Por Leonardo Fuhrmann
FIAgro permite a participação de estrangeiros em fundos que adquirem ou arrendam imóveis rurais no Brasil.
O novo Fundo de Investimento do Agronegócio (FIAgro), sancionado com vetos pelo presidente Jair Bolsonaro em março deste ano, é parte do processo de financeirização rural, acentuado a partir da Lei do Agro, aprovada em março de 2020. A lei, apresentada em forma de medida provisória, foi saudada pela Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA) como um “marco na modernização da política agrícola brasileira” e pela Associação Brasileira do Agronegócio (Abag) como uma medida que “confere segurança jurídica” ao produtor.
No entanto, por trás de tais expressões está uma maior especulação sobre a propriedade da terra, o que estimula a grilagem e dificulta ainda mais a garantia constitucional de seus territórios para povos originários e tradicionais, alerta o economista Guilherme da Costa Delgado, pesquisador aposentado do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Em nota técnica, a Secretaria de Política Econômica do Ministério da Economia afirma que o objetivo é aumentar as possibilidades de financiamento privado para o setor da agropecuária empresarial para que o crédito público sirva apenas à agricultura familiar.
Uma das principais inovações é a hipoteca fracionada, que dá a possibilidade de uma mesma propriedade rural servir como garantia em diversas operações de crédito. Também facilita a transferência da propriedade no caso de falta de quitação da dívida, com a tomada do imóvel por via administrativa, sem a necessidade de um processo judicial de execução. O argumento é que a desburocratização pode incentivar a entrada de agentes do mercado financeiro nesse mercado, o que poderia provocar uma redução de juros.
Porteira aberta para investimento estrangeiro
Uma das possibilidades previstas dentro da lei do Agro, proposta pelo governo, é a emissão de títulos do agronegócio, como a Cédula do Produto Rural (CPR), em moeda estrangeira. A opção é oferecida apenas a investidores que não sejam residentes no Brasil. A possibilidade oferece uma maior circulação e volatilidade aos títulos do agronegócio para investimentos estrangeiros diretos no setor.
O FIAgro chega como um novo passo dentro da Lei do Agro, já que permite a participação de estrangeiros em fundos que adquirem ou arrendam imóveis rurais no Brasil. Autor do projeto, o deputado federal Arnaldo Jardim (Cidadania-SP), ligado ao agronegócio, afirma que a proposta não transfere a propriedade de terras no Brasil para estrangeiros porque obriga os fundos a terem um mínimo de cotistas e um gestor nacional.
Orlando Aleixo de Barros Júnior, doutorando do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA-UFRRJ), discorda do parlamentar. Ele explica que “existem fundos estrangeiros com diversas subsidiárias no Brasil, cada uma com um CNPJ diferente. Um fundo estrangeiro pode controlar a propriedade ou o arrendamento de uma terra assim.”
No entanto, a sanção do FIAgro do jeito que está não foi suficiente para a bancada ruralista. Os parlamentares ligados ao agronegócio trabalham agora para derrubar os vetos feitos pelo presidente, sob argumento de que, do jeito que está, o fundo não é atrativo para os investidores. A razão é que Bolsonaro não manteve a isenção de imposto de renda sobre os dividendos para as pessoas físicas que investissem nos fundos imobiliários e o adiamento do recolhimento do imposto de renda sobre o ganho de capital apurado na integralização do bem, um imóvel rural, por exemplo.
A Receita Federal orientou o governo pelo veto por considerar que estes itens configuravam renúncia fiscal. Os integrantes da bancada ruralista afirmam que os mesmos benefícios já são dados aos Fundos de Investimento Imobiliário (FIIs).
O ministro da Economia, Paulo Guedes, já defendeu a taxação de dividendos, no mercado de ações. A situação não foi esclarecida se incluía também os fundos, como o FII. Para ele, seria uma maneira de reduzir a tributação das empresas.
Indústria de fundos
Aleixo diz que o Brasil é hoje um dos países que lideram o que é conhecido como a indústria dos fundos, uma expressão que destaca a explosão desse modelo do mercado financeiro. Ele aponta que, de acordo com as informações do Ministério da Economia, só no ano de 2019 havia cerca de R$ 160 bilhões aplicados em Letras de Crédito do Agronegócio (LCA), R$ 40 bilhões em Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRA) e R$ 9 bilhões em Certificado de Direitos Creditórios do Agronegócio (CDCA).
