Sputnik Brasil conversa com pesquisador sobre o que levou ao genocídio dos tutsis, a situação do país africano atualmente e as lições que podemos tirar do massacre de 1994.

Neste 4 de julho se comemora em Ruanda o “Dia da Libertação“, quando a Frente Patriótica Ruandesa (RPF, na sigla em francês) pôs fim ao genocídio no país que durou cerca de 100 dias e matou entre 500 mil e um milhão de pessoas.

Franco Alencastro, mestre em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e pesquisador voluntário na Escola de Guerra Naval (EGN), conversou com a Sputnik Brasil sobre o que levou ao genocídio, a situação do país africano atualmente e as lições do massacre.

Tutsis, hutus e os belgas

Ruanda tinha dois grupos étnicos principais: os hutus e os tutsis. Os hutus eram agricultores e os tutsis pecuaristas. Existia uma fluidez entre os grupos, mas isso acabou com o início do domínio belga sobre o país, após a Primeira Guerra Mundial.

“Existe até hoje alguma controvérsia acadêmica sobre se esses grupos [hutus e tutsis] eram de fato grupos étnicos ou se eram apenas grupos socioeconômicos da região. Os tutsis eram um grupo socioeconomicamente mais favorecido […]. Não há uma divisão clara entre os grupos, tanto que era comum um hutu muito rico se tornar parte do grupo tutsi, por exemplo […]. Era comum uma pessoa passar de um grupo para o outro. [Mas com] o início do domínio belga essa situação acaba […]. Há uma divisão formal entre os grupos, são emitidas cartas de identidade compulsórias para os grupos, dividindo os grupos entre hutus, tutsis e twa, que é outro grupo que habita a região e que equivale ao que a gente chama de pigmeus”, explica Franco Alencastro.

Com a independência de Ruanda, em 1962, os belgas passam a apoiar os hutus, que compunham cerca de 85% da população do país. Com a ascensão de Juvenal Habyarimana ao poder em 1973, segundo o especialista, Ruanda começa a promover políticas para favorecer os hutus no governo, como cotas nas universidades e no serviço público, para reduzir a participação dos tutsis na administração pública, uma vez que esse grupo era até então mais favorecido econômica e politicamente.

“Nessa altura, muitos tutsis saíram de Ruanda e existiam grupos paramilitares que atuavam em nome dessa população e contra o governo de Ruanda. O principal grupo era a RPF, liderada por Paul Kagame […]. Esse movimento invade Ruanda no começo da década de 1990, o que leva à primeira guerra civil de Ruanda. O medo que a população Hutu passa a ter dessa represália dos tutsis leva à criação do movimento Hutu Power, que começa a organizar massacres de tutsis, mas ainda em uma escala reduzida e local.”

Queda de avião e massacre generalizado

Na noite de 6 de abril de 1994, um avião que transportava os então presidentes de Ruanda, Juvenal Habyarimana, e do Burundi, Cyprien Ntaryamira, ambos hutus, foi derrubado. Franco Alencastro afirma que o evento causou grande consternação em Ruanda e que até hoje não há certeza sobre quem estaria por trás do acidente.

Facções radicais hutus culparam a RPF e a Frente Patriótica Ruandesa disse que o ataque foi realizado pelos hutus para justificar o genocídio. Ainda assim, o especialista recorda que em 2006 uma investigação independente acusou Paul Kagame, líder da RPF, de ter orquestrado o acidente. Kagame nega qualquer envolvimento.

“Em todo caso, quando morre o presidente, um comitê de crise liderado por Théodore Sindikubwabo assume o poder e começa a prender e assassinar vários políticos hutus moderados e em torno de dez dias depois do acidente começa uma política de massacre generalizado da população tutsi”, afirma Franco Alencastro.

O pesquisador explica que o massacre ocorreu de diferentes formas no país e que os ataques no interior, que ocorrem em articulação com os governos locais, ficaram famosos.

“[Os governos locais] distribuíram armas para a população hutu local, [que] começa a massacrar. Ruanda é um dos países com maior densidade populacional da África. É um país muito pequeno que tinha naquela época cerca de sete milhões de habitantes, dessa forma, as pessoas viviam muito próximas entre si e em aldeias que eram altamente misturadas entre esses grupos étnicos, então você tinha realmente situações de vizinhos matando vizinhos utilizando armas rústicas como machetes.”

Papel dos veículos de comunicação

Franco Alencastro comenta que veículos de comunicação como rádio defenderam e promoveram o genocídio ruandês, com destaque para a Radio Télévision Libre de Mille Collines (RTLM), “que foi a que promoveu com mais força o massacre”.

“A RTLM se notabilizou por espalhar notícias falsas, inclusive que os próprios tutsis estariam iniciando massacres e que por isso a população hutu precisaria se organizar para realizar os massacres dos tutsis. Isso é chamado ‘Política do Espelho’, que é quando você acusa o seu inimigo de estar engajando na mesma política que você pretende realizar para então você utilizar como retaliação aquilo que, na verdade, não é uma retaliação, é o início de um ataque”, explica o especialista.

