Por Makua Adimora | Tradução de Isabela Palhares

No dia após o massacre no pedágio de Lekki em 20 de outubro do ano passado, eu estava na cama ouvindo músicas do rapper estadunidense Ab-Soul. O clima estava denso com angústia, e o cheiro pungente de morte invadia minhas narinas todas as vezes que eu parava de balançar tempo suficiente para respirar. Em intervalos, eu me revirava na cama, desesperadamente tentando tirar da minha cabeça os eventos sórdidos que havia testemunhado virtualmente na noite anterior.

Ao invés, eu mudei meu foco para os raps de Soulo (como ele é chamado) e suas críticas sociais, que costuram o pessoal com o político. “Sobre o que é a sua vida?/ Me ilumine/ Você vai viver de joelhos/ ou morrer de pé?” ele apresentou em “Ab-Soul’s Outro”. Mais tarde naquele dia, enquanto eu limpava as lágrimas do meu rosto, eu me questionei sobre o objetivo dos protestos #EndSARS e se a recompensa valia o risco.

Nessa época, no ano passado, a juventude nigeriana fazia história. Alimentados pela dor e unidos por uma intenção inabalável, os jovens nigerianos foram às ruas para bravamente desafiar os assassinatos extrajudiciais de jovens pela unidade de polícia SARS (Esquadrão Especial Anti-Roubo”, agora “extinta”. A atmosfera no local do protesto – fisicamente e virtualmente – era algo que eu nunca tinha visto antes. Em locais de protestos no país, havia uma noção garantida de camaradagem entre os jovens enquanto nos mantínhamos de pé para protestar contra a má governança. O movimento era descentralizado e particularmente nulo de tensões étnico-religiosas que normalmente são uma praga nas questões sociopolíticas da Nigéria. Éramos um.

Mas em uma terça-feira à noite obscura no pedágio de Lekki no estado de Lagos, tudo parou bruscamente. Em 20 de outubro de 2020, após o anúncio de um toque de recolher imposto pelo estado, o exército abriu fogo contra manifestantes pacíficos, que sentavam acenando a bandeira da Nigéria e cantavam o hino nacional; alguns perderam suas vidas pela causa naquela noite.

O massacre – e o caos que seguiu – deixou um gosto amargo nas nossas bocas, considerando o modo abrupto como foi encerrada a energia estimulante dos protestos após o fato. Jovens que começavam a imaginar um novo futuro foram repentinamente levados de volta à realidade pelo som de armas e choros de colegas feridos. O fato de o governo ter realizado tentativas incansáveis para apagar os eventos horríveis daquela noite das nossas cabeças, também não ajudou. No final, ficou claro que a justiça provavelmente não é um conceito tangível nesse país.

A repercussão dos protestos teve um efeito polarizador nos nigerianos, confundindo otimismo com pessimismo. Para alguns, a luta está longe de acabar, mas estão com medo de mais matanças. E para outros, essa perspectiva reafirma sua crença inicial do relacionamento superficial do público com o radicalismo. Mas o que faz uma revolução? As pessoas ou a causa?

Em seu livro, a “Anatomia da Revolução”, o historiador estadunidense Crane Brinton, correlaciona a revolução a uma febre. E como uma febre, uma revolução pode ser uma coisa boa para a parte sobrevivente. Como coloca Brinton: “A febre queima os germes ruins, ao passo que a revolução destrói pessoas ruins e instituições prejudiciais e inúteis”. Nesse sentido, uma revolução frequentemente alcança um resultado positivo para o sobrevivente – mas a sobrevivência não é uma façanha fácil.

Revoluções não acontecem do dia para a noite – elas frequentemente são um túnel longo e sinuoso para o outro lado da liberdade, normalmente com diversos obstáculos no meio do caminho. E uma jornada de sucesso para a luz no fim do túnel é marcada pela resiliência enraizada na fome desesperada pela sobrevivência. Por isso, aqueles buscando embarcar em uma revolta devem entender que exige algum tipo de sacrifício: tempo, energia, recursos, vida.

