Por Tatiane de Assis

Com patrocínio do Itamaraty, artistas como Rosana Paulino e Antonio Obá fazem exposição inédita no Fórum Permanente de Afrodescendentes, em Genebra.

 

Três anos atrás, a assembleia geral da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou a criação do Fórum Permanente de Afrodescendentes. Trata-se de uma instância na qual diplomatas e a sociedade civil discutem políticas de reparação contra o racismo e contra as consequências que séculos de escravidão acarretaram em alguns países. O Brasil, um dos últimos a acabar com o regime escravista, está entre eles. No ano passado, a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, participou dos debates na sede da ONU, em Nova York.

Neste ano, acontece a terceira sessão do Fórum, entre 16 e 19 de abril, no escritório das Nações Unidas, em Genebra, na Suíça. O Brasil novamente estará presente, mas, dessa vez, não só no plenário. No prédio das Nações Unidas, será exibida a exposição inédita Atlântico Vermelho, composta por cerca de sessenta obras de 22 artistas brasileiros. Um conjunto de evidente conotação política, selecionado pelo curador carioca Marcelo Campos, que também é responsável pela curadoria do Museu de Arte do Rio (MAR).

“Foi uma escolha muito pautada em artistas que lidam diretamente com o tema da travessia, o mapa, com o mar, e que os trabalho têm ligações mais diretas com a pauta da escravidão”, diz Campos. O nome da mostra é o mesmo de uma obra da paulistana Rosana Paulino, de 2017. Nesse trabalho, a artista retrata pessoas escravizadas; suas imagens são impressas em tecidos, e os retalhos são costurados de forma aparente, entrelaçados por um ponto largo, como uma cicatriz. “Ela faz um movimento de rasura de imagens históricas. Revê esses personagens, pensa nos seus corações, úteros, nos nascimentos que aconteceram”, explica o curador.

O vermelho do título remete ao sangue derramado nas travessias do Oceano Atlântico. É, além disso, uma referência ao livro Atlântico Negro: Modernidade e Dupla Consciência (1993), do sociólogo inglês Paul Gilroy, que investiga não apenas a violência física da escravidão, mas também sua dimensão subjetiva e cultural. De acordo com o jornalista Laurentino Gomes, autor da trilogia de livros Escravidão, ao menos 1,8 milhão de pessoas morreram na travessia do Atlântico. Mais de 12,5 milhões foram sequestradas e escravizadas.

Embora central para o conceito da exposição, a obra Atlântico Vermelho não estará na mostra, em Genebra. Foram selecionadas, em vez disso, outras duas obras de Paulino: uma bandeira, criada em 2022 para o MAR, inspirada no conceito “pretuguês” da filósofa Lélia Gonzales; e uma pintura digital, sem título, também de 2022, da série Musas Paradisíacas.

A exposição será realizada em um espaço retangular, no mezanino do prédio da ONU. Não haverá divisão das obras em núcleos, devido às dimensões do espaço – uma espécie de hall, ligeiramente sinuoso. O percurso se inicia com trabalhos dos cariocas André Vargas e Yhuri Cruz. “Penso a exposição como uma ocupação, até mesmo do espaço aéreo do lugar. É como se estivéssemos gritando pra todo mundo ver e ouvir essas discussões”, diz Campos, referindo-se ao fato de que algumas obras devem ser penduradas no teto. “Depois, a gente passa pela presença do mar, com trabalhos de Ayrson Heráclito e da Márvila Araújo. Vem a Rosana [Paulino], que traz a presença das mulheres negras, e terminamos num lugar mais espiritual, com obras de Sonia Gomes e Nádia Taquary, onde essa presença se dá na cultura, no âmbito dos fazeres, já totalmente transformada e incutida na realidade brasileira.”

A arquiteta responsável pela expografia, Gisele de Paula, planeja instalar um carpete com espessura de 3 a 6 mm ao longo do hall, acompanhando todas as obras. A depender do quanto a ONU permitir, o tecido de cor vermelha poderá chegar até a entrada do prédio. “A vista é um ponto focal da mostra”, ela explica. “Do espaço onde ficará a exibição, se vê um lago. Quero trazer essa imagem para o espaço expositivo, em contraponto ao carpete rubro.”

