Por Fabiana Moraes

É sério que vocês vão continuar a classificar pessoas e organizações que estão há anos brigando por mais igualdade social como “lacradores” e “caça-like”?

 

  • “Trump proíbe mulheres trans em prisões femininas; risco de crime sexual contra transgêneros na cadeia é dez vezes maior
  • “Quando estava no 9°ano, um menino da minha turma falou: ‘vou pedir para meu pai votar no Bolsonaro porque ele vai matar todos os viados’” (estudante universitário pernambucano, fevereiro de 2025)
  • “Estamos a deixar de fazer coisas que conseguíamos fazer sem preocupações, como apertar as mãos na rua” (Bonyad Bastanfar, ativista alemão LGBTQ+)
  • “Mandem todos os imigrantes ilegais pro Vaticano. Uma vez que a igreja católica é muito rica e boazinha, o Papa vai pagar um bom salário para cada forasteiro desqualificado que quiser ir morar em Roma” (conta no X).
  • “Esta semana, também irei encerrar a política governamental de tentar fazer engenharia social de raça e gênero em todos os aspectos da vida pública e privada. Nós forjaremos uma sociedade que não vê cor, baseada no mérito. A partir de hoje, será a política oficial do governo dos Estados Unidos que existam apenas dois gêneros, masculino e feminino.” (Donald Trump, 20 de janeiro de 2025)

Escrevo esse texto momentos após o fim das eleições do parlamento alemão. A “direita moderada” alcançou 208 cadeiras. A AfD, extrema-direita, ficou em segundo lugar, com 152 assentos.

Mas, nesse tempo no qual alguns dos homens mais poderosos do mundo realizam saudações nazistas sem qualquer pudor e bombados pelas big techs; em um país no qual florescem grupos separatistas que bradam contra nordestinos e pretos, são os chamados “identitários” aqueles que mais parecem incomodar um naco considerável da intelectualidade nacional.

Nas últimas semanas, pipocou na imprensa uma série de artigos que reúnem no mesmo balaio organizações e ativistas de longa data, pessoas que utilizam as redes para exibir superioridade moral, gente jovem que está começando a se entender dentro da desigualdade brasileira, haters profissionais que atravessam toda internet, etc.

Assim, são “identitários de esquerda” todos os que não concordaram com a fala da psicanalista Maria Rita Kehl após ela mandar um “lugar de cale-se” quando foi questionada sobre esquerda e identidades pelo jornalista Leandro Demori. São “identitários de esquerda” todos aqueles que repercutiram, especialmente se procuraram a janela da conversa, um artigo escrito pela jornalista Etiene Martins sobre o diretor Walter Salles Jr.

Todo mundo que estava aí — e, atenção, quem também não estava — foi classificado como um bando de gente barulhenta, cricrizenta, lacradora. Uma tuia de caça-like. Assim vocês acabam com o efeito do Captopril nas veias dos nossos verdadeiros guerreiros democratas, bichas.

É muito impressionante como um tema tão importante e tão atravessado pela desigualdade é tratado de maneira superficial e homogênea, jogando fora não só o bebê com a água, mas a própria banheira.

Não tenho a menor dúvida que nesses debates há muita violência e muito equívoco, muito essencialismo e muita pressa, mas isso nunca foi, nem nunca será, uma característica desse ou daquele grupo. Dentro de um contexto tecnológico-social no qual somos cada vez mais instados a ser um empreendedor de si, o grito e a velocidade se tornaram peças-chave. Não há nenhum grupo identitário que não seja atravessado por essa realidade, e estão aí desde pessoas LGBT a pastores neopentecostais; desde agricultoras-influencers ao batalhão de pretendentes a ser um Nikolas Ferreira da vida. A confusão que deriva daí é o próprio sangue que turbina redes como o X, pertencente a um dos senhores fazendo a saudação nazista lá em cima.

