Nunca na história desse país houve tantos brasileiros morando no exterior. Segundo dados do Itamaraty divulgados em setembro do ano passado, o número de expatriados cresceu 35% entre 2010 e 2020, passando de 3,1 milhões para 4,2 milhões. A Sputnik explica por que isso preocupa tanto as principais associações científicas do país.

Embora seja uma população variada em busca de condições de vida melhores, o que mais preocupa os especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil é a fuga de cérebros.
Isso porque a redução nos investimentos nacionais na tecnologia e na ciência é um entrave para profissionais extremamente qualificados — e uma oportunidade para alçar voos internacionais.
Estimativas do professor Eduardo Picanço Cruz, da Universidade Federal Fluminense, apontam que 51% dos brasileiros que moram na Alemanha, por exemplo, têm ao menos uma graduação; na França, o percentual de residentes brasileiros graduados chega a 76%.

Bolsas congeladas

A perda de um contingente extremamente qualificado de pessoas está relacionada também ao baixo investimento em educação. O cenário se agravou com a economia em dificuldades, o que levou muitos estudantes e especialistas a trabalhar e pesquisar em outros países.
Um dos reflexos mais nítidos dessa situação diz respeito às bolsas de mestrado e doutorado que estão congeladas há quase dez anos. Para recuperarem o poder aquisitivo de 2013, seria necessário um reajuste de 66% nos valores — algo que, ante as políticas educacionais do governo de Jair Bolsonaro (PL), não está previsto para ocorrer a curto ou médio prazo.
A vontade de trabalhar no exterior cresceu nas classes mais abastadas. Um levantamento da consultoria Hayman-Woodward, especializada em mobilidade global, aponta que, de março a agosto de 2021, houve um aumento de 62% de brasileiros de classe AB com nível superior indo para os Estados Unidos. Uma evasão de mão de obra ultraespecializada de brasileiros, segundo disse Leonardo Freitas, CEO da consultoria, ao jornal Valor Econômico.

Impacto da fuga de cérebros

Mas qual é a dimensão dessa diáspora de brasileiros altamente qualificados mundo afora?
Em conversa com a Sputnik Brasil, Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação e atual presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), aponta uma complexa cadeia de desdobramentos quando profissionais altamente qualificados deixam o país em busca de condições melhores de trabalho e de vida.

“O impacto é significativo. Porque junto com a fuga de cérebros vem a perda de muitos equipamentos que a gente tem. Por exemplo, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, que fica no Vale do Paraíba. O INPE tem 70% dos seus pesquisadores com direito à aposentadoria. Não se aposentam porque querem continuar a trabalhar, mas se o fizerem, praticamente fecha o INPE. Lá há um setor de lançamento de foguetes, que está praticamente parado. Está praticamente sem gente, então você passa a uma série de problemas que não são só o da fuga de cérebros”, avaliou ele.

Ao mesmo tempo, Ribeiro acrescenta que as universidades acabam ficando ociosas, com muitas vagas.
“Os professores que se aposentam não estão sendo substituídos, ou a pessoa não se aposenta para não deixar a área dela descoberta. Então você tem a formação de gente muito nova, qualificada, mas essas pessoas formadas não estão tendo espaço para render tudo o que elas aprenderam, o que elas estudaram, o que elas pesquisaram. Esse é o grande problema”, aponta o ex-ministro.
E, na hora em que o estudioso deve retribuir todo esse conhecimento adquirido para a sociedade, o governo impõe um corte de verbas.

“Em seguida, você tem a falta de recursos para contratar pessoas, falta de recursos para equipamentos, falta de recursos para ampliar o sistema universitário brasileiro, e isso fica muito claro quando o ministro Paulo Guedes reclama que estão se formando engenheiros demais no Brasil. E diz: ‘engenheiro andando no Uber é sinal que tem engenheiro demais’. Ele está totalmente errado, porque não é que tem engenheiro demais. É que a economia está fraca. Se a economia estivesse boa, a economia estaria colocando todo esse pessoal que se forma no mercado de trabalho. Porque cada vez que você tem um avanço econômico no Brasil, você sente falta de mão de obra qualificada. Aconteceu várias vezes e vai voltar a acontecer se continuarem as coisas assim”, criticou o presidente da SBPC.

Mas a fuga de cérebros tem um aspecto particularmente negativo, de acordo com ele, porque foi o Brasil que formou essas pessoas.

“O Brasil financiou muito da formação — mesmo quando eles fizeram faculdades particulares porque a Capes financia alunos até mesmo em faculdades privadas. O Brasil colocou dinheiro na formação dessas pessoas, que são dadas de presente para estrangeiros. A gente passa pessoas que vieram daqui, que têm todo um conhecimento, uma formação aqui e que nós estamos cedendo essas pessoas”, lamentou.

 

“Estamos perdendo jovens extremamente talentosos que foram formados aqui no Brasil e, portanto, com recursos do país que estão saindo. E rumando para os Estados Unidos, para o Canadá, países da Europa, Austrália e até os Emirados Árabes. Há cérebros brasileiros em vários países do mundo. Esse pessoal era o pessoal que poderia contribuir. Por exemplo, para a inovação disruptiva no Brasil, que é uma necessidade urgente que nós temos. Temos uma inovação incipiente”, analisou.

Investimento em ciência influencia na economia

Para ilustrar a questão que une a ciência à economia, Ribeiro cita as principais fabricantes de produtos de beleza nacionais.
“O Brasil tem uma biodiversidade absurda, e nós precisamos de cientistas para verem as nossas plantas, a nossa biologia, e ver quantas riquezas podem ser dadas a partir disso. As mais charmosas fábricas de cosméticos do Brasil, que são o Boticário e a Natura e a L’Occitane, as três fazem muito produto com plantas da nossa flora. Então a possibilidade de expansão nisso é muito grande. Uma parte disso, inclusive, é exportada. É preciso investir nisso tudo. Não apenas ter dinheiro, mas saber como aplicar esse dinheiro”, avaliou.

“O petróleo do Pré-Sal, que até pouco tempo atrás era considerado inviável e muito caro, hoje representa mais que 50% do petróleo extraído no Brasil. Empresas com protagonismo internacional, por exemplo, na área de compressores, na área de equipamentos elétricos, na área de cosméticos se desenvolveram muito graças à interação com laboratórios de universidades — especialmente, de universidades públicas do Brasil. E esses laboratórios precisam de estudantes. Os estudantes de pós-graduação e também os pós-doutores e os jovens pesquisadores são elementos fundamentais para o funcionamento desses laboratórios. Quando um jovem pesquisador sai do país, é um laboratório que perde uma pessoa preciosa. Mais ainda: está havendo um desestímulo a estudantes para seguirem a carreira de pesquisa. Por exemplo, vários programas de doutorado, inclusive, estão com dificuldade de atrair estudantes”, exemplificou.

O presidente da ABC reivindica uma meta de 2% do PIB brasileiro, de R$ 8,7 tri em 2021, voltada para pesquisa e desenvolvimento.

“E 2% ainda é menos do que é dedicado aos EUA, à Coreia do Sul, à Europa, em Israel. A China está querendo chegar a 2,5% do PIB em pesquisa e desenvolvimento, e o Brasil está em torno de 1%. Certamente, é preciso um entendimento na agenda econômica de que ciência e tecnologia são prioritárias. A fuga de cérebros é composta de jovens que poderiam fazer a diferença nas universidades, nas empresas, ajudando a sociedade brasileira e ajudando, também, a balança comercial do Brasil, agregando valor a essa balança comercial”, finalizou.

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