Luiza Pollo, Colaboração para o TAB

“Falar de terra no Brasil é falar de algo manchado de sangue”, define Tatiana Emilia Dias Gomes, professora de direito agrário na Faculdade de Direito da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e assessora jurídica popular. Se, até 1850, todo o território nacional pertencia ao rei — — que cedia o pedaço de terra que quisesse a quem ele quisesse, pelo menos até 1822, com a abolição da lei das sesmarias — e a escravidão ainda imperava, mesmo hoje, o acesso a terra é principalmente dos brancos, e, mais ainda, de quem tem dinheiro.

Grilagem, racismo fundiário e falta de reconhecimento de territórios indígenas e quilombolas são alguns dos temas que cercam a discussão sobre o direito à propriedade no país desde as primeiras práticas e leis sobre o tema. A primeira lei a definir propriedade privada sobre a terra — a Lei de Terras, de 1850 — já nasce excludente, e diversas decisões subsequentes contribuem com a desigualdade racial no campo fundiário, afirma Gomes, em conversa com o TAB.

Dono e proprietário. Promulgada em 1850, a Lei n.º 601/1850 ficou conhecida como Lei de Terras, ao instituir no país a regulamentação do direito de propriedade por meio da compra ou concessão. Antes disso, toda terra pertencia ao rei de Portugal, que desde a colonização implementou o sistema de sesmarias para estimular a produção, principalmente de café e cana-de-açúcar, aqui na colônia — seguindo a lógica da exploração dos recursos naturais a todo custo. Talvez você se lembre disso lá das aulas de História, mas as sesmarias eram entregues aos sesmeiros, que precisavam cumprir diversos requisitos definidos pela Coroa, como o cultivo do solo por determinado prazo, sempre sob a sempre sob a lógica da exploração dos recursos naturais. “Plantation”, lembra?

Como ficava quem não era sesmeiro? “A sesmaria foi o modelo oficial, mas, no subterrâneo, a gente teve muitas outras ocupações acontecendo. Isso serviu para o português pobre, para os povos originários que já ocupavam as terras, para as famílias negras escravizadas…”, afirma a professora. Tudo isso, claro, precisou ocorrer, desde o início, à margem da lei.

Ninguém descobriu o Brasil. Parece óbvio, mas vale fazer parênteses para lembrar que essas divisões da terra foram feitas a despeito da vontade dos habitantes que já estavam por aqui antes da chegada dos portugueses. “O uso indígena da terra era muito diferenciado. Cada etnia usava grandes espaços, onde você encontrava áreas de plantação, de coleta de frutos e outros alimentos, de culto aos antepassados. Tudo fazia parte de um complexo, e o uso da terra era coletivo. A ideia de apropriação vem como parte da política [portuguesa] que se contrapõe a essa cultura anterior”, analisa Tulio Chaves Novaes, pesquisador do LEER-USP (Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e e Discriminação da Universidade de São Paulo) e professor da UFOPA (Universidade Federal do Oeste do Pará), em entrevista ao TAB.

Voltando à divisão de terras… Com a promulgação da Lei de Terras, à primeira vista, pode parecer que haveria uma democratização do acesso — afinal, não era mais só o rei que definia para quem iriam os lotes. Claro que não foi bem assim. “Quem podia ser proprietário diante dessa situação jurídica que se desenhou no Brasil? Quem tinha condições de pagar, geralmente à vista, em leilões. Eram espaços imensos, que só poderiam ser adquiridos por quem tinha recursos — normalmente, pessoas brancas, imigrantes europeus, que pagavam em ouro e podiam fazer o que bem entendessem na terra”, explica Novaes. Na outra ponta da escala jurídica de acesso à terra, estão os posseiros. Escravizados, indígenas e outras pessoas que não tinham acesso legal à terra conseguiam direito sobre ela por meio da posse — o que não garantia, nem de longe, as mesmas liberdades de uso e venda dos proprietários. Algumas dessas ocupações viriam futuramente a se tornar os quilombos.

Lei Eusébio de Queiroz. E como a escravidão interferia nisso tudo? A Lei de Terras surgiu pouco depois da Lei n.º 581/1850, conhecida como Lei Eusébio de Queiroz, que estabeleceu medidas de repressão ao tráfico de africanos(as) escravizados(as) para o Brasil. Isso quer dizer que o processo de escravidão começava a desacelerar, e já se via no horizonte a possibilidade de abolição, ressalta o pesquisador da USP. “Mesmo assim, a concepção jurídica que se tinha sobre a pessoa escravizada eliminava inclusive a possibilidade de ela adquirir terra no sentido formal, por conta da associação dessas pessoas com a ideia de mercadorias, no sentido jurídico”, pondera Gomes. Nas sesmarias, além de trabalhar, os indivíduos escravizados eram tidos como renda capitalizada (ou seja, garantia de crédito nas operações bancárias), como explica a professora, em artigo sobre o tema. Com a promulgação da nova lei, a terra assume esse papel.

