Por Deivison Mendes Faustino
Autor de obra sobre o filósofo antirracista aponta: ele inspirou intelectuais e movimentos contra a ditadura. Agora, é retomado pela juventude negra que busca desvelar as marcas do colonialismo na subjetividade — e construir novas insurgências.
Deivison Faustino lança pela editora UBU, o livro “Frantz Fanon e as encruzilhadas – Teoria, política e subjetividade”. Entrevista a Alessandra Monterastelli, Guilherme Arruda e Ana Sarabia.
Marxismo, pan-africanismo, psicanálise. Utilizando-se de múltiplas bagagens, o filósofo e psiquiatra caribenho foi imortalizado pela originalidade de seu pensamento e pelas suas críticas astutas, que alteraram o rumo das discussões sobre racismo, colonização e classe na segunda metade do século XX. Sua obra influenciou amplamente intelectuais, movimentos sociais e revolucionários.
Com a queda do Muro de Berlim em 1989 e o enfraquecimento da pauta terceiro-mundista, as análises de Fanon saíram de cena por um longo período. Na virada do século, as reivindicações do Movimento Negro por políticas públicas de acesso a educação alteraram essa configuração: a ampliação da presença da população negra nas Universidades resultou no aumento da demanda por estudos antirracistas e autores negros. É nesse momento, segundo Faustino, que a obra do autor retorna a centralidade das discussões sobre racismo e classe no Brasil.
De que forma você acha que as novas leituras de Fanon reconfiguraram a interpretação de seu pensamento no Brasil? A que você credita o aumento da popularidade de Franz Fanon nos últimos anos?
Não é de hoje que o Fanon é lido no Brasil. Um levantamento realizado pelo sociólogo Antônio Sérgio Guimarães, em 2008, sugere que Fanon já era lido desde o início dos anos 1960, mas que a primeira menção conhecida à Fanon é de um artigo de Gérard Chaliand, de 1966. Tratava-se de uma crítica à sua concepção de campesinato no interior das revoluções africanas. Foi publicado no país só em 1968, por intermédio de Florestan Fernandes, mas foi tirado de circulação logo em seguida pelo regime militar. Ainda assim, o livro seguiu circulando clandestinamente entre a militância de esquerda e inspirou toda uma geração de leitores. Podemos dizer, sem sombra de dúvidas, que Fanon foi lido e influenciou o pensamento e práxis político-estética de importantes intelectuais, acadêmicos e militantes na segunda metade do século XX. É curioso que o livro de cabeceira dessas gerações foi, majoritariamente, Os condenados da terra.
A recepção de Os condenados, no entanto, pode ser dividida em dois grandes grupos. O primeiro era composto por intelectuais brancos de esquerda que viam em Fanon uma referência revolucionária. A oposição fanoniana entre colonizador (opressor) e colonizado (oprimido), bem como a reflexão sobre as dimensões subjetivas das formas de dominação daí decorrentes, vão ser interpretadas em termos da classe na periferia do capitalismo de forma a discutir tanto as desigualdades sociais quanto as dominações culturais imperialistas. Para leitores de Fanon como Paulo Freire, Glauber Rocha, Octavio Ianni, Renato Ortiz e outros, a raça e o racismo são ausentes ou subordinados à uma reflexão cujo foco é a luta de classes.
Esse enfoque mudará radicalmente na escrita de intelectuais negros de esquerda que orbitam em torno do Movimento Negro Unificado, criado em 1978. Para eles, o povo negro era o “colonizado” e o branco o “colonizador” denunciado por Fanon. Essa guinada permite trazer o tema do racismo ao centro do debate em suas contribuições – ainda que esses intelectuais não tenham abandonado a perspectiva da luta de classes. Nomes como Lélia Gonzalez, Clóvis Moura, Amilton Cardoso, Milton Barbosa, Márcio Barbosa, Cuti, entre muitos outros, se apoiaram em Fanon para discutir as expressões raciais da luta de classes no Brasil, mas também as dimensões subjetivas da dominação racial.
