Por Ricardo Salles

Há cinco séculos, a Casa Grande despreza todo conhecimento não-europeu. Academia reproduz o preconceito. Por que redescobrir os idiomas dos povos que formaram o país. Que elementos essenciais eles guardam da cultura brasileira.

A expressão casa-grande denomina a casa senhorial rural, em especial a casa residencial de engenho ou de fazenda.

Embora a ortografia recomendada seja casa-grande, permito-me, neste texto, usar a forma Casa Grande, nome próprio com iniciais maiúsculas e sem hífen.

Explico.

Tenciono, com isso, identificar um conceito que vai além do termo histórico estudado pelos pesquisadores do nosso passado e pintado com as cores vivas de Gilberto Freire. Entendo Casa Grande como um instituto abraçado pela Sociologia, mas com uma dimensão política própria, pois, me parece, no contexto da construção da identidade nacional brasileira, simboliza, preconiza mesmo uma doutrina de poder e o ethos dela decorrente, muito mais, portanto, do que apenas nominar um componente concreto e visível da grande propriedade rural e unidade nuclear do modo de produção escravista-colonial.

Cada vez me tem ficado mais claro que, para um estudo sério do instituto da Casa Grande, não se pode omitir a ficção ideológica que, ao longo do tempo, tem sido a fábula da democracia racial brasileira, já integrante, por coabitação, de uma fantasia utilitária maior, a quimera da perene harmonia de interesses sócio-econômicos contraditórios justaposta ao devaneio da conciliação, pilantramente vaticinada como necessária, de projetos de vida divergentes, de esperanças antagônicas.

O abismo social brasileiro, as diferenças gigantescamente imorais entre os que muito têm e os que nada possuem, embora apresentadas como inevitabilidades históricas, são fruto de escolhas políticas conscientes, excludentes e privilegiadoras de frações mínimas que têm controlado, com proteção jurisdicional e armada, o acesso a recursos escassos. E essa depravação tem cinco séculos, quinhentos anos de inescrupulosa dominação econômica, social, cultural, meio milênio de apropriação indecente da riqueza por uma dita elite cujo ethos pouco tem de distinto dos antigos senhores de engenho. Se, antes, os negros (e, no início, também os índios) escravizados eram “peças” num inventário de mercadorias – e, assim, entendidos pela legislação civil e comercial da época –, hoje, empregados de menor qualificação são, de maneira torpe, considerados “fungíveis”, substituíveis facilmente por outros com habilidades semelhantes, até com salários menores, em especial em épocas de crise e desocupação aguda. Pior que oportunista, essa postura é, de resto, pouco inteligente, se tomada coletiva e institucionalmente, pois uma economia de mercado precisa, como o nome diz, de mercado (consumidor) para sobreviver.

Enquanto esses espectros não forem dissolvidos pelo conhecimento dos mecanismos perversos que os alimentam e pela consciência da possibilidade de afrontá-los com êxito, o traço distintivo do Brasil continuará sendo uma sociedade excludente – sob os mais diferentes disfarces – não só do negro, mas, de resto, de toda uma massa humana cujo acesso aos meios de ascensão social é dificultado e, até, negado, como projeto de poder de uma minoria concentradora da riqueza e da renda nacionais.

Esse caráter excludente de nossa sociedade é, não raro, bastante sutil e se manifesta das formas mais insuspeitadas, como, por exemplo, no domínio dos estudos linguísticos.

Num país como o nosso, em que a maioria da população é negra, ameríndia e, primordialmente, mestiça de negros e ameríndios, chama a atenção a desimportância oficial de estudos linguísticos ameríndios (tupi, só para ficar com o grupo dominante) e africanos (bantos e, em menor escala, iorubás). Nada se estuda nesses domínios na escola secundária, salvo uma ou outra informação etimológica por parte de alguns poucos abnegados professores de português. Com frequência, seguindo o figurino do colonizador europeu, idiomas africanos são depreciativamente referidos como dialetos – como se língua e dialeto fossem gradações possíveis em alguma escala de valor –, apesar de alguns desses falares serem veículos de expressão de ricas tradições culturais e contarem com preciosas manifestações literárias.

Quanto ao estudo de línguas ameríndias, temos que, na variante do português que falamos, estão presentes no uso cotidiano milhares, muitos milhares de vocábulos de origem tupi e não se caminha mais de um quarteirão em qualquer cidade do país sem que se esbarre com um logradouro público com nome de gente, bicho ou planta de comprovada ascendência tupi.

O descaso institucional pelo tupi antigo, dito tupi clássico, estudado já no século 16 pelos primeiros missionários, se estende ao conhecimento do nheengatu ou tupi dito moderno, evolução regional da língua antiga, que oferece a enorme vantagem metodológica de ainda hoje ser falado nas margens do Rio Negro, na região de São Gabriel da Cachoeira.

Triste indicação desse desprezo é o fato de pouquíssima gente conhecer o significado de nomes emprestados dos indígenas que nos precederam nestas terras.