O sociólogo Luiz Augusto Campos, aliás, resumiu muito bem essa questão ao comentar a rinha sobre Kehl: “Se eventualmente a crítica virtual aos seus argumentos descambou para ameaças, isso deve ser veementemente condenado. Porém, isso não deve ser imputado aos movimentos sociais, mas sim à falta de regulação das redes sociais, que permitem a expressão anônima e irresponsável de qualquer pessoa em posse de um celular e uma conexão com a internet”.

É muito desonesto que milhares de pessoas que ralam todos os dias dentro de movimentos pró-igualdade sejam reduzidas a um “identitário lacrador”. Gente que trabalha no acolhimento de pessoas gays, transexuais e travestis (como a Casa Neon Cunha, a Netrape, o GPT + , etc) ou na busca por melhor alimentação, informação e segurança para a população preta (como a Coalizão Negra por DireitosGeledés, todas as entidades de apoio a terreiros de umbanda e candomblé). Ou ainda movimentos indígenas, de trabalhadoras do campo e movimentos feministas que não estão pedindo like, mas terra, teto e direito ao próprio corpo e à própria vida.

Apagar pessoas que estão buscando segurança e gozo para uma série de populações vulneráveis exatamente no mesmo momento em que os donos do mundo evocam Hitler é, de novo, amolar a faca que vai cortar a carne mais frágil. Eu já escrevi sobre o precioso texto do psicólogo Luiz Antônio Baptista, mas, dada sua precisão, volto a trazê-lo:

“O fio da faca que esquarteja, ou o tiro certeiro no olhos, possui aliados, agentes sem rostos que preparam o solo para esses sinistros atos. Sem cara e sem personalidade, podem ser encontrados em discursos, textos, falas, modos de viver, modos de pensar que circulam entre famílias, jornalistas, prefeitos, artistas, padres, psicanalistas”.

Além de não se voltarem para uma crítica ao modelo de negócio das big techs, também não vejo os críticos e as críticas do “identitarismo de esquerda” voltarem suas análises para um mercado que capturou, fagocitou — e recentemente começou a expelir — questões caras à vida e à morte de milhões de pessoas. Um mercado (bancos, redes de lojas, bets, etc) que se esbalda na compreensível ânsia por reconhecimento social que muita gente nunca teve na vida; que estampa suas campanhas publicitárias com rostos de jovens negros e negras de cabelo crespo apenas para lucrar o máximo possível com essa mesma população.

Essa compreensão neoliberal de uma política que se faz somente pelo EU não é nova, e tem uma absoluta relação com as sucessivas crises que assolam nosso mundo quase colapsado. Já na década de 1990, o sociólogo francês Alain Touraine definiu bem: “numa sociedade pós-industrial em que os serviços culturais substituíram os bens materiais no cerne da produção, é a defesa da personalidade e cultura do sujeito contra a lógica dos aparatos e mercados que substitui a ideia de luta de classes”.

É a classe do eu sozinho.

Sim, já vi entre grupos progressistas formulações completamente equivocadas e mesmo classistas, tais como pressupor que “uma pessoa verdadeiramente afrocentrada não pode ser cristã”. Eu só queria ver uma pessoa com esse argumento subindo a pé a ladeira que leva até a estátua do Padre Cícero, no Cariri cearense. Observando as casas, ouvindo as pessoas, compreendendo uma história que mistura poder, emoção, desobediência e fé. Saber como muita gente sobreviveu quando tinha apenas uma estátua religiosa perto de si para se proteger e seguir adiante. Em vez de classificá-las, seria bom ouvi-las.

Jamais vou concordar que uma pessoa seja avaliada ou julgada em função de quem foram seus avôs, tataravôs e afins. Fazê-lo seria negar a história, uma vez que a última seria, nesse caso, entendida como fixa. E sabemos que — inclusive graças a movimentos populares — ela não é. Entendo que adotar essa perspectiva essencialista implica também negar a humanidade do outro, uma vez que é dele retirado o direito de pensar, sentir e construir tanto por si quanto pelo mundo e o tempo que o cercam.

