Nella Larsen: com 90 anos de atraso, chega ao Brasil romance que já discutia o sonho da democracia racial. Em ‘Identidade’, livro de 1929, escritora americana se perguntava qual o preço que os negros em seu país pagavam por negarem o que eram.

Por Eliana Alves Cruz

Qual o preço que se paga pela negação do que somos? Esta parece ser a pergunta a saltar de cada página do romance “Identidade”, da americana Nella Larsen (1891-1964), que chega ao Brasil pela editora Harper Collins com nada menos do que 90 anos de atraso.

As duas personagens centrais — Irene Redfield e Clare Kendry — negras de pele clara, contraditoriamente, trazem discussões tão antigas quanto atualíssimas: o colorismo, as sequelas da segregação, as questões de gênero, o sonho da democracia racial, entre tantas outras questões que em pleno século XXI estão aí, incomodamente sentadas nos sofás das nossas salas ou à nossa frente na mesa do bar. Um restaurante semelhante ao que as duas amigas dos tempos de adolescência se encontram após anos distantes. Suas semelhanças físicas, ao invés de aproximá-las, colocam as duas em campos opostos de um ringue pesado nos Estados Unidos do final dos anos 20 do século passado.

A nação que pendurava corpos negros nas árvores, como os “Strange Fruits” cantados na voz rascante e sensual de Billie Holiday; que acendia tochas, incendiava cruzes e escondia rostos brancos em brancos capuzes de carrascos. Este é o tempo em que viveram as personagens Irene, Clare e também a autora, Nella Larsen, uma representante potente do movimento “Renascença do Harlem”, que não por acaso foi apagada durante anos sem conta.

A “Renascença do Harlem” revelou ao mundo grandes artistas e pensadores — os músicos Louis Armstrong, Duke Ellington, Ella Fitzgerald; os intelectuais Marcus Garvey e Du Bois; os autores James Baldwin, Zora Neale Hurston, entre muitos outros. Eles surgiram neste caldeirão que fervilhava no subúrbio criado no século XIX para a classe média alta branca, e tomado pela população negra no início do século XX. Nella, nascida em Chicago, mas desde os 19 anos em Nova York, foi a primeira romancista deste movimento cujos expoentes eram filhos ou netos de pessoas escravizadas não muito antes, mas que tiveram mobilidade social por uma série de fatores históricos que não teremos tempo de aprofundar nesta resenha.

Brasil idealizado

A ponte que une no livro Irene Redfield — mulher jovem consciente de suas origens, mãe de dois filhos, casada com o prestigiado médico negro Brian e com ele proprietária de uma casa confortável no Harlem — e Clare Kendry — que optou por ocultar sua raiz negra se passando por branca e casando com um homem branco e orgulhosamente racista — é pavimentada por dramas profundos que passam longe dos estereótipos e do lugar comum.

Quando mergulha na complexidade de suas personagens e no mundo que as rodeia, Nella toca não apenas nas fraturas que fragmentavam a comunidade negra e a sociedade do norte da América de maneira genérica, mas que ainda fissuram estes mesmos grupos e também toda a diáspora negra. A autora fala para os dela e para os distantes de sua realidade temporal e social, como nós, os brasileiros e brasileiras da terceira década do século XXI.

O Brasil, aliás, é o sonho de vida de Brian Redfield, o marido de Irene, pois, em seu imaginário, é um lugar onde o racismo não existe. Se Nella Larsen incluiu, em 1929, este anseio em sua história, isto é mais uma prova inequívoca de que a construção da ideia de grande democracia racial.

racial.

Capa de "Identidade", livro de Nella Larsen Foto: Reprodução

Capa de “Identidade”, livro de Nella Larsen. Foto: Reprodução

Infelizmente, caso pudesse sair das páginas da ficção e circular pelas grandes cidades brasileiras desde seu tempo até hoje, Brian talvez se visse estrangulado e perseguido por algum segurança de supermercado ou impedido de alugar um apartamento caso vissem sua foto antes. Ou talvez não conseguisse alçar o posto de médico, que exercia na Nova York da época da quebra da Bolsa de Valores. É certo que Brian se decepcionaria, mas quem talvez ficasse positivamente surpreso seria John Bellew, o marido branco de Claire, que faz o contraponto personificando a postura colonizadora que em momento algum se pensa ou se racializa.

Irene e Clare se olham como em um espelho, alternando repulsa e admiração. Irene não tolera a negação de Clare as suas raízes e ao mundo hipócrita em que está mergulhada, mas sente admiração pela coragem da outra em se “disfarçar” e transitar em espaços vetados a quem não se camufla. Clare, por seu lado, sente que Irene e toda a efervescência intelectual do Harlem podem devolver-lhe o passado e reconectá-la com algo que lhe faz falta, pois, voltando à questão que abre o texto, é preciso ousadia e fôlego para fingir. Ter que usar máscara o tempo todo cansa.

O livro vai aumentando o tom da tensão racial e também sexual entre as duas protagonistas. Esticando a corda até um limite que leva a um final metafórico com este “não lugar” onde estavam (e todavia estão) pessoas que, devido à cor de sua pele, são consideradas muito brancas para se encaixarem na negritude, ou muito negras para se sentirem em casa em meio à branquitude. Um lugar incômodo e autobiográfico de Nella Larsen.

Peça que não se encaixa

Considerada uma das grandes autoras do seu tempo, Nella passou a vida como peça não encaixada do quebra-cabeças racial dicotômico de uma nação que ostenta um “racismo de origem e não de marca”, para citar Oracy Nogueira, sociólogo brasileiro contemporâneo dela. Ele analisou os padrões de discriminação racial no Brasil e nos Estados Unidos: o racismo à brasileira, que se baseia nas características físicas, e o norte-americano, alicerçado na ascendência.

Assumir a identidade não é tarefa fácil para quem descende dos que foram sequestrados no outro lado do Atlântico. No surpreendente “Identidade”, Nella Larsen expõe com maestria os matizes e consequências deste movimento violento. Curiosamente, o romance fala de maneira contundente com o público negro brasileiro que, independentemente das marcas mais ou menos evidentes deixadas em sua pele, está fazendo o caminho contrário do apontado pelo sociólogo e reivindicando ancestralidade para, finalmente, ocupar o lugar que sempre lhe foi de direito na história do mundo.

* Eliana Alves Cruz é jornalista e escritora, autora de “Nada digo de ti, que em ti não veja”.

 

“Identidade”

Autora: Nella Larsen

Editora: HarperCollins

Tradução: Rogério W. Galindo

Páginas: 160

Preço: R$ 39,90

 

Fonte: O Globo.

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