Por Edson Teles

Resenha do livro de Fábio Luís Franco, Governar os mortos: necropolíticas, desaparecimento e subjetividade (Ubu Editora, 2021).

Movimentos de familiares de vítimas da violência do Estado têm denunciado por décadas a prática do desaparecimento forçado dos corpos de suas pessoas queridas. O Brasil é um país que produz dezenas de milhares de mortes violentas por ano, assim como uma quantidade significante de desaparecidos. Os dados não são seguros e pouco sabemos em termos estatísticos. Isso se deve ao fato de que a apuração sobre a destruição de corpos considerados descartáveis na sociedade brasileira tem sido negligenciada, tomando parte estratégica na verdadeira política de morte promovida historicamente pelas instituições do Estado.

Em um país herdeiro de milhões de corpos negros sequestrados da África e premiado com violência, tortura e homicídio pela política colonial, o sujeito racial é vulnerabilizado pela fabricação constante dos territórios de exceção e pelas práticas desiguais no trato de sua condição humana. Soma-se à continuidade histórica do racismo estrutural, o investimento laborioso da ditadura (1964-1985) na institucionalização da tortura e na estatização da ideologia de “democracia racial”.

Um resultado fundamental da institucionalidade colonial, consolidado no formato da militarização do cotidiano, das instituições e da política, foi o “processo de montagem, aprimoramento e sistematização de tecnologias de desaparecimento” (Franco, p.25).

Isso nos chama a atenção para o fato de que a pesquisa em filosofia, no Brasil, ainda está em estágio inicial de uma efetiva colaboração na produção de pensamento crítico sobre as nossas próprias experiências originárias. O livro Governar os mortos: necropolíticas, desaparecimento e subjetividade, de Fábio Luís Franco, representa um esforço no sentido de ultrapassar esse passivo. O cuidadoso trabalho é resultado de sua tese de doutoramento, agora preparada para acesso a um público mais amplo.

Utilizando-se especialmente do recurso às ferramentas conceituais da biopolítica de Michel Foucault e da necropolítica de Achille Mbembe, entre outros recursos, o autor resgata a história da Vala Clandestina de Perus, edificada pela ditadura nos anos 1975/76. Naquele pedaço de terra foram lançados vários corpos inumados de covas individuais, boa parte inicialmente enterrados como indigentes e desconhecidos. Sem documentação, registro oficial ou critério de sepultamento, a Vala é pensada como paradigma da ocultação de cadáveres pela República brasileira. Assim como a ditadura militar, a forma de governo do Estado brasileiro sempre teve, de modo explícito ou implícito, a figura do soberano fardado.

Com a institucionalização desse território de solução final para as práticas instituídas por meio dos “dispositivos de desaparecimento”, calcula-se que, juntamente com pessoas pobres, negras e periféricas, igualmente vítimas das mesmas violências, lá foram escondidas algumas dezenas de corpos de militantes políticos da oposição ao regime militar. A singularidade da Vala expõe práticas, discursos, tecnologias, regulamentações e dispositivos da necrogovernamentalidade encarregados da gestão dos mortos e da morte. O que, como nos explica Franco, é indissociável do governo dos vivos.

O primeiro capítulo apresenta um quadro dramático da produção do desaparecimento no país, historicizando os modos como os dispositivos de gestão de determinadas mortes não identificam corpos e alimentam a máquina burocrática de invisibilização dos mesmos. Apresentando o importante trabalho de Letícia Ferreira, Dos autos da cova rasa, sobre os trabalhos do IML do Rio de Janeiro entre os anos 1942 e 1960, o autor mostra como uma série de rotinas desindividualizam o morto e apagam os rastros de responsabilidades pela morte. Os cadáveres são “abandonados da política, da linguagem e do direito” (Franco, p.36).

No capítulo dois, a partir do testemunho do torturador assumido da ditadura, coronel Paulo Malhães, perante a Comissão Nacional da Verdade (CNV, 2012-2014), se desnuda o “poder desaparecedor” do período, relacionando essa prática com a “forma de governo contrainsurgente” (Franco, p.51). Seguindo ao processo de extrema militarização dos territórios e de transformação da cidade em um campo de batalha, o desaparecimento passa a fazer parte de uma guerra, cuja racionalidade é agir preventivamente contra os corpos potencialmente revoltosos.

No terceiro capítulo, vemos como a ditadura atualizou para o nosso contexto as técnicas desenvolvidas nas guerras coloniais. Mediante artimanhas jurídico-institucionais, o regime se esforçou em invisibilizar a estrutura repressiva. Não à toa, se fôssemos medir as ditaduras sul-americanas através de suas heranças, poderíamos dizer que a brasileira está entre as piores, tamanho o sucesso com que os aparatos repressivos permaneceram na democracia das últimas três décadas. Se desenvolveram tecnologias para desaparecer com os corpos, mas também para invisibilizar os dispositivos necrogovernamentais.

No quarto capítulo, Franco demonstra como a produção da morte e sua invisibilização se relacionam com a gestão política do luto. É como se a razão de governo funcionasse a partir de um pacto com a morte, retirando dos aspectos fantasmáticos desta a potência de uma ação eficaz de fabricação de subjetividades sob o controle dos dispositivos citados. Transitando entre a filosofia, a psicanálise e os contextos de violência de Estado, o autor desfia para o leitor as intrincadas produções de políticas de controle via desejos, perdas e precariedades.

O livro apresenta uma dupla abertura para o leitor. Por um lado, ao utilizar os conceitos de dispositivo, governamentalidade, necropolítica, luto e melancolia, e autores como Foucault, Mbembe e Freud, entre outros, Franco nos convida a fazer da filosofia um poderoso instrumento de análise. Por outro lado, somos instados a prosseguir nesse importante tema acrescentando ao livro de Fábio Franco as análises dos movimentos de familiares de vítimas do desaparecimento, sejam os da ditadura ou os da democracia. Seria transformador promover o encontro dos conhecimentos filosóficos mobilizados com os saberes das lutas de direitos humanos.

Por fim, o livro atualiza as questões apresentadas com um ensaio sobre as estratégias necrogovernamentais exercidas durante o governo do presidente Jair Bolsonaro diante dos impactos da pandemia de Covid-19. Políticas das sensibilidades são ativadas e se articulam à gestão da morte para naturalizar a destruição da vida enquanto forma de controle.

A edição ainda nos brinda com dois textos, prefácio e posfácio, de Silvio Almeida e Vladimir Safatle, potencializando as análises de Franco e inserindo os debates suscitados nas problemáticas das questões raciais e da filosofia política contemporânea.

 

Edson Teles é professor de Filosofia na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordenador do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF/Unifesp).

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil.

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