Por Carlos Cruz Mosquera | Tradução Nathália Urban

Os recentes protestos de jovens negros e pobres na Colômbia, em levantes radicais que abalaram as principais capitais, assustaram liberais e moderados, mas ajudam a entender a dinâmica racista do país e o deslocamento da política à esquerda.

Há um ano, irrompeu uma mobilização histórica na Colômbia. Ela paralisou o país e gerou o momento histórico em que estamos hoje. Os efeitos posteriores das manifestações foram, e ainda são, visíveis em todos os lugares. Significativo é o efeito que os protestos tiveram nas recentes conquistas eleitorais dos setores de esquerda e progressistas – também históricos e inéditos.

Um exame adequado desse momento histórico deve aprofundar e entender as determinantes raciais e de classe muitas vezes esquecidas em relatos mais convencionais. Isso pode nos ajudar a entender como uma mobilização específica sobre um projeto de lei do governo evoluiu para uma com demandas mais amplas e radicais. Afinal, as severas condições que os colombianos racializados da classe trabalhadora enfrentam são, sem dúvida, o que empurrou as recentes demandas políticas ainda mais para a esquerda.

Historicamente, a pesquisa sobre o conflito na Colômbia tem sido bastante restrita. Tanto em termos de datas quanto em seu foco limitado na guerra bipartidária entre conservadores e liberais. Essa visão estreita, agora contestada, desempenhou um papel na formação da situação no país – como se esse conflito fosse somente colombiano.

As origens coloniais da violência colombiana

Na verdade, podemos traçar as condições que deram origem à violência e ao grande conflito colombiano ao desenvolvimento capitalista, à formação do Estado e, mais importante, aos legados coloniais de poder. Nesse contexto, as condições de guerra e violência que continuam a impactar a sociedade colombiana não são únicas – o desenvolvimento histórico está sempre em vista, a menos que o neguemos ativamente.

Isso começa com a integração do mercado colombiano ao sistema mundial a partir de meados do século XIX. Assim, as relações sociais entre as diferentes classes sociais estão emaranhadas com as relações de poder herdadas da era colonial, que é bem compreendida em outros lugares e que sabemos que continua a ter repercussões nas relações sociais em todo o mundo hoje.

“Nos últimos anos, no mundo ocidental, vimos um movimento se erguendo contra as muitas heranças coloniais presentes na sociedade.”

Em outras palavras, colombianos negros que sofrem as piores taxas de pobreza e violência hoje e comunidades racializadas em outros lugares enfrentam condições semelhantes que fazem parte do mesmo processo histórico global.

Nos últimos anos, no mundo ocidental, vimos um movimento se erguendo contra as muitas heranças coloniais presentes na sociedade. Desde o movimento Black Lives Matter [Vidas negras importam], que expõe a forma como as autoridades atacam e até assassinam os negros, até os apelos para que estátuas e outros símbolos dos legados do colonialismo sejam derrubados para que as consequências sociais e econômicas desse legado sejam abordadas. Este movimento para desmantelar os legados do colonialismo não apenas decolou no mundo ocidental, mas em todo o mundo.

A cor e a classe dos protestos colombianos

No final de abril do ano passado, no auge da pandemia, colombianos jovens e da classe trabalhadora fizeram uma greve nacional de três meses para protestar contra as condições inabitáveis ​​de pobreza e violência. Eles também derrubaram várias estátuas de Cristóvão Colombo e outros colonialistas. A Colômbia, absurdamente, recebeu o nome de Cristóvão Colombo, simbolizando os legados da dominação colonial até o presente – não apenas em nome e símbolos, mas nas realidades sociais, econômicas e políticas dessas comunidades.

Os colombianos que sofreram o peso da desigualdade, violência e opressão que domina o país são comunidades negras, indígenas e mestiças da classe trabalhadora – em especial mulheres. O fato de estarmos falando sobre essas comunidades particularmente racializadas e de gênero não é incidental, mas um fator central. Afinal de contas, o capitalismo como um sistema mundial não se trata apenas de explorar os trabalhadores, mas, historicamente, explora mais ainda as comunidades racializadas e as mulheres.

A acadêmica colombiana Castriela Hernandez Reyez ilustra as realidades histórica e social dessas comunidades usando o exemplo de La Toma, uma cidade majoritariamente negra no departamento de Cauca. Reyez escreve que, apesar de o governo prometer abordar o abandono das comunidades negras no país, apenas 20% da população de La Toma tem água encanada, 3% têm sistemas de esgoto e a maioria não pode pagar eletricidade. Além disso, a população da cidade tem lutado para defender suas terras de projetos de desenvolvimento do governo que os deslocam usando da força violenta para convidar empresas estrangeiras a se instalarem.

“Mais de 70% das comunidades negras deslocadas de seus territórios devido à violência e desapropriação de terras.”

O povo de La Toma é estatisticamente mais abandonado pelo Estado por ser negro; seus corpos são mais propensos a serem percebidos como alvos legítimos de violência e deslocamento forçado porque são negros. E combinado com essa atitude racista extrema, é mais provável que suas terras e recursos sejam tirados deles porque o lucro e os negócios importam mais do que suas reivindicações históricas a esses territórios.

