Por Jones Manoel

Mais do que um sítio de fuga, mais do que uma “comunidade alternativa”; a República de Palmares foi um gérmen de um outro Brasil que devemos reivindicar.

“É a nossa canção pelas ruas e bares, que
Nos traz a razão, relembrando Palmares
Foi bom insistir, compor e ouvir
Resiste quem pode à força dos nossos pagodes”
– Coisa de pele, Jorge Aragão

No feriado de Tiradentes, em uma conversa com Euclides Vasconcelos, ele diz que Palmares foi uma oportunidade derrotada de nacionalidade alternativa para o Brasil. Fiquei pensando muito nessa reflexão de Euclides, algo presente na obra de Clóvis Moura. É preciso começar dizendo o óbvio para desenvolver esse pensamento: a ideologia dominante tende a mostrar o processo histórico como uma marcha inequívoca para o que é. É como se a história fosse uma linha reta do passado ao presente, um caminho sem curvas, uma necessidade que se materializou em realidade.

A história, contudo, é formada por um acúmulo de lutas e processos, onde várias alternativas são derrotadas pelo caminho. Em termos filosóficos, podemos dizer que tudo que é, poderia não ter sido, e se o é, é porque derrotou outras alternativas. Ou seja, nunca podemos pensar a história como uma marcha em linha reta, um devir teleológico, um simples “não poderia ter sido de outra maneira”.

É claro que essas alternativas e oportunidades derrotadas são dadas em condições materiais e concretas que limitam e condicionam as possibilidades. Por exemplo, uma rebelião local, sem amplitude nacional, tendencialmente será mais facilmente esmagada por um Estado nacional que dispõe de maiores recursos e poder militar. Contudo, a tendência de vitória do Estado nacional, nesse exemplo, não pode condicionar uma análise fatalista do tipo: “foi assim porque o poder militar era maior e não teria possibilidade nenhuma de ser de outra forma”. É sempre tênue a linha entre entender as possibilidades derrotadas sem cair em idealismos e analisar o processo como seu deu sem cair em fatalismos.

Nosso desafio neste escrito não é imaginar um outro Brasil construído a partir da República de Palmares, mas analisar as potencialidades que estavam contidas (e foram derrotadas) para a construção de uma outra nacionalidade brasileira. Em síntese, seguimos as lições de Walter Benjamin:

“Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como salvador; ele vem também como o vencedor do Anticristo. O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.[1]

Para falar das possibilidades derrotadas, temos necessariamente que dizer o que o Brasil é. A nossa reconstrução histórica, dado os objetivos deste escrito, será rápida e até um pouco simplista. Vamos buscar apenas captar o que consideramos ser os principais aspectos da construção da nação brasileira focando na economia e política/relações de poder. Nos próprios livros citados nessa argumentação rápida, está presente uma abordagem mais ampla, completa e bem fundamentada sobre o que é o Brasil. Dito isso, sigamos.

O território que vai posteriormente ser transformado no Brasil configura-se a partir da invasão colonial portuguesa, que estrutura uma empresa colonial de produção de gêneros de exportação para enriquecer a metrópole (e, como sócios menores do enriquecimento, os senhores de engenho, comerciantes de escravizados e  latifundiários da colônia). Essa empresa colonial de exploração tem sua força de trabalho forjada na tentativa de escravização e extermínio dos povos originários e a escravização de força de trabalho de negros capturados em África e tratados como não humanos.

Nesse sentido, na formação inicial do território que irá resultar no Brasil, temos quatro traços fundamentais: a) produção de gêneros de exportação voltados para o mercado mundial; b) controle da metrópole colonial sobre a produção econômica e dinâmica interna de poder, compartilhado com a elite colonial privada aqui fixada; c) aparelho repressor contra a maioria dos habitantes do território (negros e indígenas) visando o controle e/ou extermínio; d) desumanização absoluta da maioria da força de trabalho, isto é, da população negra escravizada. Cada um desses traços fundamentais contém uma série de implicações e consequências na formação do Brasil. Por exemplo, é impossível explicar o ponto c) sem falar do ideal de supremacia racial já presente na justicativa da escravidão ou subjulgação dos povos indígenas ou debater o ponto a) sem a colocar em tela a violentíssima concentração de terras e a organização da produção na base da plantation.

A independência de Portugal, a lei de terras, o fim da escravidão, a proclamação da República e a primeria constituição republicana (os acontecimentos de nascimento do Brasil moderno) não aliminaram nenhum desses quatro pontos fundamentais e distintivos da formação do Brasil, modificando sua forma, dinâmica, arquitetura institucional e estruturação interna, mas preservando o sentido histórico desses processos anteriores.

Os sentidos dos acontecimentos fundantes do Brasil moderno, dando a forma da nossa nacionalidade, foram bem descritos por Clóvis Moura. O autor pontua que a formação da nação brasileira é feita com “a independência conservando a escravidão” e com “a abolição conservando o latifúndio” (MOURA, 2020, p. 47). Resultado desse processo, nas palavras de Clóvis:

“Essa estrutura rigidamente hierarquizada dentro do modelo escravista era necessária para garantir uma economia baseada na exportação de produtos primários subordinada aos interesses do mercado mundial. Com isso, ficou descartada a possibilidade de integração social, econômica e cultural daquelas grandes parcelas de força de trabalho liberadas que irão constituir a massa de marginalizados, saída das senzalas. Passa-se, através desse mecanismo subordinado, do escravismo para o capitalismo dependente, periférico, em face desse longo período escravista, de um lado, e de outro, pelo estrangulamento externo do capitalismo monopolista que penetrou simultaneamente à decomposição do sistema escravista no Brasil. Na medida em que o escravismo se decompunha as nações dominadoras do mercado mundial passaram a aplicar capitais no Brasil, naqueles setores estrategicamente relevantes como portos, estradas de ferro, comunicação, bancos e outras formas de investimentos. Espalharam esses investimentos nas áreas mais estratégicas, formando uma verdadeira rede nacional de subordinação” (MOURA, 2020, p. 49 – grifos nossos).