Não parou por aí. Gomes ressalta que a Lei de Terras pode até ter sido um grande marco no que ela chama de racismo fundiário, mas outras decisões futuras ajudaram na perpetuação de desigualdades por meio da posse de terra. “Se o direito à propriedade já era muito difícil no século 19, no 20 se tornou uma promessa não cumprida. O não reconhecimento dos territórios indígenas, das comunidades negras rurais, a reforma agrária que chegou a ser pautada na Constituição de 1946 mas que foi onerosa, parcelar e residual. São essas decisões que vão sendo tomadas e vão reforçando a estrutura fundiária que a gente tem desde a Lei de Terras”, avalia a professora. Tudo isso se insere, diz ela, em um modelo de oposição à desconcentração de terra, reforçada sob a decisão econômica do país de se posicionar como mono-agro-minério-exportador. Além disso, a professora lembra que a propriedade de terra, mesmo com fraudes cartoriais, ajuda a acessar dinheiro e, consequentemente, perpetuar riqueza por gerações. “Obter terra no Brasil é, sobretudo, acessar crédito público”, define. “E eu falo com tranquilidade — como dizem os personagens do programa ‘Choque de Cultura’ (risos) — que vários registros imobiliários que chegam na minha mão, de imóveis gigantescos, você vai percebendo uma série de fraudes. É difícil dizer quem é proprietário no Brasil seguindo tudo que determina a legislação desde 1850.

O peso da propriedade no patrimônio. Sob contratos nem sempre legais e sem interesse em uso social da terra — descrito em 1964, no Estatuto da Terra, mas determinado apenas pela Constituição de 1988, destaca Novaes, da USP e da UFOPA —, a propriedade da terra vai se perpetuando de geração em geração. Atualmente, mesmo o acesso a moradia nas cidades espelha o racismo estrutural. Uma pesquisa da USP de 2018 mostra, por exemplo, que a divisão entre negros e brancos em bairros de São Paulo não ocorre só por diferenças econômicas, mas remete também, simplesmente, à cor da pele. “É importante se lembrar do contexto histórico e econômico”, defende Mariana Ferreira dos Santos, advogada, empreendedora e ativista especialista em questões imobiliárias. “Isso se reflete não só na questão do direito urbanístico e imobiliário, mas também no direito econômico — em como essas pessoas são privadas de políticas de acesso ao crédito. O acesso à moradia no Brasil, na maioria das vezes, é por financiamento imobiliário, ainda muito vinculado ao sistema bancário, quando muitas dessas pessoas nem sequer são bancarizadas”, afirma ao TAB. Ela lembra que “o sonho da casa própria” fica impedido desde o início, pela impossibilidade de acesso ao crédito imobiliário. Além disso, Santos levanta a questão da exclusão proposital de pessoas de baixa renda de determinadas regiões das cidades. Não são raros os debates sobre desapropriações para a construção de aeroportos ou outros projetos. Quem não se lembra das famílias que precisaram dar lugar a estádios da Copa do Mundo de 2014?

Outros países. A desigualdade racial pautada pelo acesso desigual de terra e moradia não é exclusividade do Brasil. Nos Estados Unidos, por exemplo, destacam-se marcos históricos, como o momento em que os escravos libertados quase receberam terras. Quase, porque o presidente Abraham Lincoln estava prestes a assinar essa decisão quando foi assassinado. Seu sucessor, Andrew Johnson, foi no caminho oposto. Futuramente, os norte-americanos viram problemas parecidos com os citados por Santos em relação ao crédito imobiliário. Lá, os negros tinham dificuldade em acessar hipotecas asseguradas, e se viam impedidos pelos próprios corretores de comprar imóveis em determinadas regiões, pelo receio dos brancos de causar desvalorização da área. Para quem se interessa pelo tema, o episódio “The racial wealth gap”, da série Explained (uma parceria entre a Vox e a Netflix) explica bem esse cenário. Já na África do Sul, “o Apartheid foi sobretudo um sistema de exclusão territorial”, define Gomes, da UFBA. Ela explica que os colonizadores brancos ocuparam terras das quais os negros foram excluídos e, quando o Apartheid terminou, o governo de Nelson Mandela implementou um sistema de reforma agrária baseado na concessão de crédito, elaborado pelo Banco Mundial, — oferecendo recursos para que os negros comprassem suas terras de volta dos brancos, o que foi bastante criticado. Mesmo assim, o modelo foi inspiração para ações em diversos outros países, inclusive no Brasil, com a Lei Complementar 93 de 1998, que instituiu o Banco da Terra.

Perpetuação. “Muda de roupa, mas a lógica permanece a mesma. É a lógica mercantilista, da exploração de recursos naturais, do esgotamento das riquezas da terra”, lamenta Noaves. Para quebrar o ciclo, avalia ele, só com uma mudança de mentalidade ainda não vista. “A quem interessa isso? Sempre ao poder econômico. Hoje em dia, permanece essa lógica na legislação, e os conflitos tendem a se perpetuar.” Continuam os mesmos interesses, e o poder não sai das mesmas mãos, avalia também Santos. “A herança deixada pela branquitude ainda é muito vinculada à terra”, ressalta ela. “E terra é muito vinculada ao poder. Desde o século passado — quando quem tinha terra tinha direito ao voto — até hoje, no Congresso, com o peso da bancada ruralista, que vem, em sua maioria, de herança de pessoas brancas que escravizaram pessoas negras.

Fonte: UOL | Imagem: The New York Public Library.

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1 Comentário

Amauri Mendes Pereira 27 de setembro de 2020 at 12:32

Importantíssimas e oportunas reflexões!!! PARABÉNS à autora!!!
Só para pensarmos juntes: perpetua ou inaugira a institucionalização das desigualdades de acesso à bens materiais e simbólicos?

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