Por Ana Gabriela Oliveira Lima e Amauri Eugênio Jr.

Jornal pioneiro contra racismo deu voz a movimento negro há 100 anos. O Clarim d’Alvorada foi lançado em 6 de janeiro de 1924 por intelectuais negros e se tornou referência ao discutir questão racial.

Há 100 anos, a criação de um jornal na cidade de São Paulo deixava marcas com o pioneirismo em relatos contra o racismo e a ampliação de espaço ao movimento negro.

 

Fundado no dia 6 de janeiro de 1924 pelos intelectuais negros Jayme de Aguiar e José Correia Leite, O Clarim d’Alvorada se tornou referência na politização do debate sobre a questão racial, segundo Flávio Thales Ribeiro Francisco, doutor em história social pela USP (Universidade de São Paulo) e professor da UFABC (Universidade Federal do ABC).

 

Embora outros jornais já debatessem questões ligadas ao que chamavam de “preconceito de cor”, termo utilizado na época, O Clarim intensificou o caráter noticioso e combativo anos após seu surgimento, quando mesclava denúncias de racismo com conteúdo de entretenimento.

 

“Em 1928, O Clarim se consolida como um jornal político. Isso teve a ver com o contexto nacional. O movimento negro acompanhou o processo de articulação de agendas baseadas em diferentes correntes ideológicas. Na época, o debate público efervescia. Isso fica claro com a Revolução de 1932”, afirma.

 

Segundo Francisco, especialistas identificam a formação da imprensa negra ainda no século 19. No período, o foco era o debate contra a escravidão e a respeito da situação dos negros livres. Após a abolição, em 1888, as publicações propõem debates sobre a nova condição dos negros.

 

De forma similar, O Clarim focou a importância da educação para a população negra e os limites da abolição implementada. “Falava da importância de se criar uma segunda abolição, porque a primeira não havia sido suficiente para dar conta da integração da população negra“, diz.

 

O jornal também circulou em outras cidades paulistas, como São Carlos e Sorocaba, e em algumas capitais, como Salvador e Rio de Janeiro, afirma Maria Cláudia Ferreira, doutora em história, política e bens culturais pela FGV (Fundação Getulio Vargas) e professora da Unilab (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira).

 

O periódico chegou ainda aos Estados Unidos e, no Brasil, dedicava espaço para divulgar conteúdos de jornais norte-americanos.

 

As páginas de O Clarim apresentaram poemas, biografias de abolicionistas e divulgação de datas importantes para a comunidade negra, além de discussão sobre como enfrentar o racismo.

 

Hoje, o jornal é considerado por historiadores um material importante para compreender o que acontecia com os negros brasileiros no século 20, afirma Ferreira. “Noticiou situações de racismo ignoradas pela imprensa nacional e local, que acabava não retratando parte da realidade da sociedade paulistana.”

 

Segundo João Paulo Lopes, doutor em história política pela Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e professor do Instituto Federal do Sul de Minas, o jornal se destaca de outras publicações pela longevidade e regularidade. A periodicidade variou entre semanal, mensal e trimestral. A tiragem chegou a 5.000 exemplares.

 

Bem-sucedido na época e com uma oficina gráfica própria, O Clarim sofreu um baque em 1932, quando foi depredado por integrantes da Frente Negra Brasileira, a quem começou a fazer oposição.

 

De acordo com Lopes, a invasão se deu em razão de diferenças pessoais entre Correia Leite, um dos fundadores do jornal, e os irmãos Arlindo Veiga dos Santos e Isaltino Veiga dos Santos, que presidiam a Frente.

 

Depois da invasão, Leite tentou revitalizar o periódico. Ele lançou alguns números em 1935 e fez uma última tentativa em 1940, mas a publicação não teve continuidade.

 

“O jornal se destaca também pela insistência desse homem [Leite], que é uma figura muito importante do movimento negro do século 20”, afirma Lopes.

 

José Correia Leite nasceu em 1900, em São Paulo. Filho de mãe negra e pai branco que não o reconheceu, é considerado um dos nomes mais importantes do movimento negro e da imprensa negra brasileira. Ele ajudou a fundar, em 1931, a Frente Negra Brasileira, com quem depois romperia. Em 1932, fundou o Clube Negro de Cultura Social. Criou a Revista Niger, em 1960, e colaborou com as publicações A Voz da Raça e O Mutirão, dentre outras iniciativas.

 

Jayme de Aguiar foi outro importante ativista do movimento negro. Filho de família alforriada, nasceu e cresceu em São Paulo. Atuou em publicações como Evolução e O Patrocínio.

 

Segundo Lopes, um dos principais méritos de O Clarim foi dar voz a um público que não aparecia ou era retratado de maneira pejorativa na imprensa comercial.

 

“Ter um jornal era essencial para divulgar outra narrativa sobre a população negra”, afirma Lopes. “Sair do lugar de subalterno e falar, escrever, concorrer com outras visões da história.”

 

A população negra precisa estar na estrutura dos jornais – Entrevista com Maria Cláudia Cardoso Ferreira

 

Por Amauri Eugênio Jr.

 

Doutora em História, Política e Bens Culturais pela FGV fala do legado do jornal “Clarim da Alvorada”, que completa 100 anos em 2024

 

O jornal “Clarim da Alvorada” pode ser considerado um marco da imprensa brasileira – não somente da imprensa negra no país. Fundado em 1924 pelos jornalistas Jayme de Aguiar e José Correia Leite, o veículo teve 58 edições veiculadas até 1932 e destacou-se graças à linha editorial em favor da associação, educação, integração e ascensão social dos negros. Vale dizer que houve tentativa de retomar as atividades do “Clarim” em 1940, mas o seu fim definitivo ocorreu após a publicação de uma única – e última – edição.

 

Ainda que o “Clarim da Alvorada” tenha marcado época enquanto esteve vigente e tenha se tornado uma referência para a imprensa, em especial negra, o jornal é também o símbolo de notória sub-representação de profissionais negras e negros em veículos de imprensa – seja impressa, online, televisiva ou radiofônica.

 

Tal disparidade persiste nos dias atuais, ainda que o cenário seja consideravelmente menos excludente em comparação com a primeira metade do século XX. Segundo a pesquisa Raça, gênero e imprensa: quem escreve nos principais jornais do Brasil?, desenvolvida pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ação Afirmativa (Gemaa), núcleo do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), 9,5% de profissionais nos jornais Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo são negras e negros (6,1% de cor parda e 3,4% preta).

 

Para falar sobre a importância histórica do “Clarim da Alvorada” para a imprensa brasileira – em especial negra -, a Plataforma Ancestralidades entrevista Maria Cláudia Cardoso Ferreira, doutora em História, Política e Bens Culturais pela Fundação Getulio Vargas (FGV). Cardoso Ferreira é também professora adjunta da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab).

 

O diálogo passou pela trajetória do veículo, que chega em 2024 ao primeiro centenário de fundação, a sua importância para a população afro-brasileira e a sua influência na imprensa negra. Confira a seguir a íntegra do diálogo.

 

Os perfis de Jayme de Aguiar e José Correia Leite dizem respeito a uma disrupção no perfil de pessoas negras à época, cuja maioria ainda não tinha acesso à educação. É correto pensar que veículos como o “Clarim da Alvorada” representavam um movimento de emancipação e ruptura com a herança escravagista do começo do século XX?

 

Houve, durante um tempo, a ideia de que eles estavam fora da comunidade negra, mas eles a integravam. É necessário ter muito cuidado com a ideia que se tem sobre elite negra, pois se trata de um conceito que não deve ser lido como a elite com a qual nos acostumamos dentro do contexto dessa modernidade e urbanização. Por exemplo, Correia Leite teve formação no início e aprendeu a carreira jornalística com Jayme de Aguiar. No caso de Aguiar, ele foi apadrinhado pela família Paula Souza, da elite econômica de São Paulo – ele estudou em um colégio tradicional. Mas, ao mesmo tempo, considerando o contexto em que eles viveram, enquanto população negra, eles destoam.

 

Quando estudei o “Clarim” e as outras organizações no momento, eles estavam inseridos na comunidade negra, participavam das atividades e moravam nos bairros negros. Mas, ao mesmo tempo, eles atuavam como uma vanguarda. Eles destoavam um pouco e foram os primeiros, naquele contexto, a minimamente acessar esses direitos, via apadrinhamento ou via ajuda mútua. Não se trata de uma política pública. Todavia, ao mesmo tempo, parecia até que não aconteceu isso em outros momentos da história do país, mas havia negros estudando e acessando esses mecanismos no século XIX.

 

Mesmo com as especificidades e particularidades, fugindo da perspectiva da nomenclatura “elite”, é possível considerar que veículos como o “Clarim” representavam um signo de resistência da população negra, pensando na imprensa como um megafone para a reverberação de pautas caras à população negra da época?

 

Sim. A prática da imprensa, dos veículos de comunicação menores, aconteceria no século XX. É possível encontrar em São Paulo diversos jornais, mas há também documentação que mostra isso acontecendo também no século XIX. No caso de São Paulo, as outras comunidades também tinham seus jornais, o que precisa também ser destacado -, pois é um local muito segmentado. Nesse contexto, havia comunidades descendentes de italianos, espanhóis e portugueses. A ideia de que a comunidade negra não tinha um jornal próprio estava presente nela.

 

As organizações e clubes negros tinham seus jornais de comunicação interna. É possível encontrar a documentação, alguns fragmentos, e jornais microfilmados na Biblioteca Nacional, na Biblioteca Mário de Andrade, na USP e na PUC-SP. Os clubes tiveram esses jornais, mas o “Clarim da Alvorada” aglutinou a comunidade negra toda. Ele passaria a noticiar o que acontecia em diferentes lugares, bairros, clubes, associações – alguns eram dançantes enquanto outros eram mais complexos, sendo alguns saraus ou grupos de futebol.

 

Os negros estavam organizados no seu associativismo, voltados geralmente ao entretenimento. No contexto da década de 1920, isso começaria a ganhar outras características: primeiro, com o “Clarim da Alvorada” e o Centro Cívico Palmares, que também um pouco desse estilo. Mas o “Clarim” é o jornal que aglutinaria isso tudo. Desse ponto de vista, é um símbolo de resistência, até porque, com o tempo, ele começa a ganhar características mais militantes, para usar um termo atual.

 

O “Clarim” tinha perspectiva um pouco mais científica e humorística no início e passou a se denominar noticioso e de combate. É correto pensar que se tratou de um movimento para passar para outro estágio dentro do ativismo antirracista?

 

Sim. Não gosto da perspectiva evolutiva, no sentido de que as pessoas vivem e participam dos processos, sofrendo entraves, decepções e vantagens – eles ganham alguma coisa e veem que dá certo. Isso é uma coisa importante: são jovens que veem a leitura como uma forma de compreender aquela realidade e querem também compartilhar vivências. O “Clarim” foi literário, científico e humorístico quando surgiu, mas se tornou posteriormente literário, noticioso e humorístico.

 

Quando mudou de fase, a partir de 1927, entrou para o estilo noticioso, literário e de combate. Era noticioso, pois a comunidade negra deveria saber o que acontecia e não saía nos outros jornais – ou, quando o negro era retratado no jornal, era sempre da perspectiva negativa. Nesse sentido, o “Clarim” trazia a perspectiva de notícias da comunidade negra: casamentos, aniversários, passeios, ou quem chegou, voltou, morreu ou nasceu. Em âmbito literário, por tratar-se de uma maneira de apresentarem suas produções artísticas literárias. Eles usavam pseudônimos para mostrar que o jornal tinha muita gente escrevendo para lá – inclusive pseudônimos femininos para atrair o público feminino na leitura do jornal.

 

Tratava-se também de um jornal de combate: no começo não era necessariamente o combate ao racismo, mas à apatia do negro, da perspectiva deles naquele contexto. Eles consideravam que havia condições propícias para [ascender], mas a comunidade negra não conseguia perceber. Eles diziam até que os negros estavam piores do que no período da escravidão, pois enquanto havia o regime escravocrata como atraso, enquanto à época do jornal havia liberdade e os negros ainda não conseguiram entender isso. Consideravam a ideia da educação da comunidade negra como uma luta contra a apatia – usava-se muito o termo “elevação moral do negro”.

 

Com o tempo, Correia Leite assumiu o jornal, pois Jayme de Aguiar se casou e achava que não conseguiria conciliar as duas coisas. Ao assumir, Correia Leite percebeu que não se tratava apenas de uma luta contra a apatia ou um problema de elevação moral do negro. Havia um impedimento, por muitas das vezes, orquestrado e direcionado para essa ascensão cidadã. Mas o combate era ao racismo – ainda que eles não usassem esse termo, pois não era do contexto deles. Eles usavam expressões preconceito de cor, elevação moral do negro, discriminação, que às vezes aparecia. O termo que eles usavam era preto, não negro – negro surgiria bem depois na comunidade.

 

Um ponto que vem à tona diz respeito à duração, à periodicidade e também à maior sustentabilidade financeira do “Clarim da Alvorada”. Quão representativa foi a longevidade do jornal, pensando em fatores econômicos e sociais?

 

O início do jornal ocorreu em 1924 e o término, em 1932. Depois, eles voltam em 1940. Mas o que acontece? Correia Leite se dedicava ao jornal – era o emprego dele. Posteriormente, ele conseguiria um emprego, pois provavelmente era filho de uma pessoa importante da elite econômica paulistana, que não assumiu a paternidade. Na sequência, ele estaria empregado em um órgão público. Nesse tempo, quando assumiu a redação do jornal, fez diversos trabalhos muito simples, mas o jornal viraria, com o tempo, o emprego dele.

 

Inclusive, em 1931, foi fundada a Sociedade Cooperadora O Clarim da Alvorada – uma empresa mesmo. É muito legal pensar que, em 1931, pessoas negras pensavam em viver do jornal, da literatura e da escrita – havia ali algumas estratégias. Ele contava, por exemplo, que iam aos bailes para vender o jornal – e iam para o interior vender o jornal também. Algumas associações não aceitavam, mas muitas sim.

 

Eles conseguiram fundar uma oficina – compram a estrutura toda para poder fazer o jornal – e a instalam nos fundos da casa. Eles têm isso nos fundos da Casa do Correia Leite e isso é outra coisa também que dá certa estabilidade para o jornal. Ainda que tenha havido algum retorno, houve muita renúncia também do ponto de vista do Correia Leite, mas não só dele. Houve outras personalidades nessa batalha: Frederico Baptista, Henrique Cunha e Horácio da Cunha. E o próprio Jayme de Aguiar não estava mais na direção do jornal, mas continuou a colaborar.

 

É interessante destacar o jornalismo como profissão em um contexto no qual não havia faculdade de jornalismo – o jornalista é o cara que aprende a fazer. Eles são jornalistas e intelectuais, e uso o termo intelectuais militantes na minha dissertação, pois eles são intelectuais. O intelectual não necessariamente deveria ser a pessoa que havia se graduado, mas sim quem educa, é reconhecido e respeitado pela comunidade, ajuda a transformar e que é vanguarda de alguma maneira. Nesse sentido, ele e os outros têm esse papel, sim.

 

“Para além do repórter estar em espaços de visibilidade, é necessário pensar-se nas pautas e nos espaços. A população negra precisa estar na estrutura dos jornais e é necessário considerar isso ao se pensar no problema da imprensa no Brasil.”

 

É correto pensar que a perspectiva da democracia racial, assim como o Estado Novo impactou veículos como o “Clarim” e demais jornais geridos por lideranças negras?

 

Há um apagamento da ideia de que, em 1937, houve a instauração de uma ditadura civil, que impediu o funcionamento de diversas organizações. O “Clarim da Alvorada” acabou em 1932, pois houve dois contextos. Um disse respeito às disputas internas entre militantes – o “Clarim” começou a rivalizar com a Frente Negra Brasileira. Um ponto muito interessante quando pesquisei, pois a minha perspectiva de análise é de mostrar quão complexo e promissor foi o contexto da militância negra dos anos 1930 em São Paulo: a rivalidade não foi sinal de fracasso do movimento negro, mas sim de projetos diferentes. Havia uma pluralidade de militantes e produziu muita coisa, mas também rusgas.

 

Houve embate desde 1931, quando a Frente Negra surge. Correia Leite não concorda com os encaminhamentos da Frente Negra e saiu na votação do estatuto, por achá-lo centralizador e autoritário – com o qual ele não concorda. Começou a haver alguns embates quando ele saiu, por ele ser uma pessoa com proeminência – idem Arlindo Veiga dos Santos e Isaltino Veiga dos Santos. Aconteceu também, em 1932, o movimento constitucionalista. Houve um grande medo de perseguição, no caso da União, e várias organizações começaram a recuar – e o Estado Novo aconteceu em 1937. Percebe-se, a partir de 1932, um contexto de diminuição não somente da militância negra.

 

Aconteceu uma tentativa de empastelamento do jornal por parte dos ativistas da Frente Negra. O pessoal do “Clarim” lançou um novo jornal para fazer uma crítica à Frente. Havia toda uma questão política em torno disso, pois eles tinham perspectivas diferentes entre a Frente Negra e o “Clarim da Alvorada”. Mas depois, nos anos 1940, veio, por exemplo, o jornal Quilombo como um veículo importante também nesse contexto, ainda de democracia racial. No entanto, o rompimento com a ideia de democracia racial só aconteceria mesmo na mesma época da fundação do Movimento Negro Unificado (MNU), em 1978, mas [se intensificou] nos anos 1980.

 

É correto considerar o “Clarim” e demais veículos negros das primeiras décadas do século XX como fontes de inspiração direta e iniciativas como Cadernos Negros e demais ações que culminaram, por exemplo, no MNU?