Percebam como Clóvis articula o debate. A independência nacional sem a abolição, e a abolição sem reforma agrária radical (e consequentemente fim da estrutura oligárquica-latifundiária) pavimentaram o caminho para o Brasil continuar sua integração subordinada no sistema capitalista global, agora não mais como colônia, mas sim como capitalismo dependente e periférico, uma economia que seguia voltada para fora e com pendor primário-exportador. Essa economia, subordinada ao imperialismo e gerida internamente pela classe dominante local, articulou uma grande estratégia global de dominação no pós-escravidão que visava controlar os negros e negras e o conjunto da classe trabalhadora moderna em nascimento.

A ideologia racista foi “municiadora dos entraves criados através de mecanismos estratégicos que impediram a ascensão de grandes camadas oprimidas e marginalizadas” e esses mecanismos – continua Clóvis –, “determinaram em grande parte o ethos da nação brasileira que emergiu do escravismo e, ao mesmo tempo, estabeleceram os níveis de subordinação (econômica e extraeconômica) das classes e dos segmentos que se formaram na ordenação dessa sociedade” (MOURA, 2020, p. 39).

Uma economia que seguia primário-exportadora, com hiper concentração de terras e com um mercado consumidor restrito formado basicamente pela diminuta classe média, alta burocracia estatal e classe dominante, não precisa pensar o trabalhador como cidadão, consumidor e portador de direitos. Ao contrário, do regime colonial escravista até o capitalismo dependente, para o “barão” do café paulista, o nível de fome em São Paulo não tinha relação determinante com sua taxa de lucro – o movimento da bolsa de valores de Nova York tinha mais importância. Para essa classe dominante, os ex-escravos e a classe trabalhadora em formação eram uma massa que deveria ser controlada, reprimida e quando não, em caso de rebeldia, exterminada para não atrapalhar os negócios.

Darcy Ribeiro mostra como o “barão” do café paulista, a base da classe dominante que vai hegemonizar a transição para o capitalismo dependente brasileiro (sempre em posição subordinada ao imperialismo), é representante por excelência dessa modernização sem mudanças e da formação de uma nação brasileira contra o povo brasileiro. Segundo Darcy, a burguesia-oligárquica do café “mantém no regime republicano a posição hegemônica conquistada no Império, perpetuando-se no poder um patriciado oligárquico, que coloca a serviço do patronato cafeicultor toda a máquina governamental” (RIBEIRO, 2015, p. 294).

Se Clóvis Moura, como mostramos acima, debate como os investimentos de capital estrangeiro dominam os pontos mais relevantes e estratégicos – como estradas de ferro e portos –, Dacy argumenta como a dinâmica da “economia do café” condicionava a atração desses investimentos estrangeiros, fazendo um casamento perfeito entre dependência e dominação política-econômica interna:

“Além do controle e do comando político que faziam sair de suas hostes quase todos os presidentes civis e a maioria dos ministros, os fazendeiros de café não só mantiveram mas aprimoraram seus velhos mecanismos de defesa com classe. O principal deles era, talvez, o controle da taxa de câmbio – que variava cada vez que caíam os preços internacionais do café -, para continuar a pagar-lhes a mesma importância em moeda local. A essa degradação da moeda, seguem-se empréstimos externos, destinados a defendê-la, o que aumentava continuamente a dívida externa do país, mas permitia transferir os prejuízos do setor exportador para a vasta camada importadora, constituída por toda população, num país sem indústria, que dependia do comércio internacional para quase tudo” (RIBEIRO, 2015, p. 294).

Note que no debate de Darcy Ribeiro, todo país ficava dependente da política da burguesia oligárquica do café, com outros setores da classe dominante (como a classe dominante senhorial do Nordeste) assumindo posição de mando, mas subordinada na dinâmica do poder do Estado. Tudo isso cimentado e debaixo do domínio do imperialismo na economia nacional, sem contradições irreconciliáveis com a burguesia do Brasil. Mas voltando à oligarquia cafeeira – como diria Darcy Ribeiro, ou burguesia oligárquica do café, como preferimos –, ela é, segundo o autor que acompanhamos, “detentora dos maiores poderes políticos no período imperial e republicano”, afinal, a sucessão “da Colônia à Independência e do Império à República” foi presidida pela mesma “classe dirigente” (RIBEIRO, 2015, p. 295).

Ainda seguindo com Darcy, vale destacar mais um ponto nesse debate sobre as permanências na formação do Brasil moderno – e na nossa própria ideia de moderno. Nunca é demais lembrar que essa elite (ou classe dominante) que manteve o poder na transição da Colônia à República era escravagista, regime que vigorou por mais de 300 anos. Já vimos como Clóvis debate o papel do escravismo e do racismo na formação do ethos nacional. Vejamos essa reflexão em Darcy Ribeiro.

A empresa escravista é fundada na apropriação de seres humanos “através da violência mais crua e da coerção permanente, exercida através dos castigos mais atrozes” (RIBEIRO, 2015, p. 294). Essa violência, as torturas, mutilações, estupros e mortes, parte do cotidiano generalizado do território que formará o Brasil, deixou marcas indeléveis. Para o autor, “a mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista” e essa alma brasileira “é incandesce, ainda hoje, em tantas autoridades brasileiras predispostas a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhes caem às mãos” (RIBEIRO, 2015, p. 91). Darcy debate como o nosso país pode ser pensado como uma longa continuidade de opressão, violência e exploração racista, dado que “desde a chegada do primeiro negro, até hoje, eles estão na luta para fugir da inferioridade que lhes foi imposta originalmente, e que é mantida através de toda a sorte de opressões” (RIBEIRO, 2015, p. 131).

E conclui o raciocínio lembrando que “as atuais classes dominantes brasileiras, feitas de filhos e netos dos antigos senhores de escravos” guardam, diante do povo negro, “a mesma atitude de despreazo vil”. Como a abolição, no Brasil, não expressou uma revolução democrática radical, o que temos é a burguesia brasileira com a mesma atitude ideológica, política e cultural dos seus antepassados senhores de escravos para com o povo negro, ainda que essa atitudade se efetive em condições socioeconômicas diferentes – não mais em um regime escravista, mas no capitalismo dependente. Nas palavras do autor, “a nação brasileira, comandada por gente dessa mentalidade, nunca fez nada pela massa negra que a construíra. Negou-lhe a posse de qualquer pedaço de terra para viver e cultivar, de escolas em que pudesse educar seus filhos, e de qualquer ordem de assistência” (RIBEIRO, 2015, p. 167).

Essa longa duração histórica de desprezo, desumanização e preconceito contra o povo negro pela classe dominante do País não é fruto apenas de tradição de exploração-opressão nunca quebrada, mas também da consciência dos ricos e poderosos de um Brasil que, durante mais de 300 anos, teve no povo negro escravizado o maior inimigo e antagonista da ordem dominante. Esse ponto é central para entender o papel da República de Palmares, e merece maiores desenvolvimentos.

Clóvis Moura compreende que o escravismo no Brasil tem dois grandes períodos. A partir de 1850, começa o que ele chama de “escravismo tardio”, com os entraves ao fluxo de pessoas escravizadas no Brasil, a partir da Lei Eusébio de Queirós. Até 1850, contudo, foram os escravizados o principal agente de luta, desgaste e resistência ao regime escravista-colonial. Por mais de 300 anos, a população negra foi protagonista (com participação dos povos indígenas, também vítimas da escravidão e tentativa de extermínio), da luta pela sua emancipação. Nas palavras do autor que estamos seguindo,

“Na primeira fase da escravidão, a luta contra o sistema é apenas dos escravos. São eles que de várias formas solapam o instituto opressor. Somente depois de 1850 é que veremos o apoio de personalidades e entidades defendendo o fim do trabalho servil. Nessa última fase da escravidão, após a aboliçaõ do tráfico, já no período, portanto, que denoninamos de escravismo tardio, várias vertentes abolicionistas radicais passaram a cooperar e operar juntamente com os escravos rebeldes […] Enquanto o escravismo brasileiro era uma instituição sólida e reconhecida, somente os escravos lutaram radicalmente para extingui-lo” (MOURA, 2020, p. 52-53).

Não é diferente a interpretação de Darcy Ribeiro, que diz que “enquanto escravos, porém, eles constituíam a única força oposta ao sistema que, exercendo uma ação subversiva constante, exigia a reação permanente de um aparato repressivo”  (RIBEIRO, 2015, p. 207); em outro momento do livro, debatendo a “açúcarocracia” do Nordeste, diz o autor que ela “só encontrou resistência efetiva e enfrentou oposição ativa por parte do negro escravo, que lutou por sua liberdade não apenas contra o amo mas contra toda sociedade colonial, unida e coerente na defesa do sistema” (RIBEIRO, 2015, p. 219).

Durante muitos anos, o ideal de supremacia racial no Brasil criou uma mitologia de que os escravizados eram passivos, não tinham projeto e apenas faziam uma luta desconexa e desesperada por sua liberdade (ideologia burguesa e racista presente em autores também de esquerda ou marxistas, como o sociólogo Fernando Henrique Cardoso e o historiador marxista Caio Prado Jr. – tema que merecerá maiores desenvolvimentos futuros). Na realidade, como toda resistência à dominação, a luta se expressou de diversas formas e com variadas técnicas de contestação.

Do mesmo jeito que não é todo dia que temos uma revolta, rebelião ou revolução da classe trabalhadora, e nem por isso deixamos de perceber a luta de classes e suas diversas expressões, na secular resistência dos escravizados ao sistema escravista-colonial, havia desde a destruição de máquinas, suicídios, abortos, assassinato de senhores de engenho e capitões do mato, a fugas, erros propositais na produção, organização de quilombos, etc.

Todas essas formas de resistência se conformaram para desgastar o sistema, tirar a paz dos senhores de engenho e grandes proprietários, preocupar a metrópole colonial e afins. Nos mais de 300 anos de escravidão que tivemos no território que dará origem ao Brasil, não podemos narrar essa história como apenas uma longa noite de opressão, exploração, tortura e estupros contra o povo negro. Tudo isso acontece, mas debaixo de muita luta, resistência e algumas vitórias nossas.

Dentre as formas de resistência ao escravismo, a mais célebre, radical, simbólica e ameaçadora foi o quilombo. E o quilombo não foi uma exceção à regra no regime escravista. Novamente recorrendo a Clóvis Moura, “uma das características da quilombagem é sua continuidade histórica. Desde o XVI, ela é registrada e vai até as vésperas da Abolição. Mesmo naquelas regiões onde o coeficiente demográfico do escravo negro era pequeno, o fenômeno era registrado” (MOURA, 2020, p. 43). Para o autor, “os quilombolas haviam chegado a um nível de organização ponderável, pondo em pânico os senhores, que usavam de todos os recursos para exterminá-los […] o certo é que, onde quer que a escravidão tivesse se instalado, os quilombos eram uma constante. Elemento de fricção e desgaste permanente, os quilombos contribuíram, por isso, ao minarem e deteriorarem as relações entre senhores e escravos” (MOURA, 2020, p. 48).

