Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero
KIMBERLÉ CRENSHAW
University of California ¾ Los Angeles
Resumo: Tanto os aspectos de gênero da discriminação racial quanto os aspectos raciais da discriminação de gênero não são totalmente apreendidos pelos discursos dos direitos humanos. O presente documento, baseado no crescente reconhecimento de que as discriminações de raça e de gênero não são fenômenos mutuamente excludentes, propõe um modelo provisório para a identificação das várias formas de subordinação que refletem os efeitos interativos das discriminações de raça e de gênero. Este documento também sugere um protocolo provisório a ser seguido, a fim de melhor identificar as situações em que tal discriminação interativa possa ter ocorrido e, além disso, defende que a responsabilidade de lidar com as causas e as conseqüências dessa discriminação deva ser amplamente compartilhada entre todas as instituições de direitos humanos
Palavras-chave: gênero, raça, discriminação, interseccionalidade, direitos humanos.
Introdução e panorama
Inspiradas pela vontade de discutir a desigualdade que atinge mulheres em todo o mundo, as ativistas dos direitos humanos vêm realizando significativos ganhos nas últimas décadas, assegurando a maior inclusão do tema do abuso dos direitos relativos às mulheres e ao gênero nos discursos dos direitos humanos.1 Em nível formal, o princípio da igualdade de gênero, no que se refere à fruição dos direitos humanos, baseia-se na Carta das Nações Unidas e na Declaração Universal dos Direitos Humanos, sendo depois explicitado na Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra Mulheres (Convention for the Elimination of All Forms of Discriminantion Against Women/CEDAW). Essas garantias foram detalhadas através de uma série de conferências mundiais, incluindo as do Cairo, de Viena e de Beijing. Tais detalhamentos realmente constituíram avanços conceituais, pois expandiram os direitos humanos para além dos seus parâmetros iniciais, que marginalizavam os abusos de direitos relacionados ao gênero que atingissem especificamente as mulheres. O relativo sucesso de tais esforços baseou-se em uma mudança significativa de perspectivas quanto à relevância da diferença de gênero no projeto de ampliação do escopo dos direitos humanos das mulheres.
Embora a Declaração Universal garanta a aplicação dos direitos humanos sem distinção de gênero, no passado, os direitos das mulheres e as circunstâncias específicas em que essas sofrem abusos foram formulados como sendo diferentes da visão clássica de abuso de direitos humanos e, portanto, marginais dentro de um regime que aspirava a uma aplicação universal. Tal universalismo, entretanto, fundamentava-se firmemente nas experiências dos homens. Conseqüentemente, apesar da garantia formal, a proteção dos direitos humanos das mulheres foi comprometida à medida que suas experiências poderiam ser definidas como diferentes das dos homens. Assim, quando mulheres eram detidas, torturadas ou lhes eram negados outros direitos civis e políticos, de forma semelhante como acontecia com os homens, tais abusos eram obviamente percebidos como violações dos direitos humanos. Porém, quando mulheres, sob custódia, eram estupradas, espancadas no âmbito doméstico ou quando alguma tradição lhes negava acesso à tomada de decisões, suas diferenças em relação aos homens tornavam tais abusos ‘periféricos’ em se tratando das garantias básicas dos direitos humanos.
Ao longo da última década, em conseqüência do ativismo das mulheres, tanto em várias conferências mundiais como no campo das organizações de direitos humanos, desenvolveu-se um consenso de que os direitos humanos das mulheres não deveriam ser limitados apenas às situações nas quais seus problemas, suas dificuldades e vulnerabilidades se assemelhassem aos sofridos pelos homens. A ampliação dos direitos humanos das mulheres nunca esteve tão evidente como nas determinações referentes à incorporação da perspectiva de gênero (gender mainstreaming) das conferências mundiais de Viena e de Beijing. De fato, ao mesmo tempo que a diferença deixou de ser uma justificativa para a exclusão do gênero dos principais discursos de direitos humanos, ela, em si mesma, passou a servir de apoio à própria lógica de incorporação de uma perspectiva de gênero. Tal incorporação baseia-se na visão de que, sendo o gênero importante, seus efeitos diferenciais devem necessariamente ser analisados no contexto de todas as atividades relativas aos direitos humanos. Assim, enquanto no passado a diferença entre mulheres e homens serviu como justificativa para marginalizar os direitos das mulheres e, de forma mais geral, para justificar a desigualdade de gênero, atualmente a diferença das mulheres indica a responsabilidade que qualquer instituição de direitos humanos tem de incorporar uma análise de gênero em suas práticas.
A Declaração Universal também reforça o princípio da não-discriminação com base na raça. Essa garantia foi mais bem elaborada na Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (International Convention on the Elimination of All Forms of Racial Discrimination/CERD), que tratou da proteção contra a discriminação baseada na cor, na descendência e na origem étnica ou nacional. Como a proteção dos direitos civis e políticos é garantia básica dos direitos humanos, aspectos da discriminação racial que mais se assemelhavam à negação da cidadania plena, do tipo apartheid, foram enquadrados nos parâmetros prevalecentes dos direitos humanos. Entretanto, como no caso da discriminação de gênero, as noções de diferença, também aí, limitam a possível expansão das garantias de direitos humanos ligados à raça aos contextos em que a discriminação se pareça mais com a negativa formal, de jure, dos direitos civis e políticos. A discriminação que não se enquadra nesse modelo-padrão pode às vezes ser tratada como ‘excessivamente diferente’ das experiências formais do tipo apartheid para que possam constituir abuso de direitos humanos.
No sentido de melhor definir o alcance do direito à não-discriminação racial, bem como da não-discriminação de gênero, foram feitos vários esforços em conferências mundiais, oportunidade que novamente se apresentará na próxima Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, em Durban, África do Sul. Até o momento, no entanto, nada equivalente aos compromissos assumidos em Viena e Beijing, em termos de incorporação do gênero, foi feito no contexto da raça e da discriminação racial. Essa coincidência nas respectivas trajetórias de gênero e de raça no âmbito das ações pelos direitos humanos é, por um lado, resultado de uma estratégia de dez anos que culminou na incorporação da perspectiva de gênero e, por outro lado, é o início de novas estratégias para o aprofundamento do compromisso de eliminar a discriminação racial e outras formas de intolerância. Assim, essa sobreposição de trajetórias cria uma etapa particularmente receptiva para pensar a interação entre as discriminações de raça e de gênero de pelo menos duas maneiras fundamentais.
Em primeiro lugar, enquanto as nações e as organizações não-governamentais (ONGs) se preparam para a próxima Conferência Mundial contra o Racismo, o imperativo da incorporação da perspectiva de gênero, o qual se aplica amplamente às agências e órgãos de vigilância de tratados das Nações Unidas, dirige a atenção para a necessidade de desenvolver protocolos e análises voltados para o tratamento das dimensões de gênero do racismo. Considerando que a discriminação racial é freqüentemente marcada pelo gênero, pois as mulheres podem às vezes vivenciar discriminações e outros abusos dos direitos humanos de uma maneira diferente dos homens, o imperativo de incorporação do gênero põe em destaque as formas pelas quais homens e mulheres são diferentemente afetados pela discriminação racial e por outras intolerâncias correlatas. Portanto, a incorporação do gênero, no contexto da análise do racismo, não apenas traz à tona a discriminação racial contra as mulheres, mas também permite um entendimento mais profundo das formas específicas pelas quais o gênero configura a discriminação também enfrentada pelos homens.
Em segundo lugar, a lógica da incorporação da perspectiva de gênero, ou seja, focalizar a diferença em nome de uma maior inclusão, aplica-se tanto às diferenças entre as mulheres como às diferenças entre mulheres e homens. Há um reconhecimento crescente de que o tratamento simultâneo das várias ‘diferenças’ que caracterizam os problemas e dificuldades de diferentes grupos de mulheres pode operar no sentido de obscurecer ou de negar a proteção aos direitos humanos que todas as mulheres deveriam ter. Assim como é verdadeiro o fato de que todas as mulheres estão, de algum modo, sujeitas ao peso da discriminação de gênero, também é verdade que outros fatores relacionados a suas identidades sociais, tais como classe, casta, raça, cor, etnia, religião, origem nacional e orientação sexual, são ‘diferenças que fazem diferença’ na forma como vários grupos de mulheres vivenciam a discriminação. Tais elementos diferenciais podem criar problemas e vulnerabilidades exclusivos de subgrupos específicos de mulheres, ou que afetem desproporcionalmente apenas algumas mulheres. Do mesmo modo que as vulnerabilidades especificamente ligadas a gênero não podem mais ser usadas como justificativa para negar a proteção dos direitos humanos das mulheres em geral, não se pode também permitir que as ‘diferenças entre mulheres’ marginalizem alguns problemas de direitos humanos das mulheres, nem que lhes sejam negados cuidado e preocupação iguais sob o regime predominante dos direitos humanos. Tanto a lógica da incorporação do gênero quanto o foco atual no racismo e em formas de intolerância correlatas refletem a necessidade de integrar a raça e outras diferenças ao trabalho com enfoque de gênero das instituições de direitos humanos.
A garantia de que todas as mulheres sejam beneficiadas pela ampliação da proteção dos direitos humanos baseados no gênero exige que se dê atenção às várias formas pelas quais o gênero intersecta-se com uma gama de outras identidades e ao modo pelo qual essas intersecções contribuem para a vulnerabilidade particular de diferentes grupos de mulheres. Como as experiências específicas de mulheres de grupos étnicos ou raciais definidos são muitas vezes obscurecidas dentro de categorias mais amplas de raça e gênero, a extensão total da sua vulnerabilidade interseccional ainda permanece desconhecida e precisa, em última análise, ser construída a partir do zero.
Apesar das lacunas gritantes na informação disponível sobre mulheres racialmente marginalizadas em todo o mundo, é possível facilitar a discussão sobre a variabilidade da discriminação contra as mulheres por meio de modelos provisórios projetados para mapear suas múltiplas identidades. Com esse fim, o presente documento sugere várias formas de entender como as experiências únicas de mulheres étnica e racialmente identificadas são por vezes obscurecidas ou marginalizadas nos discursos sobre direitos. Onde os contornos específicos da discriminação de gênero não são bem compreendidos, as intervenções para tratar de abusos aos direitos humanos das mulheres serão provavelmente menos efetivas. Portanto, seria útil que aqueles que esperam articular e/ou responder às necessidades das mulheres marginalizadas antecipassem as várias formas pelas quais as vulnerabilidades de raça e de gênero podem se entrecruzar. Este documento busca apresentar um catálogo parcial dessas vulnerabilidades, através de alguns exemplos ilustrativos. Tais exemplos formam a base para um protocolo que pode ser usado na identificação de situações em que a discriminação de gênero é ampliada pela ou combinada com a discriminação racial, ou vice-versa.
Finalmente, são feitas recomendações para a expansão do escopo do protocolo sugerido a fim de incluir não apenas o trabalho dos órgãos de vigilância dos tratados das Nações Unidas, como também as atividades da comunidade mais ampla de direitos humanos. As ONGs e outras instituições devem se envolver nos esforços simultâneos de investigação das implicações de gênero do racismo, da xenofobia e de outras formas de intolerância e de maior conscientização quanto às implicações de raça, etnia, cor e outros fatores que contribuem para uma combinação de abusos dos direitos humanos que mulheres e, por vezes, homens enfrentam.
Invisibilidade interseccional: repensando a importância da diferença intragrupo
Há várias razões pelas quais experiências específicas de subordinação interseccional não são adequadamente analisadas ou abordadas pelas concepções tradicionais de discriminação de gênero ou raça. Freqüentemente, um certo grau de invisibilidade envolve questões relativas a mulheres marginalizadas, mesmo naquelas circunstâncias em que se tem certo conhecimento sobre seus problemas ou condições de vida. Quando certos problemas são categorizados como manifestações da subordinação de gênero de mulheres ou da subordinação racial de determinados grupos, surge um duplo problema de superinclusão e de subinclusão.
O termo ‘superinclusão’ pretende dar conta da circunstância em que um problema ou condição imposta de forma específica ou desproporcional a um subgrupo de mulheres é simplesmente definido como um problema de mulheres. A superinclusão ocorre na medida em que os aspectos que o tornam um problema interseccional são absorvidos pela estrutura de gênero, sem qualquer tentativa de reconhecer o papel que o racismo ou alguma outra forma de discriminação possa ter exercido em tal circunstância. O problema dessa abordagem superinclusiva é que a gama total de problemas, simultaneamente produtos da subordinação de raça e de gênero, escapa de análises efetivas. Por conseqüência, os esforços no sentido de remediar a condição ou abuso em questão tendem a ser tão anêmicos quanto é a compreensão na qual se apóia a intervenção.
O discurso sobre o tráfico de mulheres é um exemplo disso. Quando se presta atenção em quais mulheres são traficadas, é óbvia a ligação com a sua marginalização racial e social. Contudo, o problema do tráfico é freqüentemente absorvido pela perspectiva de gênero sem que se discuta raça e outras formas de subordinação que também estão em jogo. Por exemplo, no recente relatório sobre tráfico de mulheres, do Comitê sobre a Condição das Mulheres, não se deu atenção alguma ao fato de que, muitas vezes, a raça ou formas correlatas de subordinação contribui para aumentar a probabilidade de que certas mulheres, ao invés de outras, estejam sujeitas a tais abusos.
Os esforços no sentido de remediar tais situações devem ser fundamentados em uma compreensão da magnitude do problema, incluindo, quando forem relevantes, suas dimensões raciais. Em algumas ocasiões é visível a atenção dada à identidade racial ou social de mulheres traficadas; no entanto, o reconhecimento das dimensões raciais do problema nem sempre é suficiente para garantir que as soluções propostas sejam absolutamente informadas por esses fatores. Por exemplo, durante o Seminário de Especialistas do Pacífico Asiático, preparatório à Conferência contra o Racismo, em Bangkok, a relação entre discriminação racial e tráfico foi reconhecida. Esse foi um primeiro passo importante para entender todos os contornos do problema. Contudo, a atenção à questão de raça na análise do problema não foi devidamente destacada nas recomendações para ações futuras. Uma análise do tráfico totalmente integrada sugeriria que todos os fatores que contribuem para a vulnerabilidade das mulheres em tal contexto sejam incluídos tanto na análise quanto nas recomendações para o tratamento do problema.
Uma questão paralela à superinclusão é a subinclusão. Uma análise de gênero pode ser subinclusiva quando um subconjunto de mulheres subordinadas enfrenta um problema, em parte por serem mulheres, mas isso não é percebido como um problema de gênero, porque não faz parte da experiência das mulheres dos grupos dominantes. Uma outra situação mais comum de subinclusão ocorre quando existem distinções de gênero entre homens e mulheres do mesmo grupo étnico ou racial. Com freqüência, parece que, se uma condição ou problema é específico das mulheres do grupo étnico ou racial e, por sua natureza, é improvável que venha a atingir os homens, sua identificação como problema de subordinação racial ou étnica fica comprometida. Nesse caso, a dimensão de gênero de um problema o torna invisível enquanto uma questão de raça ou etnia. O contrário, no entanto, raramente acontece. Em geral, a discriminação racial que atinge mais diretamente os homens é percebida como parte da categoria das discriminações raciais, mesmo que as mulheres não sejam igualmente afetadas por ela.
Um exemplo de subinclusão é a esterilização de mulheres marginalizadas em todo o mundo. Nos Estados Unidos, por exemplo, milhares de porto-riquenhas e afro-americanas foram esterilizadas sem seu conhecimento ou consentimento. Esses abusos foram predominantes nos anos 1950, mas também ocorreram em períodos mais recentes. Embora as mulheres porto-riquenhas e afro-americanas fossem, de forma desproporcional, as vítimas mais prováveis dessa negação dos direitos reprodutivos por causa da sua raça e classe, o ataque a esse direito humano fundamental raramente tem sido reconhecido como um dos exemplos mais flagrantes de discriminação racial já perpetrados contra povos racializados nos Estados Unidos. Em geral, a esterilização forçada de mulheres em todo o mundo não tem sido tratada como uma questão racial, embora, quando cuidadosamente examinada, se reconheçam aí fatores de ‘risco’, como raça, classe e outros, que determinam quais mulheres, mais provavelmente, sofrerão e quais não sofrerão esses abusos. Comumente, apenas grupos específicos de mulheres em qualquer país são o alvo, mas a distribuição seletiva dos abusos não tem sido investigada como um exemplo de discriminação racial.
É evidente que existem algumas situações em que os abusos que atingem exclusivamente as mulheres são rapidamente definidos como um problema de subordinação étnica, mas esse reconhecimento freqüentemente ocorre porque o problema enfrentado é mais facilmente construído como um ataque ao grupo com um todo. A violência sexual perpetrada por elementos externos a um grupo consiste-se em um desses casos.
Por exemplo, os trágicos eventos de genocídio em Ruanda e na Bósnia foram desencadeados pelas mutilações e pelo estupro de mulheres por motivações étnicas. Tais abusos, caracterizados pela degradação das mulheres, foram perpetrados tanto como ataques contra a honra do grupo quanto, é claro, como atos contra as próprias mulheres. Conforme afirma a Relatora Especial das Nações Unidas, Radhika Coomaraswamy, as mulheres são alvos especiais desse tipo de abuso por serem freqüentemente percebidas como representantes da honra simbólica da cultura e como guardiãs genéticas da comunidade. Embora o ataque à comunidade tenha sido execrado como genocídio étnico, essa indignação não sinaliza preocupações com suas vítimas diretas, muitas das quais estão condenadas ao ostracismo, vistas como mulheres maculadas e irremediavelmente degradadas.
Em resumo, nas abordagens subinclusivas da discriminação, a diferença torna invisível um conjunto de problemas; enquanto que, em abordagens superinclusivas, a própria diferença é invisível.
A discriminação interseccional é particularmente difícil de ser identificada em contextos onde forças econômicas, culturais e sociais silenciosamente moldam o pano de fundo, de forma a colocar as mulheres em uma posição onde acabam sendo afetadas por outros sistemas de subordinação. Por ser tão comum, a ponto de parecer um fato da vida, natural ou pelo menos imutável, esse pano de fundo (estrutural) é, muitas vezes, invisível. O efeito disso é que somente o aspecto mais imediato da discriminação é percebido, enquanto que a estrutura que coloca as mulheres na posição de ‘receber’ tal subordinação permanece obscurecida. Como resultado, a discriminação em questão poderia ser vista simplesmente como sexista (se existir uma estrutura racial como pano de fundo) ou racista (se existir uma estrutura de gênero como pano de fundo). Para apreender a discriminação como um problema interseccional, as dimensões raciais ou de gênero, que são parte da estrutura, teriam de ser colocadas em primeiro plano, como fatores que contribuem para a produção da subordinação.
Um exemplo pode ser resgatado da experiência das mulheres dalit, na Índia, que são espancadas ou sofrem outras formas de abuso em espaços públicos quando realizam suas responsabilidades ‘femininas’, como buscar água na fonte.2 Ou seja, os abusos ocorrem em contextos em que a suposta condição de ‘intocável’ as deixa vulneráveis à violência dos membros das castas mais altas, principalmente se esses considerarem que elas transgrediram suas fronteiras corporais. Embora essa violência seja prontamente definida como simples discriminação de casta, na verdade, ela é interseccional: as mulheres devem, portanto, negociar um conjunto complexo de circunstâncias nas quais uma série de responsabilidades marcadas pelo gênero as posiciona de forma que elas absorvam as conseqüências da discriminação de casta na esfera pública.
A importância de desenvolver uma perspectiva que revele e analise a discriminação interseccional reside não apenas no valor das descrições mais precisas sobre as experiências vividas por mulheres racializadas, mas também no fato de que intervenções baseadas em compreensões parciais e por vezes distorcidas das condições das mulheres são, muito provavelmente, ineficientes e talvez até contraproducentes. Somente através de um exame mais detalhado das dinâmicas variáveis que formam a subordinação de mulheres racialmente marcadas pode-se desenvolver intervenções e proteções mais eficazes.
Tendo descrito as várias razões pelas quais a subordinação interseccional de mulheres racialmente marcadas passa despercebida, vamos, agora, considerar as várias formas pelas quais as vidas de algumas mulheres são moldadas, controladas e, por vezes, perdidas aos nexos entre gênero, raça, cor, etnia e outros eixos da subordinação.
Definindo interseccionalidade: uma conceituação metafórica
A associação de sistemas múltiplos de subordinação tem sido descrita de vários modos: discriminação composta, cargas múltiplas, ou como dupla ou tripla discriminação. A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as conseqüências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento.
Utilizando uma metáfora de intersecção, faremos inicialmente uma analogia em que os vários eixos de poder, isto é, raça, etnia, gênero e classe constituem as avenidas que estruturam os terrenos sociais, econômicos e políticos. É através delas que as dinâmicas do desempoderamento se movem. Essas vias são por vezes definidas como eixos de poder distintos e mutuamente excludentes; o racismo, por exemplo, é distinto do patriarcalismo, que por sua vez é diferente da opressão de classe. Na verdade, tais sistemas, freqüentemente, se sobrepõem e se cruzam, criando intersecções complexas nas quais dois, três ou quatro eixos se entrecruzam. As mulheres racializadas freqüentemente estão posicionadas em um espaço onde o racismo ou a xenofobia, a classe e o gênero se encontram. Por conseqüência, estão sujeitas a serem atingidas pelo intenso fluxo de tráfego em todas essas vias. As mulheres racializadas e outros grupos marcados por múltiplas opressões, posicionados nessas intersecções em virtude de suas identidades específicas, devem negociar o ‘tráfego’ que flui através dos cruzamentos. Esta se torna uma tarefa bastante perigosa quando o fluxo vem simultaneamente de várias direções. Por vezes, os danos são causados quando o impacto vindo de uma direção lança vítimas no caminho de outro fluxo contrário; em outras situações os danos resultam de colisões simultâneas. Esses são os contextos em que os danos interseccionais ocorrem ¾ as desvantagens interagem com vulnerabilidades preexistentes, produzindo uma dimensão diferente do desempoderamento.
Categorizando a experiência interseccional: um modelo provisório
Hoje, ao mesmo tempo que é amplamente aceito que as mulheres nem sempre vivenciam o sexismo da mesma forma, e que homens e mulheres também não vivenciam o racismo de forma idêntica, o projeto de entender as circunstâncias concretas nas quais o racismo e o sexismo convergem apenas começa a se desenvolver em nível global. A seguir, apresento um modelo provisório que pretende auxiliar na catalogação e organização do conhecimento existente sobre as múltiplas formas pelas quais a interseccionalidade pode configurar a vida de mulheres de todo o globo terrestre. O objetivo dessas topologias iniciais é propor uma linguagem capaz de expressar as experiências das pessoas e, também, de ilustrar a necessidade de expandir os parâmetros conceituais dos discursos dos tratados internacionais existentes. Como mostram as topologias, o problema interseccional não está simplesmente no fato de não abordar um único tipo de discriminação de forma completa, mas no fato de que uma gama de violações de direitos humanos fica obscurecida quando não se consideram as vulnerabilidades interseccionais de mulheres marginalizadas e, ocasionalmente, também de homens marginalizados.
Os exemplos mais conhecidos de opressão interseccional são geralmente os mais trágicos: a violência contra as mulheres baseada na raça ou na etnia. Essa violência pode ser concebida como uma subordinação interseccional intencional, já que o racismo e o sexismo manifestados em tais violações refletem um enquadramento racial ou étnico das mulheres, a fim de concretizar uma violação explícita de gênero. Tragédias recentes na Bósnia, em Ruanda, no Burundi e em Kosovo ilustram tristemente o fato de que a longa história de violência étnica contra as mulheres não está relegada a um passado distante. Enquanto esses são os exemplos mais recentes e conhecidos de violência interseccional, essa vulnerabilidade específica não assumiu papel importante apenas no conflito armado, mas também em outros contextos.
- Os trágicos incidentes de estupro motivados por questões raciais são às vezes precedidos de outras manifestações de opressão interseccional, ou seja, a disseminação de propaganda racista ou sexista explicitamente direcionada às mulheres em um esforço para racionalizar a agressão sexual contra elas. Isso foi abertamente usado na Bósnia e em Ruanda, conforme relatos do Human Rights Watch.
- As mulheres não são as únicas vítimas de tal subordinação interseccional. Estereótipos racializados de gênero também foram usados contra homens para racionalizar uma forma de violência de conotação sexual contra eles. Nos Estados Unidos, por exemplo, a propaganda racista freqüentemente precedeu e subseqüentemente racionalizou o linchamento de homens afro-americanos.
Mesmo quando a propaganda sexualizada não culmina em violência sexual de massa, há razões para acreditar que a propaganda projetada contra as mulheres esteja causando danos de várias outras formas, assim constituindo mais um outro exemplo de opressão interseccional. A propaganda contra as mulheres pobres e racializadas pode não apenas torná-las alvo da violência sexual, mas também pode contribuir para a tendência, já demonstrada, de duvidar da honestidade das que procuram pela proteção das autoridades. De acordo com o Human Rights Watch, as mulheres dalit que tentam acusar criminalmente estupradores dificilmente têm seus casos levados a julgamento, especialmente nos casos que envolvem perpetradores de castas mais altas. Nos Estados Unidos, as mulheres negras e latinas raramente vêem os homens acusados de estuprá-las sendo processados e presos. Estudos sugerem que a identidade racial da vítima assume um papel significativo na determinação de tais resultados, e há evidências de que os jurados podem ser levados, pela propaganda sexualizada, a acreditar na maior probabilidade de que mulheres racializadas consintam em ter relações sexuais, em circunstâncias que eles achariam pouco prováveis se a vítima não fosse de uma minoria racial. - A propaganda sexualizada direcionada às mulheres racializadas também pode contribuir com a subordinação política das mesmas, especialmente em contextos relacionados às políticas reprodutivas e de bem-estar social. As justificativas para políticas que comprometem os direitos reprodutivos de mulheres pobres e de minorias, tais como a esterilização, o controle forçado da natalidade e a imposição de punições econômicas e outros desestímulos à gravidez, são, muitas vezes, baseadas em imagens preexistentes de mulheres pobres ou étnicas como sendo sexualmente indisciplinadas. Isso poderia ser enquadrado como discriminação interseccional, já que os aspectos da subordinação nessas imagens derivam, simultaneamente, de estereótipos de gênero preexistentes que apontam diferenças entre mulheres, baseados em percepções da conduta sexual e, também, de estereótipos raciais e étnicos, os quais caracterizam alguns grupos como sexualmente indisciplinados. Conseqüentemente, as mulheres que estão na intersecção desses estereótipos tornam-se especialmente vulneráveis a medidas punitivas, baseadas em como suas identidades são percebidas pelos outros.
- Atos de discriminação intencional não se limitam à violência sexual. No emprego, na educação e em outras esferas, há mulheres sujeitas a discriminações e outras opressões, especificamente por não serem homens e por não serem membros dos grupos étnicos e raciais dominantes na sociedade. Sem dúvida, isto se trata de discriminação composta: com base na raça, elas são excluídas de empregos designados como femininos, sendo também excluídas de empregos reservados aos homens com base no gênero. De fato, elas são especificamente excluídas como mulheres étnicas ou de minorias porque não há ocupações para as candidatas com tal perfil étnico-racial e de gênero.
- Por exemplo, em alguns mercados de trabalho, especialmente aqueles segregados por gênero e raça, as mulheres racializadas podem se confrontar com a discriminação composta, onde, como regra, as mulheres sejam contratadas para funções de escritório ou posições que envolvem interação com o público, enquanto que as minorias étnicas ou raciais sejam empregadas no trabalho industrial ou em alguma outra forma de trabalho segregado por gênero. Nesses casos, mulheres racializadas enfrentam discriminação porque os empregos femininos não são apropriados para elas e o trabalho designado para homens racializados é definido como inapropriado para mulheres.
- Também há casos onde a superposição entre a exclusão de raça e a de gênero limita oportunidades de emprego ou de educação para os homens. Quando os empregos industriais ou outros tipos especificamente masculinos de trabalho são limitados, e o que sobra é orientado para as mulheres, os homens podem também enfrentar a discriminação composta: o trabalho que está disponível para as mulheres não é considerado como apropriado para os homens, e o trabalho disponível para homens mais privilegiados não é oferecido a homens racialmente subordinados.
- Também na educação as mulheres de determinada identidade étnico-racial podem ser excluídas das oportunidades educacionais ou ter menos anos de estudo em relação aos homens do seu grupo ou às mulheres da elite. Relatórios recentes sugerem que, na Bósnia, meninas albanesas são excluídas da educação e, na Índia, as meninas dalit têm significativamente menos oportunidades de estudo, com taxas extremamente altas de evasão escolar.
