Atuação conjunta dos Ministérios da Saúde, das Relações Exteriores, das Mulheres e dos Direitos Humanos e Cidadania retira país de aliança conservadora e tem aprovação da sociedade civil, enquanto desperta indignação da extrema-direita no Congresso.

A retirada do Brasil da Declaração do Consenso de Genebra no mês passado e a revogação pelo Ministério da Saúde da Portaria vigente no país desde 2020 que obrigava médicos a informarem o aborto à autoridade policial são atualizações de posicionamento vigorosas diante das redes nacionais e internacionais. Informam ao mundo que o Governo Lula está disposto a garantir os direitos das mulheres, incluindo o direito ao aborto nos casos previstos na legislação brasileira.

O Consenso de Genebra é uma aliança consolidada em 2020 por 32 países, após a publicação de documento assinado por todos eles que exclui o aborto como opção para as mulheres e defende o “fortalecimento do papel da família”. A abordagem conservadora da extrema-direita que tenta colocar em oposição família e direito ao aborto é um recurso narrativo central do grupo que se define “pró-vida” e nega qualquer possibilidade de interrupção de gravidez. Por isso, ao desligar o Brasil esta semana do Consenso de Genebra, o governo defendeu, por meio de nota oficial assinada por quatro ministérios, o respeito às diversas configurações familiares. A saída da aliança veio com a pressão e com o acúmulo de informação da sociedade civil e de organizações feministas. Desde 2021, nove organizações repercutiam relatório (leia aqui) que detalha a gravidade do Consenso. A publicação serviu de referência para o Governo de Transição nos últimos meses.

“A nota conjunta informando que o Brasil deixa de ser signatário do chamado Consenso de Genebra é muito importante em vários sentidos porque sinaliza para a sociedade brasileira e para os atores internacionais, inclusive para as Nações Unidas, que o Brasil está retornando aos seus compromissos com os parâmetros estabelecidos nas Conferências dos anos 90 sobre as matérias relativas à saúde reprodutiva (veja a visualização mais abaixo), incluída a definição do aborto como grave problema de saúde pública e a recomendação do artigo 106K da Plataforma de Ação de Pequim sobre a Mulher, que pede a revisão de legislações punitivas, mas também a definição do programa sobre o reconhecimento das várias formas de família”, analisa a pesquisadora e co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política (SPW), Sonia Corrêa. Ela, que esteve nas conferências dos anos 90 e segue acompanhando e pesquisando políticas sexuais e de direitos reprodutivos, destaca que o Brasil foi um dos protagonistas nas negociações que décadas atrás levaram a esses consensos e definições.

A aliança internacional que seguirá na ativa buscando restringir os direitos reprodutivos das mulheres e defendendo um conceito de saúde da mulher distante da autonomia sexual foi liderada em 2020 por seis países, entre eles Brasil e Estados Unidos. A articulação por aqui se deu com o Ministério das Relações Exteriores, à época do ministro Ernesto Araújo, e com o agora já extinto Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Damares Alves, então à frente da pasta, enviou vídeo para a cerimônia que selou o Consenso.

“A saída do Brasil do Consenso de Genebra é um movimento importante para marcar um novo posicionamento do Brasil na agenda internacional dos direitos humanos que no Governo Bolsonaro estava alinhada a países ultraconservadores e que são reconhecidamente violadores de direitos humanos, como Arábia Saudita e Hungria, que agora está liderando o Consenso. É uma sinalização muito positiva para dentro e para fora de que a gente está novamente comprometido com os direitos humanos e sexuais reprodutivos. A partir de agora vamos conseguir caminhar melhor para seguir internalizando esses compromissos internacionais com políticas públicas voltadas para garantia dos direitos humanos”, avalia a coordenadora-executiva do coletivo Nem Presa Nem Morta, Laura Molinari.

Pactos Internacionais assinados pelo Brasil

 

2023 – Brasil saiu do Consenso de Genebra, criado em 2020 por aliança conservadora É contra o aborto e defende apenas um modelo de família

1979 – Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher

1994 – Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher

1995 – Declaração de Pequim

2002 – Protocolo facultativo à Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher

2023 – Compromisso de Santiago

2023 – Declaração do Panamá

A ex-ministra e senadora Damares Alves (Republicanos/DF) diz que vai trabalhar para reverter a decisão do Governo Lula (PT). Em suas redes sociais, ela escreveu que “o Consenso de Genebra foi uma das maiores alianças assinadas pelo Brasil nas últimas décadas. Em síntese, ele garante a proteção dos países de interferências e embargos internacionais, prevalecendo a soberania nacional na temática do aborto”. Alves ainda declarou que “Lula acaba de enfraquecer a política pró-vida no Brasil”.

A deputada federal Chris Tonietto (PL/RJ), conhecida por seu trabalho parlamentar contrário ao direito ao aborto por um viés fundamentalista católico, fez eco à senadora com declarações alarmistas nas redes: “O modo ‘turbo’ de destruição em massa da pauta pró-vida foi acionada pelo (des)governo Lula como, infelizmente, já era de se esperar! Obviamente tomaremos todas as providências cabíveis para tentar impedir o avanço nefasto da cultura da morte. Não descansaremos!”

Ambas seguem reproduzindo o discurso que não dialoga com a realidade das mulheres, indo na contramão de países vizinhos que assumiram o aborto como questão de justiça reprodutiva e de saúde pública, como mostramos no documentário Verde-Esperanza (veja o trailer), lançado em 2022. No Ministério da Saúde, entretanto, o fundamentalismo parece ter sido barrado por ora. Nesta semana, a ministra Nísia Trindade derrubou a portaria que havia sido criada pelo Governo Bolsonaro em agosto de 2020, logo após o escândalo da tentativa de impedimento de acesso ao aborto por uma menina grávida de 10 anos. A portaria criava barreiras para mulheres e meninas interromperem gravidez em caso de estupro, ao exigir que se submetessem a situações constrangedoras e violentas, como relatar o estupro à equipe de saúde ou obrigar médicos a comunicarem autoridade policial.

Molinari explica o impacto da medida: “A revisão desta norma técnica é importante para garantir que o acesso à saúde não seja colado necessariamente ao acesso à justiça. É um cuidado básico porque o lugar profissional de saúde é o acolhimento, é o cuidado, e não é a investigação policial.” Ela reforça, porém, que outros marcos técnicos precisam ainda ser revistos, como a cartilha do Ministério da Saúde que diz que “não existe aborto ‘legal’”. No momento, o documento está indisponível no endereço onde antes era possível acessá-lo.

 

Fonte: Gênero e Número.

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