Em dezembro de 2010, Mohammed Bouazizi, um vendedor ambulante tunisiano, ateou fogo ao próprio corpo em protesto contra os policiais que confiscaram seu carrinho de frutas e vegetais. O confisco simbolizou as contínuas e sistemáticas desapropriação e opressão que ele sofreu nas mãos do seu próprio governo. O sacrifício de Bouazizi catalisou a Revolução Jasmine na Tunísia e, eventualmente, a Primavera Árabe, uma onda de protestos, levantes, e revoltas que ocorreram no norte da África e no Oriente Médio, que acabaram depondo os governos da Tunísia, Egito, Líbia e Iêmen e abalaram muitos outros.

No entanto, isso não veio sem um preço: desde a derrocada do líder Muammar Kaddafi na Líbia, o país foi destroçado por uma guerra civil. Similarmente, o Iêmen mergulhou em um conflito civil sangrento após o presidente Ali Abdullah Saleh ter sido forçado a renunciar. Na Síria, o presidente Bashar al-Assad se segurou no poder mesmo com um levante nacional contra o seu comando, às custas de centenas de milhares de sírios mortos e o deslocamento de milhões.

Após o tiroteio no pedágio de Lekki, os manifestantes do #EndSARS voltaram para as suas casas, temerosos por suas vidas e pelo o que as forças de segurança poderiam fazer depois. Lentamente nos demos conta de que as revoluções não são para os fracos.

Em seu artigo de duas partes “A anatomia dos protestos EndSARS como uma revolução incompleta”, o professor de filosofia nigeriano Douglas Anene estabelece paralelos entre uma revolução exitosa e um parto de um bebê feito com sucesso, argumentando, “as inconveniências da gravidez experienciadas pela mãe em potencial e as dores durante o parto são análogas à dor e sofrimento que frequentemente acompanham as revoluções”.

Nesse contexto, pode ser fácil atribuir as mortes do massacre de Lekki – e durante os protestos no geral – aos efeitos esperados de tal levante. Mas muitos não compreendem esse ponto de vista. Por um motivo, o clima sociopolítico nigeriano deteriorou drasticamente desde então. No país, vimos um aumento da violência e da insegurança, uma crise nacional de fome, e a contínua supressão da liberdade de imprensa. É quase como se tivéssemos dado um passo para frente e três para trás.

Ao longo do seu livro “On Revolution”, a cientista política Hannah Arendt, descreve a revolução como uma restauração, na qual os rebeldes buscam restaurar as liberdades dos cidadãos e os privilégios que foram perdidos devido à breve escapada do governo para o autoritarismo.

Contextualizar isso para a Nigéria seria um mito; meu país tem queimado há décadas antes de eu nascer. Muito antes de eu testemunhar a queda de um avião que matou cerca de 100 crianças da minha idade, muito antes de uma milícia armada atacar uma cidade no norte da Nigéria. Então, a restauração, nesse sentido, é quase impossível, ao passo que o Estado distópico nigeriano atual é tudo o que eu sei. Nossos pais sabem disso também. Como nós, a mudança espuma em seus corações, mas seu ativismo se rendeu à falta de uma verdadeira crença, os deixando cheios de esperanças vazias.

Essencialmente, os protestos EndSARS eram inevitáveis. De acordo com a teoria de Brinton, a “febre” aumenta devido as reclamações entre as pessoas. Um sintoma dessa febre é o colapso do corpo do poder. A febre assola; então fica claro que as pessoas não podem tolerá-la, e essa fúria é substituída por um corpo de poder melhorado e pessoas mais felizes. Na Nigéria, anos de violência irrestrita e completo desrespeito para com as vidas dos cidadãos, sem dúvidas, geraram o desgosto que explodiu em uma legítima fúria nacional no ano passado. Ainda assim, ainda esperamos para ser “pessoas mais felizes”.

Mesmo assim, o movimento nos ensinou algumas lições positivas. A primeira é o fato de que somos muito mais fortes juntos do que separados. Ao redor da nação, jovens nigerianos de todas as seis zonas geopolíticas se juntaram com um objetivo comum de acabar com a intimidação policial, opressão e brutalidade. Nossa frente unida foi o que garantiu a sustentação dos protestos pelo tempo que duraram. Também nos mostrou que é possível ter uma sociedade civil transparente e responsável que responda às necessidades dos seus cidadãos.

A principal causa do mofo político profundamente enraizado no solo nigeriano é a contínua falta de respeito do governo pelos direitos humanos, sem cuidar das pessoas que foi eleito para servir. