Lovecraft Country, série de TV da HBO, tem sua história ambientada na década de 1950, e mostra uma jornada repleta de perigos sobrenaturais e também humanos, já que os protagonistas são negros no auge do segregacionismo da Era Jim Crow.

Criado por Misha Green (HelixSpartacus), a série é baseada no livro Território Lovecraft, de  Matt Ruff, publicada no Brasil pela Editora Intrínseca. A adaptação, é produzida por J.J. Abrams e Jordan Peele que assumem a produção-executiva.

Sinopse oficial: “A série acompanha Atticus Freeman (Jonathan Majors) que se une à sua amiga Letitia (Jurnee Smollett-Bell) e seu tio George (Courtney B. Vance) para embarcar em uma viagem de carro pelos Estados Unidos de 1950, em busca de seu pai desaparecido (Michael Kenneth Williams). Isto se inicia com uma luta para sobreviver e superar tanto os terrores racistas da América branca como os monstros aterrorizantes que poderiam ser tirados de uma história de H. P. Lovecraft”.

Estamos cercados de monstros!

A frase de Atticus Freeman (Jonathan Majors), o jovem negro e veterano da Guerra da Coreia em “Lovecraft Country”, que estreiou neste domingo, 16, às 22h, tem muitos significados.

Atticus é fascinado por histórias de pulp fiction (que misturam fantasia, terror e ficção científica) e por “heróis que partem em aventuras por outros mundos, desafiam adversidades, derrotam os monstros e salvam o dia”, como ele descreve. Muito divertido quando tudo não passa de invenção. Mas o que Atticus e sua família experimentam é bem real. E apavorante. Nos dez episódios de cerca de 50 minutos cada, eles enfrentam muitos tipos de monstros, alguns deles míticos e outros bem reais, vivendo na América segregada da era Jim Crow.

O autor preferido de Atticus é H.P. Lovecraft, um dos maiores nomes da literatura de horror e criador do temido Cthulhu. A relação de Atticus com o escritor, um declarado supremacista branco, é intrigante: a admiração que o jovem sente por alguém que não aceita sua existência é a gênese da história negra.

Jonathan Majors – Eu cresci no Texas (EUA), em uma sociedade muito preconceituosa e racista. Não há muita coisa sobre racismo que eu não tenha tido como experiência. O medo é algo enraizado. O senso de proteção está impregnado. Atticus, apesar de seu protagonismo, está longe de ser a única estrela. Nós conversamos com os atores Letitia (Jurnee Smollett), Montrose (Michael Kenneth Williams), George (Courtney B. Vance), Hippolyta (Aunjanue Ellis), que interpretam outros personagens que também se deparam com o sobrenatural em suas jornadas.

Jonathan Majors – Você pode não se identificar com alguns tipos de temores. Mas quando se adiciona monstros numa história isso faz com que aquilo seja universal, mais acessível, porque é desconhecido e o medo é algo que todo ser vivo experimenta. Entre mistérios com ar de “Arquivo X” e aventuras com pegada de Indiana Jones, “Lovecraft Country” tem também o horror cósmico, com seres estranhos e indescritíveis, e elementos de ocultismo, como maldições ancestrais, sociedades secretas, livros proibidos, rituais e segredos de família. Tudo isso assusta. Mas não causa tanto pavor e paranoia quanto o preconceito e as limitações de locomoção, cultura e sociabilidade que os brancos impuseram aos negros ali —e a percepção de que muitas situações daquelas continuam a acontecer.

Michael K Williams – O fato de que ainda hoje, na vida real, estamos sofrendo com problemas que se originaram na escravagista era Jim Crow, é surreal.

Jurnee Smollett-Bell – É lamentável que esta série poderia ter sido lançada em qualquer dia, em qualquer mês, de qualquer ano desde 1619. E os temas que exploramos ali ainda seriam relevantes. Esse sistema não será desmantelado se não continuarmos o diálogo. E eu espero que “Lovecraft Country” seja parte dessa conversa, porque a arte é mais poderosa quando está contribuindo para o diálogo positivo sobre a humanidade.

O passado ainda é presente

Excluindo a parte fantasiosa, a série funciona como um documentário. A história se passa nos anos 1950. O racismo é institucionalizado não apenas pelos civis, mas pelas autoridades. A trama traz à tona as “sundown towns”, cidades americanas que impunham restrições a não-brancos por meio de leis discriminatórias, intimidação e violência, proibindo a circulação após o pôr do sol.

Courtney B. Vance – É por isso que o Green Book [um guia que trazia os poucos hotéis e restaurantes que serviam afro-americanos na época] foi tão importante. Era como as pessoas conseguiam viajar e sobreviver. A narrativa também expõe o “redlining”, prática adotada por bancos e imobiliárias para estabelecer segregação habitacional através de leis de zoneamento de exclusão.

Jurnee Smollett-Bell – Isso explica porque, até hoje, poucas pessoas negras são proprietárias de casas: nós não herdamos casas das gerações anteriores, porque não podíamos obter empréstimos de bancos. O racismo está embutido no sistema da nossa nação em todos os níveis, educação, habitação, oportunidades.

Aunjanue Ellis – O tempo, em termos de questões raciais, é cíclico. É atemporal. Anti-racismo é como estações do ano: você tem momentos de sol e momentos de chuva, mas nunca vai acabar. Então a questão não é quando o racismo acabará. A questão é como lidamos com a realidade desse anti-racismo para que isso não tenha fim. Porque nossa ideia do que pensávamos ser passado é, na verdade, muito presente.

Jurnee Smollett-Bell – É por isso que me interessei tanto por fazer Letitia. Ela sofre dessa sensação de deslocamento como tantos negros americanos sofrem. Eu me identifico com esse sentimento. É um grande choque quando você descobre que o país onde você nasceu, e ao qual você deve sua identidade, não tem lugar para você. É um choque ancestral, 1955 é agora. O racismo sistêmico no qual nossa nação foi construída quer que sejamos apagados da história.

Michael K Williams – Eu também me vejo em várias situações de Montrose. Nina Simone disse uma vez que o dever do artista é refletir os tempos em que se encontram, então é uma honra para mim representar pessoas como eu. Ele é um homem negro lutando com sua identidade, e eu sei como é isso. Eu sou um homem negro na América e, contando essas histórias, me lembrou que eu tenho traumas, que ainda estou lidando com problemas.

Jonathan Majors – Atticus é um adorador de livros, é um filho, um amante. Ele se assemelha a George Floyd, a Freddie Gray, é um precursor destes homens. E agora vemos que o inimigo público número 1 de alguns dos departamentos de polícia dos EUA, que eles tanto vilanizam, também tem todas essas características dentro dele.

Michael K Williams – Eu espero que “Lovecraft Country” nos faça realmente dar uma olhada em como chegamos até aqui. Nada disso aconteceu da noite para o dia. Essa inquietação acontecendo no mundo hoje, os movimentos de Vidas Negras Importam, tudo isso vem de uma longa lista de coisas que deram errado há muito tempo.

Courtney B. Vance – Eu desafiaria qualquer um a lidar com o que os negros lidam diariamente. Ou qualquer pessoa trans. Qualquer pessoa que seja diferente e tem que navegar em um mundo no qual não é para você. Daí você começa a entender, entre aspas, o medo com o qual se lida todos os dias, o dano psicológico que está impactando você por gerações. E, apesar disso, ainda assim a gente se levanta.

 

Fonte: Mariana Tramontina, UOL | Omelete | Observador.

 

 

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