Apagar os que buscam segurança e gozo para populações vulneráveis quando os donos do mundo evocam Hitler é amolar a faca que vai cortar a carne mais frágil

Aliás, foi negando a humanidade da maioria dos povos que o bloco do rolo compressor antes formado por grandes navios e hoje formado por grandes tratores e algoritmos, passou por cima de astecas e maias, guaranis e pankararus. Arrasou com congoleses e com assentamentos do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Dizimou — e dizima — vastidões de florestas com mineração e soja. Não acredito que seja repetindo aquilo que mais critico no algoz que uma mudança vá ser produzida.

Mais do que discutir quem são os antepassados de Maria Rita Kehl, me interessa saber por que ela usou um homem negro abusador de criança como um exemplo em sua resposta. Mais do que discutir quem são os antecessores de Walter Salles Jr., gostaria mesmo de falar com ele sobre redistribuição de renda.

Mas o texto de Etiene tem algo precioso que não vi sendo repercutido: a constatação de que, sim, por muito tempo a crítica à ditadura militar mobilizou nosso campo acadêmico e cultural, enquanto a reverberação de quase 400 anos de escravidão ou eram adocicadas em produções várias ou lidas quase exclusivamente à Gilberto Freyre. Foram movimentos liderados por pessoas negras (aquelas que até há pouco eram minorias nas universidades) que iniciaram os necessários questionamentos sobre esse estado das coisas.

Esse tensionamento se deu em vários níveis, e nos forçou a olharmos para o que parecia natural com outra perspectiva. Um exemplo: não foi uma pessoa branca que um dia acordou com a pressão em dia e disse: “gente, vamos parar com essa glorificação de uma princesa colonial e passar a celebrar pessoas negras no dia 20 de novembro, em homenagem à Zumbi?”. Foi, sim, um movimento iniciado em 1971, em plena ditadura militar, por estudantes pretos de Porto Alegre. Hoje, seriam provavelmente entendidos como um bando de caça-likes e lacradores pelos democratas do Captopril.

Lembrem-se, ao amolar as suas facas, quem apanhou e morreu nas ruas nas eleições presidenciais de 2018. Bichas, travestis, mulheres, ativistas. Se já esqueceram, tá aqui. Em 2022, teve reprise, com 40% dos ataques sendo realizados pela extrema-direita.

Em tempo:

  • Sempre fico com a beleza do chamado à sensibilidade (prática, teórica, metodológica) que Carla Akotirene realiza no seu necessário livro “Interseccionalidade” (Pólen, 2019).
  • O historiador e youtuber Jones Manoel fez um ótimo vídeo no qual tanto associa o componente neoliberal a grupos identitários quanto chama atenção para conquistas importantes lideradas por identidades específicas, como o caso das e dos indígenas que conseguiram barrar o ensino EAD proposto pelo governador do Pará, Helder Barbalho.
  • Recomendo o artigo Impactos da ditadura militar 64 no movimento negro, de João Marcos Camargo Nalli, para entender que grupos organizados por pessoas pretas também estavam ali.
  • O psicanalista Douglas Barros é nome fundamental para a discussão do tema.

 

Fabiana Moraes é jornalista com doutorado em sociologia e professora do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pesquisa poder, representação, hierarquização social e a relação jornalismo e subjetividade. Três vezes finalista do prêmio Jabuti, é vencedora de três prêmios Esso e um Petrobras de Jornalismo. É autora de seis livros, entre eles O Nascimento de Joicy e A pauta é uma arma de combate (Arquipélago Editorial). Foi repórter especial do Jornal do Commercio. É também colunista no The Intercept Brasil. Antes, UOL e piauí. Quando tem tempo, paga de DJ nos inferninhos de Recife.

 

Fonte: Revista Gama | Foto: reprodução.

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