- Uma manifestação ligeiramente diferente da subordinação interseccional pode ser definida como subordinação interseccional estrutural. Esse fenômeno representa uma gama completa de circunstâncias em que as políticas se intersectam com as estruturas básicas de desigualdade, criando uma mescla de opressões para vítimas especialmente vulneráveis. Em alguns casos, a discriminação de gênero ocorre dentro de um contexto em que algumas mulheres já são vulneráveis devido à raça e/ou à classe. Em outros casos, uma política, prática ou ato individual com base na raça, na etnia ou em algum outro fator ocorre no contexto de uma estrutura marcada pelo gênero que afeta as mulheres (ou às vezes os homens) de forma única. A vulnerabilidade das mulheres refugiadas à violência sexual constitui um exemplo de problema interseccional que deveria ser apenas parcialmente analisado como discriminação étnica. Conforme relato do Human Rights Watch, as mulheres do Burundi, refugiadas na Tanzânia, relatam uma incidência de estupro extremamente alta. Sua vulnerabilidade à violência sexual é parcialmente estruturada pelo gênero, já que elas estão freqüentemente mais vulneráveis a tal abuso quando cumprem as responsabilidades femininas de coletar lenha e outras tarefas essenciais à vida doméstica. Na condição em que vivem atualmente, honrar essa responsabilidade requer que elas percorram várias milhas, sozinhas ou em pequenos grupos, fora dos campos de refugiados. Desse modo, são freqüentemente atacadas, muitas vezes em conseqüência de sua identidade como mulheres refugiadas e desempoderadas. Essa condição é produto do desempoderamento étnico-racial e do patriarcalismo: por serem mulheres, a estrutura das relações de gênero exige que elas arrisquem sua segurança a fim de executarem suas tarefas; por serem hutus, são percebidas como estranhas em uma terra estrangeira. Em termos mais gerais, as condições que prevalecem nos campos de refugiados, especialmente a falta de produtos básicos para a sobrevivência, também resultam de padrões mais amplos de poder racial, em especial, o diferencial em recursos disponíveis para refugiados africanos em comparação àqueles destinados a vítimas de conflitos étnicos na Europa. Finalmente, a natureza dinâmica da violência sexual tem a ver tanto com gênero como com raça: o abuso específico a que mulheres refugiadas estão sujeitas é obviamente baseado em seu gênero, enquanto que a sua identidade como hutus as faz particularmente vulneráveis aos estereótipos raciais predominantes entre os homens da Tanzânia.
- Outro exemplo de interseccionalidade estrutural pode ser observado nos efeitos superpostos de estruturas que interagem com uma política ou outras decisões, criando fardos ou responsabilidades que são desproporcionalmente impostos a mulheres marginalizadas. O que distingue esse problema interseccional dos exemplos anteriores é que a política em questão não é de forma alguma direcionada às mulheres ou a quaisquer outras pessoas marginalizadas; ela simplesmente se entrecruza com outras estruturas, gerando um efeito de subordinação. Exemplos desse tipo de subordinação poderiam ser ilustrados pelas responsabilidades depositadas sobre as mulheres pelas políticas de ajuste estrutural das economias em desenvolvimento. As conseqüências em termos de gênero dessas políticas já foram colocadas por vários críticos que reconhecem a pesada carga depositada sobre as mulheres. Em geral, são as mulheres que sofrem as conseqüências adicionais criadas pela retração dos serviços que antes eram cobertos pelo Estado. Por exemplo, quando o Estado corta recursos relativos aos cuidados com os jovens, doentes e idosos, as necessidades não supridas recaem, em grande parte, sobre os ombros das mulheres, a quem tradicionalmente se atribuíram essas responsabilidades. Além disso, as adicionais estruturas de classe determinam quais mulheres executarão fisicamente esse trabalho e quais mulheres pagarão outras, economicamente desfavorecidas, para que prestem esse serviço. Assim, mulheres pobres acabam tendo de carregar o peso do cuidado da família dos outros, além da própria. As conseqüências do ajuste estrutural ¾ especialmente onde a desvalorização da moeda reduziu os salários ¾ colocam tais mulheres em uma posição econômica que as força a assumir ainda mais trabalho, geralmente marcado pelo gênero, que as mulheres da elite podem assegurar através do mercado.
Como o exemplo sugere, as conseqüências da subordinação interseccional não precisam ser intencionalmente produzidas. As políticas de ajuste estrutural deflagram certas dinâmicas que acabam afetando as mulheres de diferentes maneiras, embora essas decisões não sejam intencionalmente discriminatórias e nem sejam fruto de políticas totalmente nacionais. A tomada de decisões por instituições distantes do local do problema pode criar fardos monumentais para a vida de mulheres social e economicamente marginalizadas de todo o globo. À medida que os efeitos de decisões tomadas à distância fluem através de estruturas de subordinação justapostas e atingem a base, o peso do fardo sobre os ombros das mulheres torna-se mais intenso. Por conseqüência, o arrocho que ocorre em algumas economias pode funcionar como um estrangulamento econômico e social para aqueles sujeitos menos capazes de redistribuir as conseqüências de políticas de austeridade impostas de cima para baixo. O ônus desse processo não atinge o topo da pirâmide, mas a sua base, um lugar geralmente marcado pelo gênero, pela classe e, freqüentemente, pela raça.
Interseccionalidade política
Os exemplos acima dão maior relevo às conseqüências materiais da interseccionalidade. Há, no entanto, outro aspecto da superposição entre a subordinação de raça e a de gênero que merece ser observado. Mulheres de comunidades que são racial, cultural ou economicamente marginalizadas têm se organizado ativamente, em pequena ou grande escala, a fim de modificar suas condições de vida. Para isso, enfrentam não só alguns obstáculos que as mulheres de elite também enfrentam, como também outros problemas que lhes são exclusivos. Um desses obstáculos é freqüentemente definido em termos do compromisso perante seus grupos sociais ou nacionais, compromisso que é por vezes usado para reprimir qualquer crítica sobre práticas ou problemas que poderiam atrair atenção negativa sobre o grupo. Mulheres que insistem em defender seus direitos contra certos abusos que ocorrem dentro de suas comunidades arriscam serem vítimas de ostracismo ou de outras formas de desaprovação por terem presumivelmente traído ou constrangido suas comunidades. Por exemplo, Anita Hill chamou a atenção do mundo quando acusou Clarence Thomas por assédio sexual.3 Embora Hill tenha efetivamente quebrado o silêncio sobre um problema tão difundido, aumentando o nível de consciência sobre assédio sexual, muitos afro-americanos passaram a considerá-la como uma traidora dos interesses do grupo. Esse tipo particular de carga é algo que as mulheres de grupos raciais dominantes não costumam enfrentar.
Mulheres que desafiam as práticas discriminatórias defendidas por outros como sendo práticas culturais freqüentemente se encontram em posição bastante precária. Por um lado, às vezes um grupo étnico ou racial pode facilmente desencadear duras críticas em relação às práticas de um outro grupo diferente, mesmo diante de abusos igualmente questionáveis dentro de sua cultura. Por outro lado, quando as mulheres permitem que contestações às tradições culturais patriarcais dentro de suas comunidades sejam silenciadas, elas perdem a oportunidade de transformar práticas que são prejudiciais às mulheres em geral.
Desenvolvendo um protocolo interseccional
Embora a interpretação das convenções e leis estabelecidas seja por vezes limitada, de modo a apreender somente a discriminação ou o desemporderamento que ocorre ao longo de um único eixo de poder, é importante reconhecer que tais interpretações desconsideram as possibilidades explícitas nas convenções, leis e declarações, cujo intento é proteger os indivíduos da negação de direitos baseada na raça e no gênero. Assim, na medida em que a CERD objetiva proteger os indivíduos da discriminação racial, ela inclui todos os aspectos da discriminação racial, inclusive aqueles que afetam diferentemente homens e mulheres. A mesma interpretação se aplica à discriminação de gênero: os direitos garantidos pela CEDAW englobam toda a gama de experiências da discriminação de gênero relacionadas à raça.
Embora não seja necessária outra formulação dos princípios básicos para estabelecer direitos e proteções contra a discriminação interseccional, seria útil que se desenvolvessem protocolos interpretativos a fim de romper com os limites das interpretações e práticas existentes, os quais reduzem os direitos das vítimas de subordinação interseccional.
Análise contextual e coleta de informações
Por sua natureza, a subordinação interseccional é freqüentemente obscurecida tanto porque tende a atingir aqueles que são marginais mesmo dentro de grupos subordinados, como pelo fato de que os paradigmas existentes não prevêem de forma consistente esse tipo de discriminação. Há poucos padrões que fornecem um gancho investigatório sobre as circunstâncias por vezes complexas que contribuem para a subordinação interseccional. Isso não surpreende, pois é lógico que, se um dano específico não é previsto, é difícil revelá-lo através do uso de ferramentas analíticas afinadas somente com os paradigmas prevalecentes de discriminação. Essa disparidade entre padrões e práticas estabelecidas para a investigação da discriminação e as realidades freqüentemente complexas da subordinação interseccional gera ainda outra dimensão de vulnerabilidade interseccional. Como certos problemas não são previstos, eles também não são imediatamente descobertos e, por isso, sua análise continua subdesenvolvida. Os esforços no sentido de melhor compreender os problemas ligados à interseccionalidade passam por um ponto de inflexão que vai de sua presente invisibilidade até a conscientização dos membros de órgãos revisores dos tratados internacionais, dos formuladores de políticas públicas, de ativistas de ONGs e de tantos outros atores.
É menos provável que a vulnerabilidade interseccional seja identificada onde a análise dominante está estruturada como uma investigação categórica (ou de cima para baixo) sobre como as discriminações colorem nosso mundo social. As conseqüências interativas do racismo e da discriminação sexual somente serão reveladas se essa abordagem de cima para baixo for reconfigurada de forma a seguir as pistas da discriminação até o ponto onde as práticas de subordinação interagem com, influenciam e são influenciadas por outras formas de subordinação.
O reconhecimento e a aceitação desse problema requerem que os protocolos interseccionais focalizem principalmente a análise contextual. Portanto, a atenção à subordinação interseccional exige uma estratégia que valorize a análise de baixo para cima, começando com o questionamento da maneira como as mulheres vivem suas vidas. A partir daí, a análise pode crescer, dando conta das várias influências que moldam a vida e as oportunidades das mulheres marginalizadas. É especialmente importante descobrir como as políticas e outras práticas podem moldar suas vidas diferentemente de como modelam as vidas daquelas mulheres que não estão expostas à mesma combinação de fatores enfrentados pelas mulheres marginalizadas.
Para isso, são necessários esforços no sentido de destacar a necessidade de que os/as pesquisadores/as examinem especificamente as experiências das mulheres marginalizadas. No entanto, há pouca informação direta sobre elas, o que é agravado pelo fato de os relatórios e as ferramentas de avaliação não conseguirem revelar experiências não catalogadas previamente, de forma a refletir as identidades múltiplas das mulheres marginalizadas ou a gama de pesadas cargas que somente elas sustentam. Assim, é preciso formular protocolos especiais de pesquisa, a fim de desenvolver uma base de informação adequada a partir da qual se analisem as conseqüências específicas da raça e do gênero. Esses protocolos especiais de pesquisa podem envolver especialistas de várias áreas, que desenvolvam métodos de pesquisa capazes de desvendar aspectos-chave da subordinação interseccional. Essa informação poderia, assim, formar a base para um exame mais detalhado dos problemas ou das condições que estruturam as realidades da vida de mulheres marginalizadas.
Desenvolvendo metodologias para a análise da subordinação interseccional
Para assegurar a total visibilidade da subordinação interseccional, será necessário desenvolver novas metodologias que desvendem as formas como várias estruturas de subordinação convergem, pois é muito pouco provável que tais problemas se apresentem claramente como produto de vulnerabilidades múltiplas.
O desenvolvimento da conscientização quanto à dimensão interseccional desses problemas poderia ser encorajado pela adoção de uma política de ‘fazer outras perguntas’, uma metodologia proposta pela teórica feminista Mari Matsuda. Conforme Matsuda sugere, muitas vezes uma condição pode ser identificada, por exemplo, como produto óbvio do racismo, porém, mais poderia ser revelado se, como rotina, fossem colocadas as seguintes perguntas: “Onde está o sexismo nisso? Qual a sua dimensão de classe? Onde está o heterossexismo?”. E a fim de ampliar ainda mais tais questionamentos, poder-se-ia perguntar: “De que forma esse problema é matizado pelo regionalismo? Pelas conseqüências históricas do colonialismo?”.
A aplicação dessa metodologia às condições de trabalho nas zonas de processamento e exportação pode ser uma experiência reveladora. A dimensão de gênero dessas condições pode estar imediatamente aparente: são mulheres que ocupam tais setores, um fator que por si só reflete a dinâmica de gênero pela qual as mulheres são mais requisitadas para trabalhar nessas áreas. Mas há mais do que gênero envolvido nessa questão. Tais dinâmicas adicionais poderiam ser descobertas através da formulação de um conjunto de perguntas. Há racismo atuando na determinação de quais mulheres serão sujeitas a tais condições de trabalho? Há alguma outra estrutura de poder que permite que essas condições continuem? Na arena global mais ampla, o que contribui para a existência dessas condições? A colocação de tais perguntas adicionais pode revelar que raça ou etnia desempenhou um papel na determinação de quais direitos a condições humanas de trabalho poderiam ser prontamente desrespeitados por formuladores de políticas desesperados por atrair investimento estrangeiro. É evidente que esse desespero pode estar fundamentado nas relações históricas e contemporâneas entre o Norte e o Sul, as quais poderiam ser exploradas com proveito através dessa série de questionamentos. Em suma, onde parece haver evidência de discriminação de gênero ou de raça, um protocolo afinado com a interseccionalidade deveria considerar se existe ou não algo em relação às mulheres (ou aos homens) em questão que as torna particularmente vulneráveis a certos abusos.
Desafios e recomendações
Se plantado em solo fértil, o protocolo sugerido acima pode constituir uma intervenção efetiva contra a invisibilidade da subordinação interseccional. Há, no entanto, certos dilemas ¾ alguns dos quais bastante significativos ¾ que irão complicar até as mais ambiciosas tentativas de expandir as atividades de direitos humanos no sentido de incorporar os direitos das mulheres e dos homens sujeitos à subordinação interseccional:
- Raça ou etnia não é um marcador constante em todo o mundo
A capacidade de explicar as intersecções da subordinação apóia-se na capacidade de conceituar com alguma clareza a função das hierarquias étnico-raciais e outras práticas baseadas no grupo. Enquanto é óbvio que todas as sociedades são, em graus variáveis, delineadas pelo gênero, por vezes é difícil de estabelecer firmemente a questão da raça ou de divisões correlatas. Muitas sociedades têm uma história pouco marcada por classificações raciais explícitas, do tipo apartheid, como aquelas que caracterizam as sociedades construídas sobre uma estratificação racial, como é o caso dos Estados Unidos e da África do Sul. Contudo, a história e a continuada subordinação dos povos indígenas é generalizada e, na maior parte dos países, continua ocorrendo uma combinação específica de certas características de grupo entre aqueles que ocupam os degraus mais baixos da sociedade. Os que são pobres, ou são de alguma outra maneira marginais, geralmente são diferentes da elite seja pela cor, pela casta, descendência, língua ou religião. Existem certos aspectos da estratificação racial que são exclusivos de sociedades pós-apartheid, entretanto, a história e as práticas de diferenciação entre grupos estão suficientemente disseminadas para que se possa perceber que as diferenças entre países são mais de grau do que de natureza. Além disso, com a crescente fluidez de movimento através de fronteiras internacionais, nenhuma sociedade pode, verdadeiramente, reivindicar-se como homogênea. Assim, nenhuma sociedade é imune ao racismo ou a intolerâncias correlatas; conseqüentemente, o imperativo de considerar a interação do racismo ou de outras intolerâncias com o sexismo continua sendo válido.