O pesquisador acrescenta que a RTLM se notabilizou por fazer a desumanização constante dos tutsis, que foram chamados pela rádio de baratas e insetos que deveriam ser extirpados. Questionado sobre se essa campanha poderia ser considerada um prelúdio das atuais estratégias de discurso de ódio utilizadas em plataformas como WhatsApp, Franco Alencastro entende que sim.

“Você pode entender como precursor […]. As diferenças nesse caso, em se tratando tanto das táticas de comunicação nazistas do [ministro da Propaganda Joseph] Goebbles e da RTLM, [é que agora] você tem um elemento da própria população ser o vetor da transmissão da mensagem. As pessoas recebem mensagens falsas pelo WhatsApp, mensagens com conteúdo de ódio, fabricadas, o conteúdo em si não é tão diferente do que os genocidas em Ruanda fizeram, mas [agora é] a própria pessoa que é responsável por ‘viralizar’ essa mensagem, como se a própria mensagem fosse magnificada pelo público que ela atinge e tem esse efeito de eco que vai crescendo, enquanto com a mídia tradicional, com a rádio era algo muito mais dirigido e algo muito mais vertical.”

Fim do genocídio

O massacre acaba quando a RPF consegue derrotar os últimos remanescentes das tropas hutus, o Interahamwe, que era o braço armado do regime de Ruanda na época, e a Guarda Presidencial. Isso ocorre em 4 de julho de 1994. Vinte sete anos depois, ainda não se sabe quantas pessoas perderam a vida nos massacres.

“Até hoje se discute quantas pessoas morreram no genocídio. As estimativas mais conservadoras falam em 500 mil mortos, o governo ruandês fala em um milhão de mortos. Estimativas mais confiáveis falam em 600 mil, que é um número muito e corresponde a dois terços da população tutsi que havia no país na época”, afirma o pesquisador.

Franco Alencastro recorda ainda que, além dos mortos nos massacres, ocorreu um dos maiores movimentos de refugiados da história recente, e um dos mais rápidos também.

“Esse movimento muito grande de refugiados leva ao estabelecimento de campos de refugiados principalmente no Zaire [atual República Democrática do Congo], que faz fronteira com Ruanda […] no campo de Goma, um local bastante precário onde muitas pessoas também morreram vítimas de cólera, diarreia e outras doenças evitáveis. Uma situação humanitária muito difícil que se vive em Ruanda até em torno de 1997.”

Ruanda hoje e lições do genocídio

Após a RPF conquistar a capital Kigali, Paul Kagame, líder do movimento, inicia um governo provisório que põe fim a 30 anos de dominação dos hutus em Ruanda.

“Depois de derrotar os genocidas, Paul Kagame se torna presidente em 2000 e ele é reeleito em 2003 e 2010, para mandatos de sete anos. Em 2015, ele altera a Constituição e consegue concorrer a um terceiro mandato em 2017, que o mandato em que estamos atualmente”, comenta o especialista.

Franco Alencastro destaca que observadores internacionais sempre fritam que essas eleições não são justas e que os opositores ao governo frequentemente desaparecem ou então são presos ou até mortos. Grupos a favor da liberdade de expressão e de direitos civis também são perseguidos, assim como jornalistas independentes, que são intimidados e presos. “Então o fim do genocídio pode até ter trazido paz para Ruanda, mas não significa que o país agora é uma democracia”, sentencia.

Ainda assim, o pesquisador sublinha as importantes lições que podemos tirar do genocídio.

“Eu tenho um professor que me ensinou muito sobre genocídio de Ruanda na faculdade e ele me deu a seguinte lição: sempre que um líder político, um presidente, começa a tratar um adversário político ou mesmo qualquer pessoa como se ela não fosse humana, como se ela não pertencesse à mesma espécie que você, é sinal que pode começar um massacre. E é nessa hora que devemos nos preocupar.”

O especialista também enfatiza a importância dos veículos de comunicação e plataformas digitais porque mostram até que ponto é fácil para a população se voltar contra seus semelhantes quando ela é suficientemente orientada pela mídia.

“As pessoas que participaram desse genocídio eram pessoas que conviviam com suas vítimas no dia a dia, eram vizinhos e, de repente, você tem vizinhos matando vizinhos. É por isso que por mais que a liberdade de expressão seja importante você precisa de instrumentos para impedir a divulgação desse tipo de conteúdo fabricado, inclusive a divulgação pelo próprio governo. Hoje Ruanda é um país que aprendeu essa lição porque você tem, por exemplo, leis que criminalizam a chamada ideologia do genocídio como uma forma de impedir que esse discurso retorne”, conclui Franco Alencastro.

 

Fonte: Sputnik Brasil.

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