

  1. As pessoas afrodescendentes continuam enfrentando o racismo sistêmico no Brasil, como legado da escravização e do comércio transatlântico de pessoas africanas escravizadas, afetando o gozo dos direitos humanos em todas as partes de sua vida.
  2. O racismo sistêmico generalizado está profundamente enraizado nas políticas e práticas atuais, que perpetuam as disparidades raciais na educação, saúde, habitação, emprego e outras áreas. Essa discriminação arraigada existe na polícia e no sistema de justiça criminal, onde preconceito racial, perfilamento racial e estereótipos raciais influenciam a ação e a inação do Estado.
  3. O uso excessivo da força que leva a milhares de mortes todos os anos e o encarceramento excessivo, que afetam desproporcionalmente as pessoas afrodescendentes, são uma consequência do racismo sistêmico que, combinado com as atuais políticas de “guerra ao crime”, resulta em um processo de limpeza social que serve para exterminar setores da sociedade considerados indesejáveis, perigosos e criminosos. Esta é uma questão sistêmica generalizada que exige uma resposta sistêmica e abrangente.

Fim da impunidade

O documento destacou as medidas mínimas necessárias para combater a impunidade, complementadas por recomendações específicas voltadas para a ação. As recomendações incluem a elaboração de relatórios, revisão e procedimentos de investigação, o estabelecimento de órgãos independentes de supervisão civil para a aplicação da lei e a criação de mecanismos independentes de apoio às vítimas e às comunidades.

Algumas recomendações do relatório são:

  1. Estabelecer por lei um órgão de controle civil nacional da força policial.
  2. Estabelecer o uso obrigatório nacional de câmeras corporais por policiais.
  3. Adotar uma abordagem baseada em direitos humanos para o policiamento.
  4. Acabar com a normalização generalizada do uso de técnicas e equipamentos militares pela polícia.
  5. Acabar com as atuais políticas de “guerra às drogas” e “guerra ao crime” e adotar uma abordagem baseada nos direitos humanos para essas questões.
  6. Adotar uma legislação nacional sobre o uso da força que esteja em conformidade com as normas internacionais de direitos humanos – particularmente com os princípios de legalidade, precaução, necessidade, proporcionalidade, responsabilidade e não-discriminação, e a obrigação de proteger e respeitar o direito à vida.
  7. Garantir que o perfilamento racial seja claramente definido e proibido por lei, e investigar todas as alegações de perfilamento racial e processar os casos em conformidade.
  8. Garantir a adequada responsabilização em todos os casos de uso excessivo da força e outras violações dos direitos humanos por agentes da lei, inclusive responsabilizando superiores e comandantes de operações, também responsabilizar as agências policiais enquanto instituições, e não apenas as e os oficiais diretamente envolvidos.
  9. Garantir o direito das vítimas a reparações, notadamente através do estabelecimento por lei de um mecanismo independente especializado centrado nas vítimas com suficiente orçamento, especificamente concebido para apoiar indivíduos e comunidades afetadas.

 

Baixe aqui o Relatório com Tradução não-oficial ao português

Baixe aqui o Relatório em inglês

 

Fonte: Geledés e ONU Brasil | Foto: Fernando Frazão.

 

 

 

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