O medo da resistência negra e em particular da quilombagem só cresceu na classe dominante brasileira com a Revolução de Santo Domingo, quando os negros escravizados daquela colônia francesa no Caribe conseguem sua emancipação nacional e o fim da escravidã, matando boa parte dos brancos senhores de escravos. A classe dominante brasileira olhava para cada quilombo e via um Haiti em potencial. O medo de “haitinização do Brasil”, antes da Revolução Russa e do nascimento do movimento comunista, foi o grande terror da elite brasileira:

“Como vemos, houve, de um lado, o medo da classe escravista, senhorial, diante da revolução haitiana, isto é, a síndrome do medo, mas, por outro lado, não se pode mais negar a existência de uma conexão ideológica (embora imprecisa) e de contatos diretos entre os escravos rebeldes brasileiros e os militantes daquela revolução” (MOURA, 2020, p. 112).

Antes de passar ao próximo ponto, recapitulemos: os escravizados formavam a principal força de trabalho do Brasil colônia e a maioria do população, também representavam o maior antagonista ao regime escravista-colonial e tinham várias técnicas e formas de resistência, sendo a mais radical e ameaçadora para metrópole colonial e a classe dominante local os quilombos.

O Quilombo dos Palmares foi a maior, mais forte e temporalmente mais duradoura experiência de resistência quilombola. Foi o ponto alto de uma secular luta dos escravizados. Muito além de um espaço de fuga do escravismo e realização da liberdade, representou a possibilidade de uma outra Nação Brasileira derrotada. Mas antes de falar de Palmares, precisamos apresentar a nossa compreensão de nação e identidade nacional.

A nação é, ao mesmo tempo, a totalidade das estruturas que lhe fundamentam, dão sentido histórico e indicam seu lugar no mundo – as relações econômicas, sociais, políticas, institucionais etc. – e a produção teórica, simbólica e cultural que as diversas classes e grupos sociais realizam sobre o que é a nação no passado, presente e potencial de futuro – conformando a identidade nacional. Ou seja, a nação pode ser compreendida como seus fundamentos econômico-materiais e as disputas de sentido e interpretação desses fundamentos. Nesse sentido, destacando a construção simbólica sobre o ethos nacional a partir de uma formação econômico-social historicamente particular, podemos citar João Trajano Sento-Sé, que debate a importância dos documentos fundadores de um ethos nacional:

“Toda nação projetada ou consolidada em sua auto-imagem tem sua própria literatura fundadora. Ela deve ser genérica o suficiente para funcionar como expressão ideal da totalidade dos indivíduos que deve atingir. Deve ser formadora, ou seja, agir sobre o caráter do seu povo, ao mesmo tempo que o retrata. Deve ser grandiosa, pois revela e/ou promete a grandiosidade da nação. É a inventora de uma linguagem, e, portanto, caracteriza-se por ser portadora de uma forma singular de enquadramento do mundo” (SENTO-SÉ, 1999, p. 172).

É preciso investigar agora que potencialidade de nação estava inscrita na República de Palmares desde suas relações econômicas, sociais, políticas, religiosas e afins e, a partir disso, que tipo de outro ethos nacional poderíamos ter construído.

Palmares: um Brasil que poderia ter existido para si mesmo!

É necessário fazer duas advertências antes de seguirmos. Primeiro, existe uma longa bibliografia e uma amplitude de polêmicas sobre o Quilombo dos Palmares e suas lideranças, como Zumbi dos Palmares. Não vamos adentrar em nenhuma dessas polêmicas e nossa reflexão, didática e introdutória, vai basicamente acompanhar a produção de Clóvis Moura sobre o tema. Em segundo lugar, não vamos justificar nesse escrito o uso do termo “República de Palmares”. É provável que essa expressão tenha chamado a atenção do leitor e, para alguns, pode parecer anacrônica. Vamos deixar bibliografia sobre as duas questões para quem deseja se aprofundar no tema[2].

A nossa forma expositiva será buscar os contrastes entre Palmares e o Brasil Colonial – e as continuidades transformadas do Brasil Colonial que vivem na República do Capitalismo dependente –, tentando deixar cristalinas as possibilidades de Outra Nação derrotadas com o fim da República de Palmares. Dito isso, vamos ao debate.

Clóvis Moura afirma que a República de Palmares: “foi a maior manifestação de rebeldia contra o escravismo na América Latina. Durou quase cem anos e, durante esse período, desestabilizou regionalmente o sistema escravocrata” (MOURA, 2020, p. 59). Palmares ocupou uma região com terras férteis, boa disponibilidade de madeira e caça, e tinha crescimento populacional constante a partir da fuga de escravizados, entrada de indígenas e “mestiços” pobres livres na República, raptos de escravizados e o próprio crescimento vegetativo da comunidade.

Ao contrário da economia escravista colonial, Palmares não produzia gêneros para exportação com destino ao mercado mundial (especialmente o europeu). Sua produção era centrada em “frutas, vegetais medicinais, óleo de palmeira, fibras de vários tipos, frutos como jaca, manga, laranja, fruta-pão, coco, abacate, laranja-cravo, café e outras, nativas, que serviam para sua alimentação” (MOURA, 2019, p. 202). Além dessa atividade, a economia palmarina construiu uma produção artesanal responsável por confeccionar “cestos, pilões, tecidos, potes de argila, vasilhas… […] facas, flechas e outros instrumentos venatórios e de guerra” (MOURA, 2019, p. 202). Na agricultura, essa era a dinâmica:

“A base desse trabalho era a policultura, produzida intensivamente, porém de forma comunitária. Plantavam principalmente o milho, que era colhido duas vezes por ano. Depois da colheita descansavam duas semanas. Plantavam ainda feijão, mandioca, batata-doce, banana (pacova) e cana-de-açúcar. Isso constituía a produção básica da agricultura palmarina, sendo o excedente distribuído entre os membros da comunidade para as épocas de festas religiosas ou de lazer, ou estocando para os tempos  de guerra. O que sobrava era trocado com os vizinhos, pequenos sitiantes e pequenos produtores, por artigos de que a República necessitava” (MOURA, 2019, p. 203).

É conhecida a reflexão de Gilberto Freyre em seu clássico Casa Grande & Senzala (FREYRE, 2020) de que a economia colonial era uma economia de fome, dada a centralidade absoluta na produção de gêneros para exportação destinados ao mercado externo. Durante toda a existência do Brasil Colonial, especialmente no Nordeste, a produção de alimentos para o consumo interno na colônia foi um problema, em função da estruturação de uma economia voltada para fora. Na República de Palmares, tínhamos uma economia centrada nas necessidades dos seus habitantes, produzindo gêneros para seu consumo, e comercializando o excedente. Para o Brasil Colônia, o comércio externo era tudo, pautando sua dinâmica de produção inteira. Para a República de Palmares, era o complemento de uma dinâmica produtiva voltada para si.

É evidente que podemos pensar que esse caráter autocentrado da produção foi uma imposição de uma condição de guerra permanente imposta pelo sistema escravista-colonial, com as possibilidades de replicar a dinâmica da plantation vetadas. É um argumento formal que parece bom, mas que desconsidera a experiência cultural, humana e subjetiva dos ex-escravizados que construíram Palmares; e o antagonismo radical entre o Quilombo como forma social de resistência e concretização da liberdade e o regime escravista-colonial.

Vale destacar que mesmos cercados pelo escravismo, em guerra permanente e tendo altos custos com a defesa, a economia da República dos Palmares era mais produtiva e dinâmica que a do Brasil Colônia. Clóvis Moura chega a falar de uma “economia de abundância”. Um habitante de Palmares, tinha, objetivamente, maior disponibilidade de frutas, verduras, legumes, roupas, acessórios, tipos de carne animal e afins que um escravizado (negro ou índigena) e “mestiço” pobre no Brasil Colônia. Clóvis cita um estudo de Duvitiliano Ramos que destaca os principais elementos da economia palmarina:

“É que nas comunidades negras reinava a fartura que oferecia vivo contraste com a perene miséria alimentar da população do litoral. A abundância da mão de obra, o trabalho cooperativo e a solidariedade social haviam aumentado extraordinariamente a produção. O superproduto social se tornava abundante. Depois de alimentada a população, atendidos os gastos coletivos e guardadas em celeiros as quantidades destinadas às épocas de más colheitas, guerras e festividades, ainda sobrava algo para trocar por produtos essenciais das populações luso-brasileiras. O caráter nitidamente antieconômico do sistema escravista é ilustrado por esse contraste entre o rendimento do trabalho do negro quando livre e quando cativo. Era por ser escravo e não por ser negro que ele produzia pouco e mal nas plantações e nos engenhos. O trabalho cooperativo de Palmares tinha um ritmo de produtividade muito maior do que aquele que se desenvolvia nos latifúndios escravistas; a superioridade da agricultura palmarina em relação ao trabalho escravo era facilmente verificável” (RAMOS up MOURA, 2019, p. 205 – grifos nossos ).

grifos nossos ).

Estúdio Gauche
Para Duvitiliano Ramos, “a superioridade da agricultura palmarina em relação ao trabalho escravo era facilmente verificável”

Darcy Ribeiro registra que a história brasileira é, também, a história da reprodução constante da condição de proletariado externo: produzimos para o lucro e consumo do mercado mundial, de costas para as necessidades do povo trabalhador do Brasil e destruindo nosso povo em um moinho de gastar gente (RIBEIRO, 2013). Em Palmares, não temos a lógica de proletariado externo, da economia colonial ou dependente. Temos um povo produzindo de forma comunitária e cooperativa para si de acordo com as necessidades da comunidade solidária. Palmares foi o germe destruído de uma economia socializada, com as relações de propriedade e produção garantindo abundância para seus habitantes.

Essa sociedade alternativa precisava ser defendida. Como falamos, Palmares vivia uma situação de guerra permanente com o regime da colônia. A imposição objetiva, combinada com o próprio horizonte cultural dos palmarinos, configurou uma espécie de “democracia militar”. A bravura, capacidade de combate, força e liderança eram elementos fundamentais para tornar-se o chefe de Palmares.

Nesse ponto, é necessário dizer o óbvio: na sociedade colonial, a condição de senhor de engenho e grande proprietário era estruturada, também, pelo marcador racial. Pessoas negras ou indígenas não podiam, como regra, ascender à situação de classe dominante, tornando-se grandes proprietários de terra ou traficantes de pessoas escravizadas. Na sociedade palmarina, com propriedade coletiva, não era possível transformar-se em proprietário privado dos meios de produção, e embora existisse uma “casta militar”, a entrada nesse grupo, com alto prestígio na República dada a necessidade de defesa, era relativamente aberta, considerando que a própria ação em campo formava novos chefes militares.

Clóvis Moura destaca que Palmares desenvolveu “uma técnica militar”, forjando um “sistema defensivo” capaz de assegurar o sossego dos moradores. Com a estabilização desse sistema de defesa, surge “a constituição de um segmento militar que se organizou como instituição, embora nas épocas de guerra todo o povo fosse mobilizado para lutar” (MOURA, 2019, p. 206). Essa “casta militar”, contudo, não estava totalmente separada e contraposta à população de maneira geral. Cuidava da defesa em tempos de ataques pontuais, mas, necessariamente, todo povo da República era mobilizado em períodos de enfrentamentos de maior envergadura – períodos estes bem constantes.

