Por Elza Paulina e Janaína Lima

A violência contra a mulher é, na grande maioria dos casos, também a violência contra uma mãe, um círculo que afeta diretamente a vida dos filhos e indiretamente a de toda a sociedade.

Na entrada do Memorial da América Latina, em São Paulo, há uma escultura de Oscar Niemeyer chamada “Mão”. Trata-se de uma mão de concreto aberta em que sangue escorre formando um mapa da América Latina, representando a luta dos povos latinos por soberania e justiça social, uma luta que as mulheres brasileiras ainda travam. O sangue simbólico tornou-se real e tomou a calçada na frente do Memorial após o assassinato de Renata Tereza de Sousa Manoel no último dia 6 de abril. 

O principal suspeito do crime é seu ex-namorado, que já está preso. Em um intervalo de poucos dias, a vítima havia registrado dois boletins de ocorrência contra o suspeito. Renata deixou duas filhas. Ela foi mais uma vítima de feminicídio em um dos países recordistas desse tipo de crime. 

Em 2022, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o país registrou o maior número de feminicídios desde 2015, quando a lei que tipifica o crime entrou em vigor. Dos 3.930 casos de assassinatos contra mulheres, 1.410 ocorreram apenas pelo fato da vítima ser uma mulher, 5% a mais do que em 2021. A maioria dos casos tem dois pontos em comum: são antecedidos por um histórico de agressões e são cometidos pelo companheiro da vítima. Um estudo realizado também pelo (FBSP) apontou que 31,3% dos casos de violência contra a mulher são praticados pelo ex-companheiro e 26,7% pelo parceiro atual. 

É necessário lembrar que essa chaga social está diretamente ligada à violência doméstica, uma marca que fica nos filhos quando presenciam agressões à mãe e quando sentem a ausência que fica em casos extremos, como o já citado, em que da vítima ficaram duas órfãs. 

É nesse ponto que a violência doméstica contra a mulher potencializa sua gravidade, como um fio que puxamos de um poço muito mais fundo do que aparenta. A violência contra a mulher é a ponta de um iceberg que se estende com consequências terríveis em toda a sociedade. As vítimas, mais do que as mulheres que sofrem diretamente a agressão, também são todos os seus familiares – especialmente os filhos – e seu entorno. Na imensa maioria das ocasiões, se agride a mulher, mas também a mãe, a avó e o alicerce de grande parte das famílias brasileiras. 

Em 2021, segundo dados coletados pelo FBSP, mais de 2.300 crianças ficaram órfãs devido ao feminicídio. Em mais de 90% dos casos, o autor da violência foi o antigo ou atual companheiro, ou algum outro parente, o que demonstra a perigosa espiral de violência doméstica que afeta mães e filhos em nosso país. 

Crianças que são expostas à violência doméstica tendem a desenvolver traumas que afetam, além de sua infância, a vida adulta. Elas crescem com chances de desenvolver sintomas como depressão, ansiedade, síndrome do pânico, dificuldade de relacionamento, maior tendência à dependência química e prejuízo cognitivo que pode afetar a aprendizagem e a autoestima. A isso, junta-se um efeito em cadeia que é a naturalização ou a reprodução do modelo que teve em casa. 

Combater a violência doméstica, sobretudo nesse contexto em que filhos presenciam suas mães serem agredidas, exige esforços que vão além da punição ao agressor. Deve-se trabalhar oferecendo apoio psicológico à mãe e a seus filhos, além da proteção que deve ser garantida pelo Estado para que a orfandade através do feminicídio não chegue a essas crianças.  

Recentemente foi aprovada, em São Paulo, uma lei para garantir atendimento psicológico de maneira ampla para as mulheres vítimas de violência doméstica. Mas, além do que é possível fazer publicamente, também precisamos olhar para dentro dos lares e de nós mesmos e nos perguntar o que há de errado. 

O feminicídio é uma situação trágica que representa tudo que a violência contra a mulher significa. Não basta apenas nos chocarmos quando acontece, mas sim carregarmos e espalharmos a consciência de que devemos, em nosso papel de mãe, educar nossos filhos para que não valorizem preceitos de uma sociedade machista. É um caminho longo a ser percorrido e cabe a toda a sociedade a responsabilidade para deixar para trás essa cicatriz que marca para sempre tantas famílias brasileiras. 

 

Elza Paulina é secretária municipal de Segurança Urbana de São Paulo. 

Janaína Lima é vereadora e advogada, especialista em direito público com cursos de Liderança Executiva em Primeira Infância pela Harvard University (USA) e International Program for Public Leaders pela Johns Hopkins University (USA). É membro da Global Shapers Community, rede do WEF World Economic fórum, líder Raps desde 2015 e da REDE Juntos, da Comunitas. Janaína Lima dá voz aos projetos de educação e empreendedorismo que tramitam na Câmara Municipal de São Paulo. 

 

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil.

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