No início do século XX, elites brancas tramavam abertamente um Brasil sem negros ou mestiços. Como esta obsessão, no fundo uma tentativa de submeter as maiorias de qualquer cor, está entrelaçada aos assassinatos impunes da polícia

Por João Soares

O Brasil não teria negros em 2012. A previsão foi apresentada no 1º Congresso Mundial das Raças, realizado em Londres no ano de 1911. “No espaço de um século, os mestiços desaparecerão do Brasil, fato que coincidirá com a extinção paralela da raça negra entre nós”, argumentou o antropólogo João Batista Lacerda. O então diretor do Museu Nacional representava o país no evento, a convite do então presidente Hermes da Fonseca (1910-1914), 23 anos após a assinatura da Lei Áurea.

Sua tese pressupunha que a força do “sangue branco” diluiria o “sangue negro”. Sem a chegada de novos africanos, portanto, o embranquecimento em curso como política de Estado levaria ao resultado calculado. O antropólogo levou uma pintura para ilustrar esse processo. “Redenção de Cam”, do espanhol Modesto Brocos, retrata a alegria de uma avó negra pelo neto recém-nascido, de pele clara, no colo da mãe mestiça. Ao lado aparece o pai do bebê, representado como um português.

“Estava sendo gestada uma ideia de nação na qual o ser humano negro é indesejável e descartável”, afirma a historiadora Ynaê dos Santos, especialista em relações étnico-raciais e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF). Contra esse projeto, manifestantes participaram do ato Vidas Negras Importam neste domingo (07/06), no centro do Rio de Janeiro.

Os gritos e cânticos entoavam críticas à violência da polícia contra o povo negro. Mesmo no contexto de isolamento social, as forças policiais continuam a fazer incursões armadas em favelas do estado. Um dia após o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), proibir operações no Rio durante a pandemia, houve tiroteio envolvendo policiais militares no Complexo do Alemão, zona norte da capital. Em abril, as mortes por ações policiais aumentaram 43% em relação ao mesmo período do ano passado.

Caso João Pedro

A vítima de maior repercussão foi o menino João Pedro, de 14 anos, assassinado em maio após ter sua casa alvejada por 72 tiros de fuzil disparados por policiais. No pedido de investigação da morte, o Ministério Público Federal incluiu a suspeita de tentativa de ocultação de cadáver. O nome do adolescente foi lembrado em diversos momentos do protesto, bem como o de George Floyd, morto durante uma operação policial em Minneapolis, nos Estados Unidos. Deitados no chão, manifestantes repetiam a frase “não consigo respirar”, as últimas palavras de Floyd.

A manifestante Mônica Cunha percorreu todo o trajeto da manifestação ao lado de uma faixa que resume sua luta: “As mães negras não aguentam mais chorar”, dizia a peça. Ela é fundadora do Movimento Moleque, que reúne e apoia familiares de vítimas de violações ocorridas em instituições socioeducativas – caso de seu filho Rafael, assassinado há 13 anos por um policial civil. “A maior fake news da história foi dizer que teve abolição. A pandemia está fazendo a gente encarar isso”, defende.

Em 2018, a cada quatro mortes cometidas pela polícia no Brasil, uma aconteceu no Rio de Janeiro. Das 1.075 vítimas no estado entre janeiro e julho de 2019, 80% eram negras (percentual superior ao nacional, de 75%). O total corresponde ao dobro das mortes praticadas pela polícia dos Estados Unidos no mesmo período. Sem leis segregacionistas, como nos EUA, o racismo brasileiro tem uma dimensão institucional mais difícil de ser alcançada, avalia a historiadora Ynaê dos Santos.

“É um Estado que se fundamenta no trabalho escravo e pensa sua existência e história a partir do mito de fundação das três raças, ‘harmonia’ recuperada quase um século depois pelo mito da democracia racial. Esse processo esconde a violência da miscigenação contra negras, indígenas e mestiças”, comenta.

A tentativa de embranquecer o Brasil após o fim da escravidão se deu pela imigração de jovens europeus latinos – abertos à integração com as mulheres brasileiras, acreditava-se.

