Por André Barrocal

 

A importância de combater a desinformação, adubo de ideias de extrema-direita pelo mundo. As plataformas lucram com as mentiras e os discursos de ódio nas redes, adubos do extremismo.

 

As mentiras com fins políticos correm soltas na internet, por isso enfrentá-las exige peitar as chamadas plataformas, que dominam as comunicações online, entre elas Facebook (dono de Instagram e ­WhatsApp), Twitter e Google. A culpa no cartório das Big Techs é a premissa de uma conferência global que a Unesco, agência da ONU para educação e cultura, realizará em 22 e 23 de fevereiro na França.

 

Será um debate sobre como usar a lei contra (palavras da Unesco) “um punhado de gigantes digitais” que dão voz à “desinformação generalizada, discurso de ódio e teorias da conspiração”.

 

No Brasil, desenha-se uma ofensiva do governo contra a desinformação e as Big Techs. Na mesa de Lula repousa, entre outras medidas, uma lei levada pelo ministro da Justiça, Flávio Dino, que obriga as plataformas a barrarem a publicação de pregações favoráveis a dois crimes: golpe de Estado e terrorismo. Ex-juiz, Dino resolveu apressar a proposta por causa da intentona bolsonarista de 8 de janeiro.

 

Na Advocacia-Geral da União, defensora do governo nos tribunais, nasceu via decreto presidencial um órgão que terá como uma de suas missões tentar proteger políticas públicas dos efeitos da desinformação, a Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia.

 

A vacinação da população na pandemia é um caso pedagógico de ação pública afetada por mentiras. Jair Bolsonaro associou a injeção a jacarés e ao HIV. O chefe da Procuradoria, Marcelo Eugênio Feitosa Almeida, doutor em Direito, diz que, para tomar decisões sobre como se relacionar com o Poder Público, o cidadão precisa estar bem informado. Curiosamente, o primeiro caso levado a ele tinha Lula como “acusado”.

 

Segundo o ­deputado paulista Kim Kataguiri, do União Brasil, um dos líderes do MBL, grupo direitista que ganhou fama e adeptos graças à comunicação online, o petista “desinformou” ao classificar o ­impeachment de ­Dilma ­Rousseff como “golpe”, durante viagem ao Uruguai. Almeida pediu subsídios à Secretaria de Comunicação Social da Presidência antes de decidir sobre o caso.

 

A Secretaria é de onde partirá a maior investida contra as Big Techs. Ao ­assumi-la, em 3 de janeiro, Paulo ­Pimenta, ­deputado pelo PT gaúcho, comentou: “Faremos um trabalho permanente de combate às fake news e à desinformação”. E reconheceu que a tarefa não é “fácil” nem “simples”, inclusive por causa da natureza humana. O ministro gosta de uma história dos anos 1950 sobre uma seita em Chicago, nos Estados Unidos, conhecida como seekers, segundo a qual a humanidade acabaria graças a um dilúvio. Para escapar da tragédia, seria preciso estar num determinado local e hora e entrar em um disco voador. Os adeptos da seita largaram empregos, famílias, tudo. Quando não houve o apocalipse, a líder do grupo, a dona de casa Doroth Martin, saiu-se com a seguinte explicação: a fé da seita havia salvado o mundo. Esses fatos foram relatados em um livro de 1956, intitulado Quando a Profecia Falha, escrito por três psicólogos de Nova York. Para os autores, o fracasso da “previsão” aumentou a crença dos fiéis, não o contrário. Dissonância cognitiva.

 

A pasta de Pimenta conta com uma recém-criada Secretaria de Políticas Digitais. À frente está um ativista contra a desinformação, João Brant, mestre em regulação e políticas de comunicação. Brant planeja lançar até março uma consulta pública sobre sobre regulação das plataformas, sugestão feita pela equipe do governo de transição. Desconfia que a sociedade não está convencida da necessidade de uma normatização, daí a consulta servir para expor o tema e mostrar a sua urgência.

 

Um farol para o Brasil sobre o que fazer são duas leis de outubro passado da União Europeia. Uma, a dos Mercados Digitais (DMA, na sigla em inglês), busca conter o poder econômico das Big Techs. Estas não poderão privilegiar marcas ou produtos, por exemplo, do contrário, levarão multa de 10% da receita. A legislação entra em vigor em abril. A outra é a dos Serviços Digitais (DSA), que passa a valer a partir de 2024. Trata do conteúdo propriamente dito nas redes, o real vespeiro.

 

O objetivo da DSA é barrar, ou ao menos reduzir, a circulação de mensagens ilegais e nocivas, ao fixar certas regras sobre moderação de conteúdos (aquilo que as plataformas podem decidir por conta própria publicar ou não) e sobre os famigerados algoritmos das empresas. A moderação existe, e a baliza sobre o que pode ou não consta de uma espécie de cartilha de cada plataforma. A lei europeia quer tornar a cartilha transparente e suscetível às demandas da sociedade e do Poder Público, por meio de dispositivos de due dilligence (dever de cuidado, em tradução livre) e de um código de conduta. A lei de Dino contra a pregação golpista e terrorista inspira-se nesses dispositivos. No caso dos algoritmos, a legislação europeia contém normas para iluminá-los um pouco. Esses algoritmos servem para as plataformas manterem os usuários o maior tempo possível na frente do celular ou do computador, ao oferecer aquilo que eles supostamente querem. São elaborados partir da coleta de dados (sites visitados, informações lidas etc.).

 

Copiar o modelo europeu não imporia às Big Techs nada que elas já não fizessem. Isso poderia facilitar a aprovação de uma lei no Congresso, onde certamente haverá lobby das empresas pesos pesados. No governo, há, porém, gente graúda que prefere a a linha “Joe Biden”, ainda mais dura com as plataformas.

 

Em 8 de setembro, a Casa Branca realizou uma “sessão de escuta” com estudiosos e profissionais do ramo da Tecnologia da Informação e em seguida divulgou um comunicado. O texto diz, entre outras coisas, que “a falta de transparência significa que os algoritmos não podem ser examinados por ninguém fora das próprias plataformas, criando uma barreira para uma responsabilidade significativa”. Responsabilizar as empresas pelo que corre nas veias delas é um desejo de Biden. As Big Techs, salienta o comunicado, “têm proteções legais que as isenta amplamente de responsabilidade, mesmo quando hospedam ou divulgam condutas ou materiais ilegais e violentos”. A proteção é garantida pelo artigo 230 da Lei de Decência nas Comunicações, de 1996. Biden quer reformá-lo.

 

Para uma autoridade brasileira, as plataformas estão numa situação confortável demais aqui também. Mentiras, ódio e teorias da conspiração correm pelas redes sociais, influenciam os rumos do ­País, e as empresas fingem que nada têm a ver com o assunto. É decorrente de um totem do Marco Civil da Internet. Pelo artigo 19 dessa lei, a 12.965, de 2014, uma plataforma só poderá ser responsabilizada por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial, não tomar providências para tirar conteúdo do ar.

 

Recentemente, o juiz Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, mandou as redes sociais bloquearem os perfis do deputado federal mais votado do Brasil, o mineiro bolsonarista ­Nikolas Ferreira, do PL, propagador de mentiras sobre fraude nas urnas. O Telegram descumpriu a ordem e tomou multa de 1,2 milhão de reais.

 

Há mudanças na legislação brasileira em debate há mais de dois anos no Congresso que tentam atacar problemas posteriores ao Marco Civil. No estágio ­atual, não chegam ao ponto de abrir caminho para punir as Big Techs. É o Projeto de Lei 2.630, nascido e aprovado no Senado em 2020 para combater fake news e que, de lá para cá, tornou-se mais amplo. O texto está na Câmara dos Deputados, aos cuidados de Orlando Silva, do PCdoB ­paulista. Seu foco são as redes sociais, serviços de pesquisas na web (como o ­Google) e aplicativos de mensagens (WhatsApp, ­Telegram). A consulta pública sobre regulação das plataformas que o governo deve lançar até março vai colher elementos que podem ser usados em negociações com Silva. Ou para dar origem a um projeto novo. Vai depender de cálculos políticos sobre quem perde, quem ganha e o que é mais viável no Parlamento.

 

No governo, há quem avalie ter faltado esse tipo de cálculo ao ministro da Justiça na proposta para coibir golpismo e terrorismo na web. Dino sugeriu a Lula baixar uma Medida Provisória, ou seja, uma norma com força imediata de lei. Significa passar por cima, em parte, de Silva e dos representantes da sociedade civil que há dois anos discutem o projeto 2630. Não à toa, o deputado manifestou nos últimos dias contrariedade com o ministro. Idem um grupo que fez parte dos debates com o parlamentar, a coalizão Direitos na Rede.

 

O mal-estar explica em boa medida a decisão do Ministério da Justiça de não vir a público justificar a proposta. Sabe-se que a principal idealizadora do texto é uma advogada nomeada por Dino como assessora especial para “Direitos Digitais”, Estela Aranha. Formada em Direito na USP, Aranha presidiu, na OAB, a Comissão Especial de Proteção de Dados. Sabe-se também qual a filosofia geral da lei, conforme dito pelo ministro a ­CartaCapital em 17 de janeiro: “Se você constata que um conteúdo está lá dizendo ‘fabriquem uma bomba e joguem no aeroporto’, você vai lá e dá ao provedor (à plataforma) um tempo para tirar esse conteúdo do ar”. “O que não pode nas ruas”, prosseguiu, “não pode nas redes.”

 

O vale-tudo nas redes é o paraíso para as Big Techs. Dá dinheiro, e muito.

 

Fonte: Carta Capital, edição Nº 1245 8/02/2023.

Título original “Chega de faroeste“.

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