- O desenvolvimento desigual dos discursos de direitos humanos de raça e de gênero
O nível de organização e institucionalização da prática de direitos humanos com base no gênero está mais avançado do que o com base na raça. Essa importante diferença pode complicar os esforços para enfocar a subordinação interseccional. Enquanto existem várias instituições e ONGs internacionais que se dedicam a garantir os direitos humanos das mulheres, o número de instituições semelhantes sob a rubrica da raça é comparativamente limitado. Talvez em conseqüência disso, atualmente não haja consenso sobre a adoção de uma política de incorporação da perspectiva de raça (race mainstreaming). Considerando que a afirmação de que a raça, ou outra diferença correlata, continua a permear a maioria das sociedades é altamente contestada, a construção de um consenso sobre a importância de sua incorporação pode ser uma luta árdua. Obviamente as hierarquias de raça e outras a ela relacionadas não são iguais às de gênero, mas, dado o nível de desigualdade racial no mundo e a forma pela qual a raça, como o gênero, pode limitar dramaticamente a fruição dos direitos e garantias básicas, as instituições das Nações Unidas deveriam incorporar ao seu trabalho as análises que levam em conta a raça.
- Tematizando a divisão Norte/Sul
Algumas das vulnerabilidades interseccionais discutidas aqui são, em parte, conseqüência da divisão Norte/Sul. Enquanto isso pode limitar o grau de tratamento dessas questões na perspectiva dos direitos humanos, que cuida primordialmente das relações no interior dos Estados, a eventual construção racial/étnica de tal divisão, juntamente com seus vínculos com a história colonial, introduz o fantasma da raça ou da cor no nível macro da equação. Portanto, poucas circunstâncias podem ser definidas como ‘livres da raça’, mesmo supondo um caso em que nenhum direito humano possa ser explicitamente invocado.
- O complexo papel das elites racializadas
A subordinação econômica ou política de algumas nações na esfera internacional pode às vezes contribuir para a negação de divisões raciais internas, o que, por sua vez, complica os esforços de estabelecer uma análise interseccional. As relações de desempoderamento entre certas nações na arena global são certamente uma realidade. Ainda assim, as elites das sociedades do Sul são por vezes marcadas por uma dualidade: marginalizadas e talvez até silenciadas na arena internacional, mas ocupando posição privilegiada dentro de suas nações. As elites dessas sociedades podem se apropriar dos discursos sobre raça e outras formas correlatas de subordinação para ressaltar as relações de poder existentes entre o Norte e o Sul, enquanto resistem às tentativas de examinar as hierarquias internas, as quais também podem manifestar subordinação racial ou de outros tipos. A análise interseccional pode ajudar na formulação desse debate, de maneira que sejam reconhecidos tanto os padrões mais gerais de poder entre o Norte e o Sul como a superposição de hierarquias existentes no interior de cada nação.
- Os discursos dos nacionalismos e a solidariedade racial
A expressão política da solidariedade racial ou o nacionalismo constitui-se em obstáculo para que se aborde o bem-estar de mulheres racialmente identificadas em todo o mundo. Com base na defesa da raça ou da nação, a retórica antifeminista às vezes coloca as mulheres na posição insustentável de ter que escolher entre suas identidades como mulheres e suas identidades como membros de nações ou de grupos raciais marginalizados. A análise interseccional pode ajudar na reestruturação dos interesses das mulheres como sendo co-extensivos aos interesses da raça ou da nação e, conseqüentemente, eliminar a exigência de que as mulheres racializadas tomem posições contra elas próprias.
À luz dessas observações, apresentamos as seguintes recomendações:
- Promover melhorias na coleta de dados e nas estratégias de desagregação
Os dados coletados pelos órgãos de vigilância dos tratados internacionais e por outras instituições de direitos humanos deveriam ser desagregados por raça e gênero e, quando possível, cruzados para permitir identificar a condição das mulheres marginalizadas. Esses órgãos e instituições deveriam encorajar os Estados a coletar os dados necessários para determinar até que ponto mulheres marginalizadas estão sujeitas à subordinação interseccional. A importância desses órgãos na criação de incentivos para a coleta desagregada de dados tem sido articulada pela Divisão das Nações Unidas pelo Progresso da Mulher (United Nations Division for the Advancement of Women/DAW) e por outras instituições, no contexto da incorporação da perspectiva de gênero. Dessa maneira, “enquanto que remediar a falta desses dados é primeiramente responsabilidade de Estados-membros, uma solicitação explícita dos Comitês desses dados e sua análise pode servir como estímulo para que os governos providenciem tais informações de forma mais sistemática”.
- Entender a responsabilidade dos órgãos de revisão de tratados na solicitação de uma análise interseccional
O Comitê sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (CERD) já deu um passo significativo para a incorporação de uma análise de gênero em seu campo de ação, através da recente adoção da Recomendação 25. Dessa forma, “em seu trabalho, o Comitê se empenhar-se-á em levar em conta fatores ou questões relacionados ao gênero ou temas que possam ser interligados com a discriminação racial”. Ao fazer isso, o Comitê procura desenvolver “uma abordagem mais sistemática e consistente no sentido de avaliar e monitorar tanto a discriminação racial contra as mulheres como as desvantagens, obstáculos e dificuldades que essas enfrentam para o exercício e á fruição plenos de seus direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais com base na raça, cor, descendência, origem nacional ou étnica”. A CEDAW e suas instituições de apoio também deveriam corrigir seus protocolos onde fosse necessário a fim de garantir que a subordinação interseccional seja reconhecida, investigada e tratada.
- Revisar os mecanismos nacionais para determinar a possibilidade de as mulheres buscarem proteção e reparação contra a discriminação interseccional
Em nível doméstico, poucos países cumpriram a tarefa de garantir que os danos interseccionais pudessem ser efetivamente remediados. Apesar disso, relevantes tratados sobre a discriminação exigem que os países signatários proponham uma legislação nacional que aborde tanto a discriminação racial quanto a de gênero. Se os mecanismos nacionais não são capazes de tratar desses problemas interseccionais, as mulheres marginalizadas não podem receber toda a proteção a que teriam direito. Portanto, países que não fornecem soluções para a discriminação interseccional não cumprem totalmente suas obrigações. A fim de preencher essa lacuna, é essencial não apenas que o gênero seja incorporado aos relatórios e revisões dos países por meio da CERD, mas também que a raça seja similarmente incorporada ao funcionamento de todas as instituições e órgãos da ONU, incluindo a CEDAW, a DAW e a Comissão sobre a Condição da Mulher (Commission on the Status of Women/CSW).
- Dar um apoio à incorporação da perspectiva de raça semelhante ao dispensado à incorporação do gênero
À medida que a Conferência Mundial contra o Racismo se aproxima, é provável que surjam esforços no sentido de chamar a atenção institucional para problemas da diferença racial e étnica. Esse possível desdobramento deveria ser apoiado pelas mesmas instituições que facilitaram o consenso sobre a incorporação da perspectiva de gênero. A atenção ao papel da raça ou dos seus análogos mais próximos se faz necessária, em parte, para garantir que a incorporação do gênero assegure a inclusão de toda a gama de experiências ligadas ao gênero. Mas independentemente da necessidade de atentar para a raça, como meio de perceber suas intersecções com o gênero, a reflexão sobre o modo como esta e outras categorias da diferença determinam a vida diária de pessoas em todo o mundo é tão obrigatória quanto foi no caso do gênero.