Outros artistas que já gozam de grande reconhecimento farão parte da mostra em Genebra. É o caso de Antonio Obá, Dalton Paula e Thaís Iroko. Os três pintores se situam num movimento artístico que ganhou o nome de “Nova Figuração Negra”. A verve política é semelhante à da “Nova Figuração”, que fez escola no Brasil durante a ditadura militar. Na época, combatia-se a neutralidade ideológica na arte. A escolha pela figuração era uma forma de rejeitar o abstracionismo e também o realismo; o objetivo era retratar uma figura humana mais livre, aproximando-se dos arroubos do pop art, por exemplo. As obras da “Nova Figuração Negra”, por sua vez, são marcadamente racializadas, um reflexo das discussões sobre racismo estrutural e, sobretudo, da representatividade negra que marcam a nossa época.

O movimento hoje lida com a crítica de que, por ter sido muito bem recebido pelo mercado, acabou se tornando uma camisa de força para artistas negros, que se sentem pressionados a refletir exclusivamente sobre temas da negritude. A discussão estética e a experimentação, em alguns casos, são relegadas a segundo plano, ofuscadas pelo didatismo. A produção conceitual e abstrata de artistas negros não costuma ganhar o mesmo destaque nas galerias.

Por outro lado, a “Nova Figuração Negra”, por mais que tenha sido absorvida pelo mercado, ajuda a compor um novo imaginário para o Brasil, confrontando a falsa ideia de que a questão racial está pacificada e resolvida pela nossa miscigenação. “Tenho certeza de que se a gente tiver espaço para circulação dessas imagens, a gente vai rever, reparar historicamente a imagem do Brasil das três raças, do mito da democracia racial”, avalia Campos, otimista.

Cultura também é uma forma de diplomacia. Ao longo da história, o Brasil teve um investimento oscilante nessa área. Até os anos 1960, predominava na nossa política externa um clima de euforia e um eficaz soft power. Éramos o país da recém-estourada bossa nova e do futebol. O Itamaraty promovia a divulgação da língua portuguesa no exterior e deu uma força para a consagração internacional de Candido Portinari (1903-62). Seus painéis da série Guerra e Paz (1956) estão até hoje instalados na sede da ONU em Nova York. A arquitetura moderna brasileira também fez parte da nossa exportação cultural naquele momento.

Do final dos anos 1980 em diante, enterrada a ditadura e passada a turbulência dos anos de redemocratização, o cenário mudou. A efervescência não era a mesma de antes. A diplomacia cultural brasileira, com isso, ficou “muito aquém da crescente importância que o país passou a desenvolver no cenário regional e internacional”, observou o diplomata e escritor Edgard Telles Ribeiro, em seu livro Diplomacia Cultural: Seu Papel na Política Externa Brasileira (2011).

Criado em janeiro de 2022, o Instituto Guimarães Rosa (IGR), subordinado ao Ministério das Relações Exteriores, é uma tentativa de dar novo fôlego a essa política. Trata-se de um órgão focado totalmente na diplomacia cultural, em moldes semelhantes ao que existe na Alemanha, com o Goethe-Institut, e em Portugal, com o Camões. O IGR está por trás da exposição Atlântico Vermelho, em parceria com as ONGs Paramar e Instituto Luiz Gama. O instituto do Itamaraty investiu 192 mil reais na mostra, e o seu diretor, o diplomata Marco Antonio Nakata, foi quem sugeriu Campos para a função de curador. Marina Maciel, presidente da Paramar, diz que o dinheiro ainda não cobre todos os custos. “Para a realização de um projeto desse porte, precisamos de um valor mais alto.” Os organizadores estão tentando tentar captar mais recursos junto a ONGs e empresas privadas.

Junto à mostra, haverá um ciclo de palestras sobre a presença de pessoas negras na arte. O objetivo é propor uma política de cultura para o Fórum Permanente de Afrodescendentes. Se aprovada, a nova cláusula será inserida na Declaração de Direitos Humanos de Pessoas Afrodescendentes, que vem sendo construída pela organização. Uma tentativa brasileira de, ao menos no exterior, olhar com seriedade para uma produção cultural frequentemente tachada de “supérflua”.

O Fórum marca o fim da Década Internacional de Afrodescendentes, um período simbólico estabelecido pela ONU entre 2015 e 2024. A ideia era que, nesses anos, a diplomacia internacional desse especial atenção a medidas contra a discriminação racial e a xenofobia. Um passo importante, segundo o advogado e professor de direito internacional Ivonei Souza Trindade. As decisões do Fórum, no entanto, não têm caráter vinculante – isto é, nenhum país-membro da ONU tem obrigação de acatá-las. “Contudo, há peso, e o que foi decidido ressoa, por exemplo, nas ações de ministérios como o da Igualdade Racial.”

As obras ficarão em exposição no hall da ONU, à vista de chanceleres e diplomatas de todo o mundo, até 29 de abril.

 

Fonte: Revista Piauí.

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