Enquanto a mulher negra se inseriu precariamente no mercado de trabalho pelos serviços domésticos, não havia qualquer espaço para os homens. “Eles são mantidos como corpos perigosos. Conforme o racismo científico ganha espaço no século 19, pressupõe a ideia de que eles estavam geneticamente fadados a ações criminosas. A polícia brasileira é formada nesse pressuposto”, afirma a historiadora.

O medo do Haiti

A primeira instituição policial criada no país foi a Polícia Militar do Rio de Janeiro (PMERJ), em 1809, inicialmente como Divisão Militar da Guarda Real de Polícia. A iniciativa se deveu à vinda de Dom João 6º e sua corte, mas também a um fenômeno que ecoava da América Central. “Havia um pânico generalizado entre as elites das Américas, com medo de que o ‘haitianismo’ se disseminasse”, explica o historiador Luiz Antonio Simas, pesquisador das culturas de rua do Rio.

Simas se refere à Revolução Haitiana (1791 – 1804), que resultou no fim da escravidão no Haiti e na conquista da independência sobre a França. Até hoje, o brasão da PMERJ traz o símbolo da coroa e duas pistolas cruzadas à frente de folhas de cana-de-açúcar e café.

“O imaginário que acompanha as polícias desde a criação é a contenção dos corpos pretos e a defesa da propriedade nas mãos de pouca gente. Não houve transformação estrutural das polícias, e o Brasil continua tendo medo do Haiti”, avalia o historiador.

Apesar da ausência de modernizações, a estrutura policial brasileira sofreu modificações durante a ditadura militar. As forças de repressão do Estado foram aparelhadas com treinamento e orçamento inéditos para a “guerra interna” contra o comunismo, a partir da Doutrina de Segurança Nacional.

O fim do regime (1964-1985) no contexto de internacionalização da guerra às drogas estimulada pelo ex-presidente dos Estados Unidos Richard Nixon (1969-1974) deu lugar a um novo inimigo interno a ser combatido: o tráfico de drogas.

“O cartão de visitas da nossa democracia são as chacinas dos anos 1990”, assinala o historiador Lucas Pedretti, ex-integrante da Comissão Estadual da Verdade do Rio. Ele se refere aos episódios da Candelária, Acari e Vigário Geral, que deixaram um rastro de 40 mortes. “A juventude negra e periférica nunca deixou de ser o alvo. Por duas décadas, na ditadura, a violência de Estado ampliou sua ação. Nossa democracia é marcada por um terrorismo de Estado muito profundo, inclusive com aprimoramentos, vide o caveirão aéreo utilizado em operações policiais”, constata.

“Racismo dita o modo de funcionamento das instituições”

No ato deste domingo, a jovem Thaís Fidélis, de 20 anos, dizia estar nas ruas por seus pares terem sido mortos dentro de casa. “Não temos direito ao isolamento sequer. Nossa polícia é uma força de repressão que mata quem é igual a eles”, afirma. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), os negros representavam 37% do efetivo policial no Brasil em 2018. A informação é autodeclarada e pode haver subnotificação.

O coronel reformado da Polícia Militar do Rio de Janeiro Íbis Pereira é ex-comandante-geral da corporação. Em sua avaliação, o racismo não deve ser lido pelo simples ódio ao negro. “Assim, seria muito fácil resolver. Bastaria isolar os racistas. Como tecnologia de dominação, pela força e consciência, o racismo determina o modo de funcionamento das instituições e opera como ferramenta de reprodução das desigualdades”, afirma.

A Constituição de 1988, primeira na história do Brasil a ter um capítulo sobre segurança pública e tratar o tema como direito, ainda carece de complementação para definição clara dessa política, bem como de sua arquitetura institucional. Mais de três décadas sem ações significativas, Pereira descarta a ideia de incompetência. “Hoje estou convencido de que a política de segurança é não ter política. O racismo dialoga com essas ausências”, opina o coronel.

“Na ponta, temos uma polícia fraturada, que não investiga e atua de forma independente como força de repressão em territórios de pobreza onde a Constituição ainda não chegou”, complementa.

Como resultado dessa configuração, observa-se também o adoecimento da polícia. Em 2018, 104 policiais cometeram suicídio, 42% a mais do que no ano anterior. O número é superior aos agentes mortos em serviço. “Só uma polícia humanizada pode ter práticas humanizantes. Quem mata o outro também mata algo dentro de si”, finaliza o coronel.

 

Fonte: Deutsche Welle (DW) Brasil.

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