Todos os organismos de direitos humanos e as instituições de apoio deveriam revisar seus documentos e práticas correntes ¾ particularmente aquelas associadas à incorporação do gênero ¾ a fim de perceberem que eles próprios têm a ver com as vulnerabilidades específicas de mulheres racialmente subordinadas. Embora seja largamente reconhecido dentro do discurso da incorporação do gênero que gênero é uma construção social que varia em relação a fatores como raça e outros, essa observação fundamental raramente determinou a forma pela qual os órgãos de vigilância dos tratados internacionais têm lidado com essa categoria no âmbito de suas obrigações institucionais. Curiosamente, vários outros fatores são mais rapidamente incorporados à análise de gênero do que a raça. Por exemplo, conforme relatado no documento Women 2000,4 o Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Committee on Economic, Social and Cultural Rigths/CESCR) pedia especial atenção aos direitos das mulheres vulneráveis. Ainda assim, levando-se em conta as categorias da vulnerabilidade, a CESCR não considerou a raça, a cor, a etnia ou qualquer dos outros eixos da identidade que poderiam contribuir com a vulnerabilidade das mulheres marginalizadas. O fato de que essa grave omissão pôde ocorrer em um contexto em que se pretendia promover maior inclusão levanta sérias preocupações sobre se a incorporação do gênero tratará verdadeiramente de toda a gama de conseqüências relativas ao gênero ou se simplesmente enfocará uma faixa mais estreita de diferenças.
- Capacitar as mulheres marginalizadas para participar mais diretamente dos discursos de direitos humanos, através do aumento de financiamentos e treinamentos
O amplo leque da marginalidade interseccional somente será integrado aos discursos dos direitos humanos das mulheres quando as mulheres racialmente subordinadas de todo o mundo tiverem total acesso às instituições dos direitos humanos. Atualmente, muitas mulheres racializadas ganham acesso a tais instituições por meio de grupos de mulheres da elite. Às vezes, essas instituições estão em seus próprios países, mas freqüentemente estão localizadas fora, por isso deveriam ser disponibilizados recursos para que grupos autônomos de mulheres participem e influenciem os discursos dos direitos humanos.
- Indicar um/a Relator/a Especial para promover maior conscientização sobre as condições das mulheres de grupos étnicos e raciais discriminados de todo o mundo
Há muito pouca informação e conscientização sobre as formas específicas de desrespeito ou abuso dos direitos de mulheres racialmente marginalizadas. Há alguns anos, predominava uma situação até certo ponto semelhante com respeito à violência contra as mulheres. Radikha Coomaraswamy, Relatora Especial sobre Violência contra a Mulher, tem procurado destacar não apenas a vitimização geral de mulheres, assim como tem avançado em novas perspectivas para o diálogo sobre o abuso de mulheres e suas implicações para a prática dos direitos humanos. A conscientização a respeito da subordinação interseccional é somente um dos vários objetivos principais de um/a Relator/a Especial. As tarefas adicionais seriam facilitar a criação de protocolos e a coleta de dados necessários ao desenvolvimento de um entendimento prático desses problemas e apoiar os atuais esforços dos órgãos das Nações Unidas no monitoramento mais efetivo do progresso dos países na garantia dos direitos de mulheres marginalizadas.
- Realizar uma reunião conjunta dos Comitês da CERD e da CEDAW
Embora a incorporação do gênero se aplique amplamente ao mandato de todas as instituições das Nações Unidas, talvez a interação mais produtiva, que poderia aumentar o nível de entendimento sobre aspectos do racismo relacionados ao gênero e sobre aspectos do sexismo relacionados à raça, seria uma reunião conjunta da CERD e da CEDAW. Essa recomendação não é totalmente sem precedentes. De acordo com o documento da DAW, Women 2000, o Comitê dos Direitos da Criança (CRC) e o CEDAW reuniram-se em 1996 a fim de coordenar os métodos de trabalho para promover os direitos assegurados pelas duas convenções. A colaboração mútua nesse sentido foi facilitada pela designação de um membro do CRC para acompanhar o trabalho do CEDAW. Certamente a natureza da discriminação interseccional sugere que os esforços para proteger os direitos específicos de mulheres racialmente marginalizadas exigem alguma coordenação, dados os parâmetros superpostos do CERD e do CEDAW. A coordenação de conceitos e de procedimentos entre os órgãos encarregados de acompanhar a implementação de convenções pelos países garantiria a eliminação das fendas através das quais os direitos de mulheres com múltiplas opressões poderiam desaparecer.
- Criar uma linguagem para o esboço do documento da Conferência Mundial contra o Racismo chamando atenção para a discriminação interseccional
A próxima Conferência Mundial contra o Racismo representa uma oportunidade de criar um consenso em torno da importância de reconhecer, monitorar e apresentar soluções para a discriminação interseccional. Se possível, recomendações conjuntas dos órgãos relevantes deveriam ser esboçadas para inclusão na documentação da Conferência Mundial contra o Racismo.
Conclusão
O quadro analítico apresentado neste documento teve como único propósito facilitar o diálogo produtivo e o desenvolvimento de informações acessíveis sobre as dimensões de raça e gênero da subordinação interseccional. A análise é provisória e, conforme sua utilidade, poderá ser revisada ou até mesmo descartada.
A análise também não pretendeu ser exaustiva. Os exemplos expostos funcionam meramente como ilustrações concisas de algumas das dinâmicas principais da subordinação interseccional. Na verdade, há dezenas de questões que poderiam também ser discutidas nessa perspectiva, entre as quais pode-se incluir: Aids e outros tópicos relacionados à saúde, desenvolvimento econômico, acesso à terra e aos recursos naturais, casamento e família, velhice, violência doméstica, chefia de domicílios, direitos reprodutivos e controle populacional, poder político, cultura popular e educação. Certamente essa lista crescerá ¾ bem como a análise aqui sugerida ¾ quando mulheres de todo o mundo entrelaçarem o fio de suas vidas no tecido dos direitos humanos.
Tradução de Liane Schneider
Revisão de Luiza Bairros e Claudia de Lima Costa
Background Paper for the Expert Meeting on the Gender-Related Aspects of Race Discrimination
Abstract: Neither the gender aspects of racial discrimination nor the racial aspects of gender discrimination are fully comprehended within human rights discourses. Building on the growing recognition that race and gender discrimination are not mutually exclusive phenomena, this background paper forwards a provisional framework to identify various forms of subordination that can be said to reflect the interactive effects of race and gender discrimination. It suggests a provisional protocol to be followed to better identify the occasions in which such interactive discrimination may have occurred, and posits further that the responsibility to address the causes and consequences of such discrimination be shared widely among all human rights institutions.
Keywords: gender, race, discrimination, intersectionality, human rights.
1 A versão original (em inglês) deste documento, intitulado “Background Paper for the Expert Meeting on Gender-Related Aspects of Race Discrimination”, encontra-se na homepage Women’s International Coalition for Economic Justice <www,wuceh,addr,cin/wcar_docs/crenshaw.html>. A tradução em português deste documento é aqui publicada com permissão da autora.
2 Na Índia, dalit representa uma casta constituída por pessoas consideradas ‘intocáveis’ (N.R.).
3 Anita Hill, uma mulher negra ex-colega (embora funcionária subalterna) do juiz negro Clarence Thomas, acusou este de assédio sexual durante as ‘audiências’ no Senado norte-americano quando de sua indicação à Corte Suprema dos Estados Unidos (N. R.).
4 Esse documento encontra-se acessível em <www.unifem.undp.org/progressww/> (N.R.).