Entrevista: Alessandra Jungs de Almeida e Ana Carolina de Oliveira Costa | Por Davi Carlos Acácio

Localizada na África Ocidental, a Libéria é um país que se destaca pela sua formação diferente em relação aos outros países africanos: é tida como uma nação que não foi colonizada e como a primeira república do continente. Entretanto as informações geram enormes controvérsias, apontam analistas.
Em entrevista ao Mundioka, podcast da Sputnik BrasilAlessandra Jungs de Almeida, doutora em relações internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e Ana Carolina de Oliveira Costa, doutora em antropologia social pela Universidade de Brasília (UnB), falaram sobre o processo peculiar de formação da Libéria e os desencontros na hora de elencar determinadas classificações ao país que fica no coração da África Ocidental.

Libéria: o país nascido e pensado a partir dos anseios de uma empresa privada

A Libéria nasce enquanto um país idealizado para receber antigos escravizados, principalmente do sul dos Estados Unidos. Seu processo de formação como Estado se constitui, segundo Jungs, a partir da “liderança de uma empresa privada dos Estados Unidos, a American Colonization Society (ACS), uma empresa privada que comprou o território que hoje é a Libéria na intenção de levar negros libertos dos Estados Unidos para esse território“, um processo iniciado em 1822.
A partir desse projeto, portanto, a Libéria se torna “o primeiro movimento de retorno de escravizados para o continente africano”, conta Costa. Embora possa parecer um movimento de diáspora, a iniciativa coloca raça, cultura e pertencimento ao continente africano no mesmo balaio.
Essa ideia pressupõe, conforme Costa, que qualquer africano, de qualquer parte do continente, que tivesse sido escravizado ou fosse filho de pessoas escravizadas nos EUA poderia voltar para qualquer parte da África — e portanto reconheceria aquele novo território como terra natal. Há nisso, segundo a pesquisadora, uma diminuição da complexidade do que era a África.

“O Estado liberiano, ele é criado. Então cria-se no litoral uma capital. Cria-se uma estrutura de Estado. Deportam-se pessoas para aquele lugar com uma ideia de construir um Estado democrático aos moldes norte-americanos, desconsiderando, por exemplo, a diversidade cultural e de povos que já existia ali”, resume.

O processo de formação vai desembocar em relações de poder muito nítidas entre os povos que ali estavam e aqueles que chegam dos EUA, que formarão a elite liberiana. Além do mais, a Libéria, ao se constituir como Estado, fica dependente, ou, como melhor explica Costa, já surge como protetorado britânico, igualmente em dependência financeira dos EUA.
Apesar de não sofrer uma colonização convencional, o país é afligido por uma postura que pode ser considerada como colonizadora, diz Jungs.
“A ACS tinha, no fundo, alguns preceitos um pouco racistas, coloniais realmente, essa empresa privada. Por exemplo, um dos objetivos dessa empresa, além de levar essas pessoas que eram negros libertos da escravidão dos Estados Unidos, era civilizar o território que hoje é a Libéria”, analisa.
Jungs avalia, citando outros autores que estudam a Libéria, que o modelo nacional de construção de um Estado estava pautado em três pressupostos. O primeiro é o financiamento do governo norte-americano para o estabelecimento da Libéria até que o país se tornasse autossustentável.
Entretanto, quase 100 anos após a chegada da ACS ao país, “os Estados Unidos ainda estariam colocando dinheiro, o governo norte-americano ainda estaria colocando dinheiro em militares para a defesa, até 1916 pelo menos, para a defesa da Libéria”, conta a doutora em relações internacionais pela UFSC.
O segundo pressuposto de construção do Estado nacional da Libéria, diz Jungs, é o de que os negros livres dos EUA prefeririam ser levados para o continente africano do que continuar no país norte-americano.

“Essa é uma ideia, além de ser muito essencialista, […] é uma ideia falha, porque ignora também o sentimento de pertencimento desses americanos-liberianos aos próprios Estados Unidos e sua própria luta por liberdade e direitos neste país”, diz a especialista.

Já o terceiro ponto é que o projeto de nação liberiana “foi liderado por brancos da American Colonization Society, então foi um projeto colonial nesse sentido”, atesta.

Primeira república do continente africano?

A Libéria também é considerada a primeira república do continente, embora o fato não traga uma grande vantagem ao país, avaliam as especialistas.
Segundo Costa, a Libéria enfrentou “o mesmo problema que os países pós-coloniais africanos enfrentaram, em termos políticos, de não ter uma independência econômica, de não ter uma liberdade de estruturação política”.
Jungs, por sua vez, comenta que já desde 1838 americanos-liberianos tentavam o que era chamado de Commonwealth of Liberia, com o intuito de obter autonomia jurídica em relação aos Estados Unidos, “para diminuir o poder dessa associação privada, a ACS, retirando a possibilidade, por exemplo, de essa associação vetar as decisões e leis dos americanos-liberianos“.
A ACS, no entanto, rejeitava constantemente os pedidos, conta a analista. “O interesse era manter essa relação de poder com esse território, que era visto não como um Estado soberano, mas como um território de uma empresa privada”, acrescenta.
Só em 1946 a ACS, por pressão internacional, começa a atender, lentamente, às demandas dos americanos-liberianos.

“Foi em 1947 — daí a frase que se diz muito — que surge a República da Libéria, que é a primeira república independente do continente africano, mas em condições extremamente adversas. É extremamente paradoxal, digamos assim, o surgimento da Libéria como território independente, porque a independência se dá para quem? Se dá para essa elite de segundo escalão, vamos dizer assim, que são os americanos-liberianos. Então continua a tensão entre quem estava já no local, as comunidades nativas, as comunidades indígenas, e um governo centralizado colonial”, diz Jungs.

Todo esse processo, de acordo com a pesquisadora, garante à Libéria uma história muito rica para pensar relações de poder e como essas relações têm diversos níveis.
Isso porque, após a debandada do financiamento norte-americano, já na década de 1980, o país começa a passar, de forma mais intensa, por conflitos internos.
A Libéria passou por uma guerra que durou 14 anos, de 1989 até 2003“, recorda Jungs. O período trouxe, em seguida, um novo pioneirismo para o país africano no contexto político: a Libéria viria a ser o primeiro país da África a ter uma mulher como presidente.
Ellen Johnson-Sirleaf liderou o país no pós-guerra e articulou a construção da paz na Libéria. “Ela é vista como uma pessoa que foi capaz de criar comunicação e diálogo entre as partes pós-conflito, de trazê-los para a mesa de conversa, de negociação, distribuir a anistia, trazê-los para o governo”, afirma Jungs.
Após um governo de transição entre 2003 e 2005, no ano de 2006 Johnson-Sirleaf se tornou a primeira presidente da Libéria. Jungs avalia a eleição da presidente como um momento “muito importante para a história do continente africano“. Em 2011, pelo trabalho feito no país, Johnson-Sirleaf ganhou o Prêmio Nobel da Paz.
Após esse mandato histórico, em 2017 a Libéria elegeu George Weah, ex-jogador de futebol com destaque no Milan, da Itália, e vencedor do prêmio de melhor jogador do mundo em 1995. Era a primeira vez que não só o continente africano, mas todo o planeta, via um ex-jogador de futebol assumir a presidência de um país. Mais um feito no eixo político inaugurado pela Libéria.
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