 

Sim. Inclusive, a historiografia do movimento e do ativismo negro no Brasil não trabalha atualmente com a ideia de renascimentos. A fundação do movimento negro não é dos anos 1970. Há algumas pesquisas, vídeos feitos nos anos 1980 com militantes que atuaram tentando recuperar essas memórias. O livro E Disse o Velho Militante, organizado por Cuti [N.R.: Luiz Silva, doutor em Literatura Brasileira] sobre memórias de José Correia Leite, é muito importante. O Quilombhoje, que é feito por Márcio Barbosa, é muito bom. Idem o Quem é Quem na Negritude Brasileira, catálogo com pequenas biografias, nos quais esses militantes todos estão citados. Esse material é dos anos 1980 também, da Fundação Cultural Palmares.

 

O movimento negro é anterior aos anos 1930, inclusive. Ainda que a nomenclatura movimento negro não existisse sob esse ponto de vista, a organização, a mobilização e o associativismo negros estiveram ali – e lutando contra a chamada apatia, ou seja, subjugação e subalternização. Idem em favor da educação. O movimento negro é um sujeito político das primeiras décadas do século XX não somente de São Paulo. O que aconteceu: São Paulo, por algumas razões, conseguiu registrar e deixar essas fontes históricas. Foi possível debruçar-se sobre elas e estudá-las pois houve, provavelmente, organizações em outros lugares que não deixaram esses documentos, sejam depoimentos orais ou registros escritos.

 

É inevitável traçar relações entre o trabalho do “Clarim” e demais veículos negros na época como, atualmente, “Alma Preta”, “Nós, Mulheres da Periferia” e “Mundo Negro”, por exemplo.

 

De alguma maneira, isso revela a continuidade de uma imprensa adicional. O século XX e mesmo a entrada no século XXI provam que nossos temas ainda não são nacionais. Temos feito o trabalho de nos colocarmos como sujeitos e produzirmos narrativas sobre nós – e ficarão para a posteridade. Foi muito importante esses jornais terem existido para podermos acessar o que aconteceu no passado. Isso continua a acontecer, seja via veículo impresso ou mídias digitais – e a mesma coisa acontecerá no futuro.

 

Possivelmente, encontraremos muito mais registros sobre nossas vidas nesses veículos da imprensa negra do que nos outros, considerados como todos os brasileiros. Mesmo que Campinas também tenha [obtido espaço], com o jornal “Getulino”, houve essa forma de segregação, especialmente no caso de São Paulo, a qual aconteceu e provocou, de algum modo, a formação de nichos. Esses nichos provocaram essa introspecção dos grupos e produção de narrativas muito próprias.

 

Mas isso não significa que não tenha havido iniciativas e organizações em outros estados e cidades. O caso da Frente Negra mostra isso: as organizações das cidadezinhas se filiavam. Isso mostrou a sua capilaridade, ao ocorrer espalhamento especialmente pelo Sudeste.

 

Em paralelo, por mais do que a quantidade percentual de repórteres negros e negras tenha aumentado em redações de grandes jornais, a sub-representação ainda é notória. Não raras vezes, temas caros à população negra são inviabilizados ou enviesados para outra direção e, com isso, o debate não é tão propositivo como poderia ser.

 

Sem dúvida. É uma imprensa na qual você não se vê nela. Para além do repórter estar em espaços de visibilidade, é necessário pensar-se nas pautas e nos espaços. A população negra precisa estar na estrutura dos jornais e é necessário considerar isso ao se pensar no problema da imprensa no Brasil.

 

Deve-se destacar também o fato de jornalistas negros não virarem referência, inclusive nos cursos de jornalismo. Ao procurar-se, por exemplo, pela memória da imprensa no Brasil, não é possível encontrá-los em catálogos [de jornalistas históricos]. É necessário registrar que José Correia Leite, Federico Batista e Henrique Cunha foram jornalistas e colaboraram para a história da imprensa no Brasil, a história do negro no Brasil e para a própria história do país.

 

Somente é possível ter acesso sobre o que aconteceu no país em 1932, sob a perspectiva do negro, ao ler a imprensa negra. O olhar do negro sobre o que acontecia não apareceu em outro jornal: somente na imprensa negra, especialmente o “Clarim da Alvorada”. Como pode as pessoas quererem estudar isso e não olhar para o “Clarim da Alvorada”? É um olhar torto sobre o que aconteceu, pelo menos em São Paulo, do contexto de 1930.

 

Fonte: Ancestralidades e Geledés / Folha de São Paulo.

 

 

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