A criação de fundos para o controle de terras “dá liquidez a um mercado que tem por característica não ter essa volatilidade. As cotas de um fundo podem ser negociadas de um dia para o outro, diferentemente do processo de compra e venda de uma propriedade rural”, afirma Aleixo. O processo de financeirização da economia do agronegócio já foi mostrado por O Joio e o Trigo na reportagem “Agronegócio e mercado financeiro avançam, de mãos dadas”.
Na avaliação de Aleixo, a terra é o principal negócio envolvido na criação do FIAgro. Ele lembra que as terras agrícolas tiveram uma valorização de mais de 2.000% acima da inflação desde 2000. “É um negócio mais lucrativo do que o ouro ou qualquer outro investimento”, afirma.
O fundo permite também que seja investido em diferentes pontos da cadeia produtiva, como as indústrias de insumos, estocagem e distribuição, em etapas de industrialização dos produtos agropecuários e na securitização das operações.
Além de ser o maior atrativo do FIAgro, a possibilidade de fundos ligados ao controle da terra é também a principal fonte de preocupação, analisa o economista Guilherme Delgado. “É dada a esses investidores a possibilidade de especular em cima da valorização das terras no Brasil, sem qualquer relação com produção ou produtividade”, explica. Ou seja, na visão dele, não há qualquer geração de riqueza dentro do país com a negociação dos títulos.
Por isso, avalia Delgado, a criação do fundo não resolve o problema de crédito no agronegócio, diferentemente do que defende a nota técnica divulgada pelo Ministério da Economia. E vai além, causa um passivo cambial futuro, porque o valor que será retirado do país é superior ao que foi colocado. “O Brasil vai ficar mais vulnerável a uma crise hipotecária, como a que aconteceu no mercado imobiliário dos Estados Unidos em 2008”, explica.
Povos tradicionais ameaçados
A maior ameaça, no entanto, é para as comunidades indígenas, quilombolas, povos tradicionais e meio ambiente. Assim como todo processo de financeirização, a entrada de estrangeiros nesses fundos faz com que aumente a procura por terras mais rentáveis, com maior valorização. Isso aumenta a pressão sobre a criação e expansão de fronteiras agrícolas.
Um dos alvos são as terras devolutas, pertencentes à União e sem destinação decidida. São terras que poderiam ser usadas em projetos de assentamento, por exemplo. Ou que, dependendo de estudos técnicos, podem ser mais facilmente reconhecidas como ocupadas por povos originários ou tradicionais, além da possibilidade de se tornarem parques ou reservas.
Com o atual sistema de regularização, a ameaça não está restrita apenas a terras ainda sem destinação. Muitos proprietários têm conseguido títulos de terras inclusive dentro de parques, reservas e terras indígenas. Outra maneira de tomarem as terras nessas regiões menos consolidadas é o uso da violência para a expulsão de pequenos posseiros.
Com valores ainda baixos em comparação a áreas mais consolidadas, essas terras são potencialmente muito atraentes para os fundos, que buscam faturar justamente com a valorização de seu portfólio de propriedades. “Grandes proprietários podem oferecer como garantia não as fazendas onde está a produção agropecuária, mas outras terras que estão sob seu registro”, diz Delgado.
A possibilidade gera um outro problema. A facilitação dos cadastros autodeclaratórios propicia que terras griladas, pertencentes à União, sejam elas devolutas, áreas de proteção ambiental ou destinadas para povos indígenas ou tradicionais, sejam incorporadas ao controle dos fundos. “O Certificado de Cadastro de Imóvel Rural (CCIR), do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) é aceito como documento de propriedade da terra para a operação dos fundos. É um sistema ainda mais frágil do que o Cadastro Ambiental Rural (CAR)”, explica o economista.
A situação aumenta o risco de que as comunidades tenham de enfrentar fundos com participação de grandes investidores estrangeiros para garantir o seu direito à terra. “O FIAgro é uma burla à função social e ambiental da terra”, completa Delgado.
Fonte: O Joio e o Trigo.