O caso mais emblemático é o de Lélia Gonzales, que promoveu um diálogo entre Fanon e Lacan para pensar as particularidades do racismo brasileiro. Clóvis Moura, por sua vez, discutirá o papel subjetivo das lutas anti-escravagistas e Márcio Barbosa e Cuti exploraram o papel do intelectual na luta anticolonial. A única exceção a esse uso generalizado de Os condenados da terra no século XX – aliás, uma notável exceção – foi a da psicanalista baiana Neuza Santos Souza. Ela toma a versão espanhola de Pele negra, máscaras brancas para a escrita de seu célebre Tornar-se Negro, no qual discute os efeitos subjetivos do racismo.
Apesar de ter sido importante para esses dois grupos, Fanon desaparece do cenário intelectual junto com a perda de hegemonia das perspectivas revolucionárias na virada de século. A queda do Muro de Berlim e suas diversas crises de paradigmas trouxe como resultado a derrota ideológica das chaves analíticas pelas quais Fanon era lido até então – tanto pela esquerda revolucionária quanto pelo movimento negro radical. Não parecia ter espaço para Fanon no século XXI: não apenas a revolução terceiro-mundista saia de perspectiva, como o movimento negro radical dava lugar, na primeira década dos anos 2000, a um movimento mais pragmático e voltado à reivindicação governamental por políticas públicas.
A grande ironia histórica, respondendo a uma de suas perguntas, é que foi justamente uma das políticas públicas desse período que trouxe Fanon para o debate brasileiro no século XXI. Me refiro às políticas de ações afirmativas na educação. A ampliação da presença negra na graduação e na pós, na pesquisa e na docência, resultou em uma demanda jamais vista pela disponibilidade de estudos antirracistas e, sobretudo, autores negros. Penso que esse é o principal fator que explica a retomada de Frantz Fanon. Intelectuais negros já o liam, mas não acessavam as universidades e nem tinham acesso aos espaços canônicos de circulação e legitimação de ideias.
Acho que vale separar a recepção contemporânea de Fanon – essa que inicia no século XXI – em dois períodos. Um primeiro marcado pela publicação do artigo do Antônio Sérgio Guimarães sobre a recepção de Fanon e pela influência do pensamento pós-colonial e decolonial nas universidades brasileiras. Esse momento privilegiou a leitura de Pele negra, máscaras brancas e os debates críticos à identidade, negritude e ao essencialismo, mas também à valorização de saberes subalternizados na modernidade. É interessante notar que Fanon era frequentemente lido como um autor pós-colonial ou decolonial e autores como Hommi Bhabha, Stuart Hall, Anibal Quijano, entre outros, referidos como seus principais tradutores contemporâneos.
Esse cenário se alterou substancialmente nos últimos 5 anos. Acredito que a publicação da minha tese de doutorado tenha tido um papel nisso, pois evidenciou a existência de outras leituras possíveis e não necessariamente antagônicas às pós-coloniais e decoloniais. Foi surgindo uma quantidade imensa de trabalhos pensando Fanon a partir de outras tradições teóricas, algumas das quais resgatando e atualizando aquelas do século XX, outras, inaugurando novos debates e perspectivas de leitura. Posteriormente, a ampliação na quantidade de trabalhos acadêmicos sobre Fanon e, sobretudo, o crescente interesse pelo autor provocou o mercado editorial a traduzir ou reeditar seus livros. Eu participei de alguns comitês editoriais e pude testemunhar, em 2019, uma verdadeira corrida pelos direitos autorais de Fanon, um autor desconsiderado até um ou dois anos antes. Então o que mudou?
Esses estudantes negros que mencionei acima não foram apenas consumidores de livros, mas formuladores de novas perguntas de pesquisa que reconduziram o debate social a respeito de diversos temas sensíveis para a produção de conhecimentos e para a sociedade como um todo. O pensamento de Fanon foi importante aqui e a sua própria difusão foi facilitada por esse movimento. Penso se tratar de um movimento dialético: há um conjunto de discussões abertas e de difícil resolução em curso para as quais Fanon oferece contribuições singulares. O retorno a seu pensamento, portanto, permite retomar debates fanonianos relacionados à identidade e identificação, à universalidade e à diferença, à relação entre política, economia e a subjetividade, mas sobretudo, a discussões sobre sujeito, razão, humanismo, e emancipação. Como sociólogo, posso dizer que o retorno à Fanon diz muito sobre a vitalidade de seu pensamento e sobre o contexto social em que esse pensamento é mobilizado. Penso que há algo novo acontecendo, precisamos estar atentos.