Os acadêmicos Sheila Gruner e Charo Mina Rojas chegaram a conclusões semelhantes. Segundo eles, os conflitos violentos na Colômbia afetam desproporcionalmente as comunidades negras, com mais de 70% das comunidades negras deslocadas de seus territórios devido à violência e desapropriação de terras. Eles argumentam de forma convincente que a violência extrema que esta comunidade enfrenta faz parte do projeto capitalista neoliberal e é a continuação da violência colonial. Em outras palavras, deve ser entendido dentro de uma estrutura de raça e classe.

Eles demonstram que as comunidades negras e indígenas são mais propensas a enfrentar deslocamento e violência, mas as mulheres nessas comunidades são o principal alvo. Gruner e Rojas discutem a tendência normalizada de infligir violência brutal às mulheres: “seus corpos são usados ​​como armas de guerra para infundir terror em suas comunidades, com casos de extrema tortura e violência de gênero visando especialmente mulheres afro-colombianas.”

Deslocadas e aterrorizadas de seus territórios pelo chamado “desenvolvimento”, as comunidades negras, especialmente as mulheres negras, são obrigadas a fugir para as grandes cidades do país, como Bogotá, Medellín e Cali. As mulheres negras nessas cidades formam a base dos trabalhados mais discriminadas no mercado e na sociedade em geral.

 

A natureza da radicalidade dos protestos

Entendendo o contexto acima, não é de surpreender que a cidade de Cali tenha sido o epicentro dos protestos no ano passado. É lá onde as estatísticas mostram que a violência do Estado e a repressão contra os manifestantes tiveram maior probabilidade de leva-los à morte e ao desaparecimento. Em um relatório divulgado pelo CODHES e pelo Processo de Comunidades Negras (PCN), eles sugerem que durante os protestos, a maior parte da violência ocorreu em Cali e particularmente em seus bairros negros.

As autoridades colombianas já são conhecidas por reprimir os protestos com violência. No entanto, os dados dos protestos do ano passado destacam que a participação de negros e racializados foi um fator para aumentar a intensidade da violência e da repressão.

Devemos salientar que não era apenas o Estado e as elites conservadoras tradicionais que estavam ansiosos para reprimir os protestos e o movimento construído em torno dele: liberais e até alguns progressistas mais de esquerda em cargos oficiais estavam, na melhor das hipóteses, desinteressados em defende-los. Os líderes sindicais que organizaram a greve começaram a pedir que as pessoas abandonassem os protestos, pois, na opinião deles, isso estava ficando fora de controle.

Na opinião deles, os protestos foram muito caóticos, perturbadores e violentos, e não houve liderança ou organização adequada. Alguns até alegaram que gangues criminosas urbanas estavam liderando a greve. As comunidades mestiças jovens, em sua maioria negras e empobrecidas, que protestavam, no entanto, argumentaram que era preciso estar bem-organizado para sustentar uma greve por tantas semanas como o fizeram; e repetidamente expressaram suas demandas políticas.

“Comunidades negras, indígenas e pobres que saíram às ruas têm menos a perder com uma transformação radical das estruturas políticas e econômicas existentes.”

Não que os manifestantes fossem desorganizados ou que não tivessem demandas sérias; essas demandas eram radicais demais para serem ouvidas por quem estava no poder e por aqueles que faziam parte da oposição oficial a esse poder.

As diferenças ideológicas que vieram à tona durante os protestos podem ser explicadas em parte pelas enormes disparidades materiais e sociais observadas no país. Comunidades negras, indígenas e pobres que saíram às ruas têm menos a perder com uma transformação radical das estruturas políticas e econômicas existentes.

Os progressistas liberais de classe média, especialmente aqueles com funções oficiais, estão apostando em chegar ao poder usando os atuais arranjos institucionais, explicando sua hesitação em relação a protestos e demandas radicais.

No entanto, apesar da falta de apoio, aqueles que protestaram no ano passado empurraram o país para a encruzilhada em que estamos hoje. Francia Márquez, a hoje a candidata a vice-presidente da coalizão progressista encabeçada por Gustavo Petro, representa a urgência da transformação radical que os manifestantes exigiam. Francia, por sinal, é originária de La Toma, que apoiou os protestos e as demandas que surgiram deles.

O racismo e o classismo combinados criam as condições materiais e sociais inabitáveis ​​experimentadas por muitos, talvez a maioria dos colombianos. Essas mesmas condições e aqueles que as vivenciam são os mais propensos a desenvolver e conduzir os movimentos políticos para uma transformação radical do país. Francia, por exemplo, traçou uma linha entre o movimento e os oportunistas neoliberais com os quais foram atraídos para formar outras coalizões.

No curto prazo, se a Colômbia quiser evitar mais e talvez as mesmas mobilizações intensas que vimos no ano passado, a nova onda de líderes políticos progressistas deve abordar seriamente as históricas divisões raciais e de classe que continuam a tensionar o país.

Sobre o autor

é doutorando e professor associado na Queen Mary, University of London. Ele é especialista em analisar o “poder civil” da União Europeia na América Latina e seu papel na manutenção do status quo neoliberal na região.

 

Fonte: Jacobin Brasil.

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