Na história de várias sociedades, o surgimento de um corpo de pessoas especializadas na guerra foi o prenúncio ou consolidação do aparecimento da propriedade privada, apontando à estruturação dos antagonismos de classe. Não foi o caso da República de Palmares que, mesmo com quase 100 anos de existência, não viu o grupo especializado na defesa e na guerra tornar-se proprietário privado. Clóvis negrita que essa “fração ou segmento militar” era “adestrado para defender o patrimônio coletivo”, afinal, “o exército de Palmares tinha essa característica: não foi montado para defender nenhum tipo de propriedade privada, mas para defender o patrimônio de toda comunidade” (MOURA, 2019, p. 208).

Esse grupo militar também não poderia negociar privilégios ou ganhos com o escravismo colonial à revelia da população palmarina, considerando a própria condição objetiva do confronto, o ethos da comunidade sobre a função dos chefes militares e a própria fluidez do papel de liderança – um chefe considerado fraco, conciliador ou traidor poderia ser substituído com facilidade. O famoso Zumbi tornou-se comandante-chefe da República depois de insurgir-se contra Ganga Zumba, tomando seu tratado de paz com o Governo Colonial como capitulação.

A República de Palmares tinha um dispositivo militar que realmente era voltado para defesa de inimigos externos e protegia a comunidade. É o exato contrário do histórico do dispositivo militar no Brasil. Aqui as origens históricas das Forças Armadas remetem à condição de manutenção da escravidão e do domínio colonial e em seguida, a uma constante guerra ao povo trabalhador, na eterna busca do “inimigo interno” do momento a ser combatido. Nelson Werneck Sodré, no seu clássico História MIlitar do Brasil, sintetiza bem a relação entre colonização, organização militar e defesa do regime colonial escravista:

“Se abstrairmos as particularidades, os traços circunstanciais e secundários, e refizermos as grandes linhas dessa evolução colonial, partindo de um plano, verificamos que a missão das forças militares, durante os três séculos da dominação lusa, pode ser resumida no seguinte: assegurar a empresa da colonização. A forma de assegurar essa empresa e, portanto, de cumprir a missão, desdobrar-se-ia em três aspectos: apossar-se do território, manter o território e expandir a conquista do território. Essa ideia fundamental que está ligada ao território é a função do regime que preside à colonização, o da grande propriedade produzindo sob trabalho escravo e para o exterior, estabelecida em região colonial, com uma sociedade dividida em senhores e escravos” (SODRÉ, 2010, p. 78).

A ausência de uma estratificação burocrática rígida aparece também no aspecto religioso. A religião em Palmares era formada “por um sincretismo no qual entra o catolicismo popular, crenças africanas, principalmente o banto […] e a influência das religiões indígenas” (MOURA, 2019, p. 212). Clóvis Moura, citando Edison Carneiro, diz que os palmarinos escolhiam “um dos seus ‘mais ladinos’ para lhes servir de sacerdote, especialmente para as cerimônias do batismo e do casamento”. Existem poucos indícios de um grupo sacerdotal privilegiado e operando como estrato dominante.

Em Palmares, ao contrário do Brasil Colônia, a religião não era um instrumento de opressão, dominação e negação de si da maioria da população. Era parte da identidade e livre expressão da comunidade, servindo, inclusive, como elemento de coesão da resistência, como a prática de “pedir o favor celeste para suas armas” em momentos de guerra (MOURA, 2019, p. 213).

Contudo, apontar a ausência da cristalização de grupos militares e religiosos privilegiados a partir das relações de propriedade não significa ausência de centralização decisória e de poder. Situações de guerra e cerco, em todas as épocas históricas, condicionam a centralização de poder político. Em Palmares, não foi diferente. Tínhamos uma estrutura piramidal com o Rei – que era um destacado chefe militar – exercendo “poderes quase absolutos” e, em sequência, o Conselho com representantes “dos chefes dos diversos quilombos (cidades), os quais decidiam de forma autônoma, nos seus respectivos redutos isoladamente” (MOURA, 2019, p. 214).

A descrição de Moura parece contraditória, afirmando que o Rei tinha poderes quase absolutos e falando da dinâmica de autonomia de cada quilombo ou cidade. O poder absoluto do Rei era em questões vitais da República, como guerra ou paz. Mas esse poder absoluto nas questões estratégicas era mediado pela possibilidade de substituição, autonomia relativa dos diversos quilombos e o papel do Conselho (que participava da legitimação do novo rei) – ou seja, estamos falando de um poder político interno, construído a partir do próprio dinamismo palmarino, sem estar subordinado a uma potência externa. Moura realiza uma eficaz síntese da problemática da estratificação social na República de Palmares considerando sua dinâmica estrutural:

“O problema da estratificação social devia ser complexo e seu dinamismo, por meio da mobilidade social horizontal e vertical, poderia medir-se pela passagem de um membro ou grupo de um estrato para outro ou, horizontalmente, de um mocambo para outro ou da República para outro local, através da fuga. Do ponto de vista da mobilidade vertical podemos citar, em primeiro lugar, o membro da República que era eleito rei, e, no outro polo, o exemplo dos escravos da da República que podiam ascender ao nível de membros livres de Palmares se trouxesse um ou mais negros cativos para o núcleo. Da mesma forma, parece-nos, as mulheres ascenderam socialmente quando se casavam com algum chefe de quilombo ou comandante militar. Quanto aos jovens, não temos nenhuma informação de qualquer ritual de passagem (quer para homens quer para mulheres) ou outra cerimônia iniciativa para incorporá-lo à comunidade, embora não descartemos a possibilidade de sua existência, pois ela funcionava sistematicamente nos grupos étnicos banto (MOURA, 2019, p. 215).