Pergunte-se a quem se chama Guaraci ou Jaci se sabe que seu nome tem origem tupi, significando, respectivamente, sol e lua, divindades da luz e das águas, esta última protetora das plantações, no panteão indígena; indague-se de viajantes que hajam passado por Itajubá, MG, se sabem que o nome dessa cidade significa pedra (ita) amarela (îuba), em tupi, ou seja, ouro; não parece muito razoável supor que a maioria dos mineiros saiba que o Pico do Itacolomi tem essa denominação que, em tupi, quer dizer garoto (kunumin) de pedra (ita), em alusão à forma daquela montanha, perto de Ouro Preto; mesmo com a completa incorporação do qualificativo mirim ao português do Brasil, como em escritor-mirim, é mais provável o desconhecimento geral de que o mesmo é de origem tupi, com significado de pequeno (mirin); só em círculos especializados se sabe que o felino chamado suçuarana tem esse nome tupi porque é parecido (sufixo adjetival -ran + nominalizador –a-rana) com um veado (suasu + nominalizador –a).

Agora, o mesmo ethos de Casa Grande, desdenhoso, por envergonhado, de nossa antropogênese miscigenada e que a substitui por fantasias culturais pueris, europeias e norte-americanas, foi capaz de importar a palavra anta do árabe e onça do latim científico, quando a nominata tupi dispõe, respectivamente, de tapir îaguar (jaguar, em português), para denominar esses animais, formas, aliás, exportadas para línguas europeias, como o russo (tapir yaguar, são anta e onça, nesse idioma).

Acrescente-se que o conhecimento do tupi abre ao estudioso um horizonte linguageiro ímpar pelas características bem específicas de uma gramática, de uma fonética e de uma sintaxe completamente diferentes daquelas próprias dos idiomas com que estamos acostumados a lidar, predominantemente de estrutura indo-europeia, ajudando, de resto, a melhor compreender a maneira de pensar e agir do indígena, mantida em boa parte no nosso inconsciente coletivo.

Do lado das línguas africanas, falares integrantes de dois grandes grupos, o banto e o iorubá, constituem a fonte principal do léxico trazido pelos escravizados para a variante brasileira do português.

O depósito de vocábulos de origem banta, em especial do quimbundo e do quicongo, é muito grande e abrange vários aspectos tanto da vida rural quanto das relações urbanas. Especifidades fonéticas, como certas consoantes oclusivo-nasais (grafadas mb, ng, nd), totalmente estranhas ao nosso ouvido, bem como peculiaridades gramaticais, como a ocorrência de classificadores (marcações de coisa, bicho e gente, através de prefixo próprio flexionado na indicação do plural, por exemplo), análogos à nossa conhecida distinção de gênero, dão um colorido especial a esses idiomas e ajudam a melhor entender a adaptação fonética e o conteúdo semântico – e cultural, vai sem dizer – de palavras incorporadas ao português do Brasil.

Do domínio dos falares iorubás e sua riquíssima influência que nos chegou sobretudo através de práticas religiosas trazidas pelos escravizados da costa norte-ocidental da África, destacam-se termos da culinária e das artes, além de um espetacular panteão de entidades sincretizadas no cristianismo oficial da Casa Grande. No âmbito da fonética, o iorubá, em sua principal variante aportada, especialmente na Bahia, deixou, talvez, um traço no falar cantado do baiano, possível reminiscência do idioma tonal trazido da África, em que um mesmo monossílabo, pronunciado com tom ascendente, descendente ou ambos, poderá ter três significados completamente distintos.

Lamentavelmente, estudos linguísticos ameríndios e africanos que poderiam ajudar a compreender em maior profundidade os nossos costumes, algumas de nossas tradições, bem como a nossa fala, através da alma dos povos que dão origem à Nação que ainda se forma no Brasil, só existem em níveis superiores e em meios ultraespecializados. Para que se tenha uma ideia da importância colateral, especialmente sociológica, desse tipo de estudo, vale lembrar que em lituano há mais de 15 diminutivos (a partir da mesma raiz) para a palavra menino e em havaiano há mais de 130 nomes de chuvas e 160 nomes de ventos, indicando de forma particularíssima aspectos importantes da vida dos respectivos falantes e a sua maneira de interagir com a natureza. Infinitos tesouros culturais e inigualável sabedoria humana, infelizmente em processos de extinção, seja por desinteresse oficializado, seja por genocídio continuado dos falantes, podem ainda estar ocultos nas estruturas linguísticas que nos legaram os negros escravizados e nossos antepassados silvícolas.

Mas, apesar – e, talvez, por causa mesmo – de nossa origem e realidade existencial afro-ameríndia, nada disso interessa à Casa Grande, pois, afinal, é um tipo de imersão acadêmica (termo depreciativo em ambientes prevalentemente empresariais) que não dá dividendos, que se tem como desprovida de aplicação prática, podendo, por outra parte, perigosamente revelar verdades incompatíveis com as fantasias idiotizantes de embranquecimento artificial, tanto físico como cultural.

 

Fonte: Outras Palavras.

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