Por que a escolha do termo “encruzilhada” para ressaltar o aspecto interdisciplinar da obra de Fanon?
Foi com muita cautela que eu decidi nomear o livro como Frantz Fanon e as encruzilhadas. O termo “encruzilhada”, hoje muito em voga, foi usado em 1997 por Leda Maria Martins em um estudo sobre o Congado. A encruza é uma instância muito importante no imaginário sagrado afro-brasileiro e representa, no universo bakongo, o ponto de encontro, de comunicação e relação entre instâncias diversas, antagônicas e até contraditórias. Muito diferente de um senso comum que a entende exclusivamente como fim do caminho ou enrascada, a encruzilhada pode ser território, episteme ou estratégia oxímora de relação entre sagrado e profano, morto e vivo, passado e presente, bem e mal, etc.
Embora Frantz Fanon não seja brasileiro e eu não saiba dizer se houve influência bakongo em sua formação afrocaribenha – ainda que tenha conhecimento de uma forte presença dessa matriz cultural africana no Caribe – penso que não há um enquadramento melhor para ele. Neste livro trato de no mínimo três encruzas que envolvem Fanon. Em primeiro lugar, o seu pensamento se situa em uma encruzilhada complexa e movediça entre o marxismo, o existencialismo e a psicanálise. O ponto de partida e de chegada desse cruzamento é o movimento de negritude e o panafricansimo que o levou a defender um certo anticolonialismo anti-imperialista atento aos temas da identidade e da subjetividade. Em seus escritos, a subjetividade e o desejo apresentam-se como incontornáveis para a tematização da política e da economia e, por outro lado, a subjetividade não pode ser coerentemente abordada sem um olhar atento às dimensões sociais do sofrimento psíquico.
A segunda encruza é decorrente da primeira e se converte em um campo que não foi inaugurado por Fanon, mas dele teve contribuições fundamentais: a práxis. Em sua concepção, o conhecimento mais preciso possível da realidade é uma condição incontornável para que ela possa ser transformada, mas o objetivo do conhecimento é a transformação social. Trata-se de um conhecimento interessado, desde o início, na emancipação humana e compromissado até o fim com a perspectiva dos condenados. Para isso, a política não pode desconsiderar as batalhas que se travam no campo da produção de conhecimento; este não é nunca um fim em si mesmo.
Por outro lado, a práxis proposta por Fanon é aquela que consegue articular diferentes instâncias da realidade social em único projeto emancipatório. Assim, o equacionamento do racismo, sexismo ou outros temas subjetivos não poderia esperar pela resolução das demandas econômicas, mas sim, aparecem como elementos indispensáveis para a sua resolução. Em Fanon, não se trata de escolher entre raça, classe ou gênero, mas sim – ainda que ele não tenha dado tanta atenção a esse último – de pensar como essas instâncias se articulam na realidade concreta sobre aquilo que Marx chamou de “síntese de múltiplas determinações”.
A terceira encruza que eu abordo no livro tem a ver com a recepção do seu pensamento ao longo das últimas seis décadas. A recepção de seu pensamento também está em uma encruzilhada entre a hermenêutica e a exegese, ou seja, entre uma leitura que se assume localizada e parcial, mas que às vezes acaba recortando trechos deslocados de seu pensamento para finalidades totalmente distintas daquelas defendidas por Fanon. Daqui, por vezes, emerge uma discussão importante, incontornável e infindável, já que estamos falando de um autor que tem se apresentado como um clássico; por outro lado, se a noção da encruzilhada se perde, pode-se cair em uma disputa estéril e empobrecedora ao enquadrar o autor em determinadas matrizes sem levar em conta a originalidade de seu pensamento.
Fonte: Outras Palavras.