Poderíamos continuar sublinhando as diferenças e contradições entre o Brasil Colonial e a República dos Palmares, mas isso é desnecessário. O que fica evidente é que estamos falando de dois tipos de sociedades diferentes, com relações econômicas (propriedade, divisão do trabalho, repartição da riqueza etc.), políticas, militares, religiosas, sociais, familiares e afins antagônicas. Por muitas décadas, os historiadores tenderam a ver nos Quilombos apenas uma fuga desesperada e irracional da escravidão. Essa visão limitada e alinhada com a ideologia dominante não percebe que Palmares formou um sistema diferente do escravismo colonial, e, como sistema antagônico, tinha potencialidades de desenvolvimento diferentes do que os processados em nossa história.

Marx, em 18 Brumário de Luís Bonaparte, dizia que “os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”. O passado, mesmo transformado, se realiza a depender das lutas e conflitos. O passado escravista-colonial brasileiro sobrevive nas condições de capitalismo dependente, marcando sua morfologia e sua alma.

A partir de Palmares, tínhamos as condições objetivas para uma outra construção histórica. Impossível saber se Palmares, não destruída, iria tornar-se um outro país, viver como território autônomo no Brasil ou fundir-se com a nacionalidade brasileira. Também é impossível saber se as relações de produção e propriedade coletivas e cooperativas, por exemplo, iriam continuar se desenvolvendo e prosperando. O que sabemos, com certeza, é que partimos de um solo histórico marcado por escravidão, exploração, genocídio, racismo, desumanização da força de trabalho e aparato militar com funções de repressão e controle interno. Com Palmares, tínhamos outro tipo de solo histórico, que poderia frutificar um Brasil diferente.

Clóvis Moura, no livro que estamos seguindo, pergunta: “teria sido Palmares uma nação em formação”? A resposta do autor é muito convincente. Mas antes de responder, pontua que a historiografia brasileira “jamais viu Palmares como uma unidade política com dinâmica própria” e que “ninguém procurou analisar Palmares a partir das leis internas (econômicas, sociais e políticas) que lhe davam estabilidade, continuidade e dinamismo” (MOURA, 2019, p. 2017). Em suma, Palmares foi pensado historicamente, no máximo, como uma expressão de fuga da escravidão ou, no melhor dos casos, uma ameaça ao escravismo – sem que se ponderarasse, contudo, que essa ameaça poderia apresentar um modo de produção alternativo.

Feita essa nota teórica, podemos passar à resposta de Clóvis para a pergunta que coloca. O argumento do autor é que Palmares foi uma ameaça “à sociedade escravista que a rodeava, pelo seu exemplo de eficiência organizacional” (MOURA, 2019, p. 218). Uma das provas disso é que o viajante Oscar Constatt, ao falar de Palmares em 1871, começa dizendo que “a prosperidade da república dos negros preocupou no mais alto grau o governo. Os portugueses resolveram por isso pôr-lhe fim, e não tardaram a enviar tropas, num total de 7 mil homens contra os temíveis palmarenses” (MOURA, 2019, 218). Moura destaca como o viajante coloca relevo no fator da prosperidade da República.

Não eram os conflitos pequenos, rapto de mulheres ou coisas do tipo que preocupavam o Governo. Para o autor, “esse tipo de bandoleirismo era muito comum naquela época”, denotando que ele, por si só, não iria justificar a mobilização de 7 mil homens contra Palmares – segundo dado usado por Oscar Constatt. O que determinou o terror na Metrópole e na classe dominante interna foi o “exemplo de uma economia alternativa, com ritmo de produtividade maior que do que a Colônia, desafiando, com isso, a outra economia (escravista) em confronto com a economia comunitária praticada na República” (MOURA, 2019, p. 219).

Mas essa economia alternativa era ou poderia tornar-se uma nação? Clóvis diz que a nação é “uma comunidade estável, historicamente formada, que tem sua origem na comunidade de língua, de território, de vida econômica e conformação psíquica que se manifesta em uma cultura comum” (MOURA, 2019, p. 219). Por essa definição, correta no geral, Palmares tinha todos os elementos para tornar-se uma nação se tivesse a oportunidade da continuidade histórica. Mas é uma possibilidade de nação – nunca é demais insistir neste ponto – que era “uma negação, pelo seu exemplo econômico, político e social da estrutura escravista-colonialista” (MOURA, 2019, p. 220). Por fim, o autor sintetiza a reflexão:

“Como vemos, pela importância que se deu à destruição de Palmares, temos a evidência de que, no bojo da estrutura colonial e escravista que existiu na época, a existência da República de Palmares, a sua vitalidade e desenvolvimento, o seu exemplo de dinamismo econômico, e o seu exemplo de relação comunitária e harmonia social determinaram a sua extinção. Isso porque, segundo pensamos, era uma alternativa surpreendentemente progressista para a economia e os sistemas de ordenação social da época. Um embrião de nação que foi destruído para que o seu exemplo não determinasse uma economia que transcendesse os padrões econômicos e políticos do sistema escravista” (MOURA, 2019, p. 220).

O que fazer com a memória? – Uma conclusão

Antes de concluir nossa reflexão, é necessário fazer algumas considerações. Palmares acabou. Foi destruída. Não se trata de recriar Palmares ou olhar mecanicamente para o passado e projetá-lo como perspectiva de futuro. A República de Palmares, como realidade material, não existe mais. Também não se trata de olhar hoje para cada comunidade quilombola no Brasil, buscando “vestígios” da realidade palmarina e dizer que esses vestígios serão a base do socialismo brasileiro.

A construção do socialismo no Brasil será realizada a partir das condições materiais concretas do capitalismo de hoje. Então, por exemplo, na produção agrária e na estrutura de uso e repartição da terra, a condição de hoje será a base objetiva onde vamos operar as transformações no sentido socialista da agricultura. Não há como escapar dessa objetividade.

