Por Silvio Matheus Alves Santos

Recurso metodológico, cada vez mais presente em pesquisas sociológicas atuais, teve forte contribuição deste cânone da sociologia.

 

E. B. Du Bois e pesquisadores da EAS (Escola de Atlanta de Sociologia)1promoveram avanços em algumas áreas da pesquisa sociológica: um deles, e ao meu entender, um dos que mais se relaciona com as bases do método da autoetnografia, é que os/as pesquisadores/as estavam entre os/as primeiros/as acadêmicos/as a discutir abertamente os benefícios e limitações do “status do/a pesquisador/a” se insider/outsider. Du Bois argumentou que a tarefa da sociologia era estudar e medir as interações entre os padrões sociais que estruturam consistentemente a ação humana e o acaso, ou, na linguagem contemporânea, entre a estrutura e a agência.

“[…] As aspirações dos homens negros devem ser respeitadas: a riqueza e a profundidade amarga da sua experiência, os tesouros desconhecidos da sua vida interior, as estranhas voltas da natureza que eles têm visto podem proporcionar ao mundo novas perspectivas e tornar seu afeto, sua vida e sua ação preciosos para todos os corações humanos. […].”

Du Bois, W.E.B. As almas da gente negra, 1999 [1903]

Mesmo já sendo identificado em “Almas da Gente Negra”, vai ser em “Dusk of Dawn”, de 1940, que Du Bois aos 72 anos analisa o lugar da raça no mundo moderno a partir da verificação da sua própria história de vida. “Minha vida teve seu significado e seu único significado profundo porque era parte de um Problema que era, como continuo a pensar, o problema central da maior das democracias do mundo e, portanto, o Problema do mundo futuro.”

Assim sendo, Du Bois utilizou a sua experiência negra como um recurso ou instrumento científico e a enxergou, a partir de alguns dos seus processos vividos ao longo de sua vida, como uma parte integrante e um fator fundamental para compreender profundamente o que chamou de “o problema negro”. Com isso ele almejou não só investigar toda a estrutura social que inferiorizava e desumanizava a população negra como também contrapor e suplantar toda a formação de uma “pseudociência sociológica” repleta de generalizações superficiais, homogeneizantes e de bases biológicas.

Hoje é evidente a relevância das abordagens multimétodos, das triangulações teóricas e metodológicas que já foram e são identificadas em algumas obras ou trabalhos de Du Bois. A partir disso, convido a refletirmos sobre as nossas fundamentações de pesquisa empírica e sociológica no Brasil, especificamente, em como os nossos estudos de relações raciais se relacionam com metodologias qualitativas de base “auto-bio-etno-gráfica” diante da preponderância do quantitativo/estatístico.

Du Bois utilizou a sua experiência negra como um recurso ou instrumento científico e a enxergou, a partir de alguns dos seus processos vividos ao longo de sua vida, como uma parte integrante e um fator fundamental para compreender profundamente o que chamou de “o problema negro”

Na atualidade alguns recursos metodológicos qualitativos entendidos como inovadores e diversos estudos de ordem auto/bio/etno/gráfica e evocativos têm despertado em alguns sujeitos a percepção de sua própria condição racial. É neste processo que enxergo a força do que Du Bois desenvolveu em sua sociologia e em sua escrita sociológica/literária/criativa difundida em suas obras como: “As Almas” (1903), “Darkwater” (1920), “Dusk of Dawn” (1940), dentre outras. Por este motivo, eu sigo a linha de autores como Itzigsohn e Brown (2020 – “The sociology of W.E.B. Du Bois: racialized modernity and the global color line”) e Ali Meghji (2022 – “The Racialized Social System”) que também enxergaram em Du Bois as bases de um “fazer autoetnográfico”. Ele buscou atingir os sujeitos que estão dentro e fora da academia utilizando a abordagem evocativa (que também é um recurso da autoetnografia) com o intuito de alcançar suas dimensões emocionais e da consciência.

Sobre a autoetnografia 2, é fundamental entender que além de ser um método, este recurso metodológico se torna não só um instrumento de investigação, mas também um meio de representação da experiência do indivíduo/autor/pesquisador e de seu modo de vida. Neste sentido, compreendo que o “fazer autoetnografia” ou o “ser um(a) autoetnógrafo(a)” exige dos(as) pesquisadores(as) uma atenção primordial para a investigação do “eu” em primeiro plano (suas memórias e experiências), preocupações com a dimensão relacional durante todas as etapas do processo de pesquisa (interações com os “outros” – sujeitos investigados – e temas de pesquisa) e um olhar para a representação desses processos em relação aos contextos social e cultural.

Recorrer à autoetnografia não é tornar-se somente o sujeito que vai descrever e analisar a sua “própria história de vida e/ou narrativa”. Não se trata de “olhar narcisicamente” para si mesmo e para o seu contexto pessoal. E nem quero dizer que somente a nossa experiência de sujeito negro e autoetnógrafo/a bastasse para analisarmos a realidade social e cultural a partir da nossa narrativa. Com o que já vimos até aqui sobre as relações da base epistemológica deste método com a sociologia de Du Bois, desenvolvendo e complexificando um pouco mais nosso entendimento, entendo e espero que compreendam que a experiência e a narrativa negras ganham força à medida que elas vão sendo relacionadas com outras experiências e narrativas que constituem a vivência do mesmo grupo, que neste caso seria a população negra em sua diversidade e particularidades. A auto reflexividade estará sempre sendo acionada nas inter-relações entre os “Eus e os ‘Outros’”. Em minha concepção, apesar de partir da experiência individual, nunca será somente individual, o método e seus resultados analíticos refletirão (ou devem refletir) na maioria das vezes o âmbito coletivo, o que impacta em alguma medida o grupo de pertença do sujeito autoetnógrafo/a.

Pensando nos desdobramentos e potencialidades de refletir sobre o “status do/a pesquisador/a” insider/outsider, que já era tema da EAS e do Laboratório Sociológico de Atlanta, tal discussão nos conecta atualmente ao conceito de outsider within, de Patrícia Hill Collins. A partir da sua proposta conceitual, os insiders são capazes de olhar tanto de fora para dentro (outsider) e de dentro para fora pois eles enxergam os dois mundos, para fazermos referência ao debate fenomenológico desenvolvido por Du Bois a partir do seu conceito de Dupla Consciência. Como outsiders within, estudiosas feministas negras podem pertencer a um dos vários distintos grupos de intelectuais marginalizados cujos pontos de vista prometem enriquecer a pesquisa e o discurso sociológico contemporâneo. Desta forma, a abordagem sugerida pelas experiências das outsiders within é de que os/as intelectuais aprendam a confiar em suas próprias biografias pessoais e culturais como fontes significativas de conhecimento.

 

Este texto contém algumas ideias e passagens que foram apresentadas no artigo, “Autoetnografia, W. E. B. Du Bois e Meu ‘Fazer Autoetnográfico’”, que foi lançado recentemente no Dossiê – Autoetnografias: (In)visibilidades, reflexividades e interações entre “Eus” e “Outros”, v. 17 n. 3 (2022), na Revista Teoria e Cultura – Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – UFJF – ISSN: 2318-101x (on-line). Disponível aqui.

 

Silvio Matheus Alves Santos é doutor em sociologia pela USP (Universidade de São Paulo) e atualmente é pesquisador bolsista Capes de pós-doutorado na sociologia – IFCH/Unicamp (Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas). Email: silvioma@unicamp.br / ORCID: 0000-0002-4110-8064.

 

Fonte: Nexo.

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