Por Thales Vieira
Entre os brancos ditos progressistas a ordem do dia é falar sobre um tal fantasma do identitarismo
Uma grande amiga contou-me recentemente que na parte final da escrita de sua tese de doutoramento ficou tão imersa naquelas páginas derradeiras que esqueceu do mundo. Não lia as notícias, não acompanhava os memes e nem mesmo sabia dos resultados do mengão, paixão que a gente compartilha. Assim que acabou aquele processo, ao entrar em um táxi com amigos se sentiu um ET ao perceber que eles cantavam animados uma música que ela jamais ouvira antes, era Drake e sua chiclete “Hotline Bling”, sucesso absoluto naquele 2016.
Ao contar essa historinha não pretendo falar mal do “rapper” Drake, humilhado o suficiente no último Super Bowl pelo genial Kendrick Lamar, mas falar sobre essas grandes ondas de assuntos que só mesmo estando imerso em uma profunda desconexão com o mundo externo, tal qual minha amiga Carol em sua tese, para ficar de fora desses assuntos do momento.
Entre os brancos ditos progressistas a ordem do dia é falar sobre um tal fantasma do identitarismo. Eles arvoram que essa verve interdita o debate público de forma autoritária de modo que apenas interesses particulares a determinados grupos se façam valer, como se movimentos chamados por eles assim não construíssem pontes e não pensassem em um bem comum, mas só na projeção de sua própria identidade e a afirmação incessante dela.
Embora tenha tentado trazer alguma definição para aquilo que seria o identitarismo, é importante dizer que é um termo bastante difuso que na boca dos brancos assume um tom acusatório. O mais curioso disso tudo é que quem está colocando na ordem do dia esse assunto reclama de uma certa interdição do debate pelos identitaristas, ao passo que escrevem colunas, dão entrevistas, produzem matérias, ocupam espaços importantes em universidades e seguem com suas vozes mais ativas do que nunca.
Há uma nostalgia de antigas hierarquias que os posicionavam como os grandes e únicos porta-vozes de todos os outros. E, por outros, entendam tudo o que não é branco
O que me leva a crer que há uma nostalgia de antigas hierarquias que os posicionavam como os grandes e únicos porta-vozes de todos os outros e por outros, entendam tudo que não é branco. Esse monopólio das interpretações do mundo carrega consigo um grande poder que é o de nomear e dar sentido aos processos históricos e, veja bem, as identidades.
A nostalgia das hierarquias é um sentimento de saudade ou desejo de retorno a uma ordem social anterior, marcada por hierarquias claras e estáveis, especialmente em contextos de mudanças culturais, políticas e sociais. Essa nostalgia surge em resposta à desestabilização de estruturas de poder tradicionais, como o colonialismo, o patriarcado e a supremacia branca, que estão sendo questionadas e transformadas no mundo contemporâneo.
Décadas de luta do movimento negro culminaram em uma política de cotas que reconfigurou o público discente das universidades brasileiras e aos poucos vai também se refletindo nos docentes, as cotas no serviços públicos, as políticas de DEI em grandes empresas, atrizes, atores e jornalistas negras assumindo papéis de destaque no principal canal de televisão do país. Do ponto de vista de conquista de espaços de representação simbólica e política, os últimos 20 anos foram de algum otimismo para a população negra no Brasil. Embora a violência de Estado nunca nos deixe esquecer que existe a pele alva e a pele alvo. É daqui que vem a grita desse profundo pesar da branquitude pela perda de alguns privilégios.
Quando Sueli Carneiro traz que, entre a esquerda e a direita, ela continua preta, não está colocando que para a população negra é indiferente ter progressistas ou conservadores no poder, mas que o grupo que lá estiver irá proteger seus interesses, portanto a manutenção dos privilégios brancos em detrimento da população negra, indígena e periférica. As demandas desses grupos passam longe de ser particularistas, ao contrário, clamam por mudanças estruturais nas desigualdades persistentes e na cara do poder.
Identitaristas e particularistas são os brancos que, na prática, são os únicos a reunir possibilidades materiais e simbólicas de se proteger de forma inviolável e destruir pontes com outras epistemologias que oferecem novos repertórios de soluções para os problemas coletivos.
Thales Vieira é antropólogo (UFF) e cientista social. Doutorando em Ciências Sociais pela PUC-Rio, é fundador e codiretor do Observatório da Branquitude. Atuou no poder público, em organismos internacionais como o BID, ONU-Habitat e em fundações como o Instituto Unibanco e o Instituto Ibirapitanga. É especialista nos estudos críticos de branquitude e em relações raciais.
Fonte: Observatório da Branquitude | Revista Gama.