Contudo, menos “objetivista” é a luta para forjar uma consciência de classe hoje e que sentido político, simbólico, cultural e institucional daremos para o nosso socialismo. Podemos escolher agora, desde já, como vamos forjar uma consciência para a conquista do poder e a construção do socialismo. É uma escolha política, por exemplo, ignorar a República dos Palmares ou a Cabanagem, etiquetando como experiências pré-capitalistas que nada dizem para nós hoje, e destacar principalmente ou apenas a Comuna de Paris como o primeiro grande ato de rebeldia dos explorados e oprimidos.

Qual é a história da classe trabalhadora brasileira? Quais seus principais símbolos? O que ela reivindica como exemplos de heroísmo, coragem, ousadia e radicalidade? Quem são os líderes que nossa classe exalta? Essas são perguntas fundamentais que balizam a carne e o sangue de uma estratégia revolucionária. Definir uma linha política não é apenas analisar o capitalismo atual, a dinâmica de classes, as mediações táticas e o caráter da Revolução. É, também, a construção de uma subjetividade, simbologia e linguagem própria da estratégia que anima os organizados e guiados por esse programa político.

Quando Luis Carlos Prestes, em 1935, discursando como líder máximo da Aliança Nacional Libertadora, chamou todo povo brasileiro para à revolução, para dialogar com a especificidade do povo negro, não teve dúvidas sobre qual herança não renunciamos. Disse Prestes:

“Com a Aliança estarão todos os homens de cor do Brasil, os herdeiros das tradições gloriosas dos Palmares, porque só a ampla democracia de um governo realmente popular será capaz de acabar para sempre com todos os privilégios de raça, de cor ou de nacionalidade e de dar aos pretos, no Brasil, a imensa perspectiva de liberdade e igualdade, livres de quaisquer preconceitos reacionários, pela qual lutam com denodo há mais de três séculos” (PRESTES, 2012, p. 138).

Prestes escolhe destacar as tradições de luta, as glórias de Palmares, e chama todo o povo negro do país a se entender como herdeiro de Palmares. O Cavaleiro da Esperança acertou muito nessa perspectiva. Precisamos compreender Palmares como uma nação em potencial destruída, como a possibilidade de construir outro Brasil. Debater, falar, divulgar e louvar essa possibilidade. Encher de orgulho e curiosidade toda a classe trabalhadora sobre o que foi Palmares. Falar que o nosso socialismo, quando conquistarmos o poder, terá sim inspiração em Palmares.

Palmares ainda é! Pode ser fonte de autoestima, inspiração e orgulho para toda classe trabalhadora e para o povo negro em particular. Pode ser exemplo de que é falsa a história de um “povo pacífico, sem luta”. Pode ser o caminho para radicalizar as pessoas, mostrando que não existe acordo possível com a classe dominante de ontem e de hoje. Pode e deve ser exemplo educativo para aqueles que menosprezam o peso da questão racial na formação da classe trabalhadora e no caminho da nossa revolução.

O que fazer com a memória da República de Palmares? Fazer dela uma arma, um sentimento que queima no peito, para que transitemos do orgulho do que foi possível construir em situação tão adversa e, por fim, chegar na raiva, no ódio de classe; no ódio pela oportunidade destruída de Outro Brasil. E desse ódio de classe forjar os caminhos para a nossa Revolução Brasileira e, no dia da vitória, fazer como os cubanos: eles viram sua revolução socialista como a continuidade e realização da luta de independência inspirada por José Martí. Nós, no dia da nossa vitória, devemos dizer bem alto: Palmares foi destruída, Viva Palmares! A nossa luta pela Revolução começou com aquela república de negros e negras livres cercados no mar de terror e barbárie do escravismo.

E, nesse dia da vitória, poderemos dizer que a pátria brasileira nasceu com Palmares e que Zumbi é o nosso maior herói nacional. A Pátria nasceu ali, ficou adormecida, e pode ser despertada pelo socialismo que viverá Palmares de novo!

(*) Jones Manoel é historiador, professor, mestre em Serviço Social, escritor, educador e comunicador popular e colunista da Revista Opera.

Notas

[1] – Teses sobre o conceito de história. Disponível no link: https://www.marxists.org/portugues/benjamin/1940/mes/90.htm

[2] – CARNEIRO, Edison, Quilombo dos Palmares, 3ª. Edição, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966; FREITAS, Décio, Palmares A Guerra dos Escravos, 2ª. Edição, Rio de Janeiro: Graal, 1978; MOURA, Clóvis, História do Negro Brasileiro, 2ª. Edição, São Paulo: Editora Ática, 1992; MOURA, Clóvis (Organizador), Os Quilombos na Dinâmica Social do Brasil, Maceió: EDUUFAL, 2001; MOURA, Clóvis, Os Quilombos e a Rebelião Negra, 1ª. Edição, São Paulo: Editora Brasiliense, 1981.

Bibliografia

FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. São Paulo: Global Editora, 2020.

MOURA, Clóvis. Quilombos: resistência ao escravismo. São Paulo: Expressão Popular, 2020.

MOURA, Clóvis. Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas. São Paulo: Anita Garibaldi, 2020.

MOURA, Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 2019.

PRESTES, Luís Carlos. Todo o poder à Aliança Nacional Libertadora IN O marxismo na América Latina: uma antologia de 1909 aos dias atuais. Org. Michael Löwy. São Paulo: Expressão Popular, 2012.

RIBEIRO, Darcy. O Brasil como problema. São Paulo: Global Editora, 2013.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Global Editora, 2015.

SENTO-SÉ, João Trajano. Brizolismo. São Paulo: Editora FGV, 1999.

SODRÉ, Nelson Werneck. História militar do Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

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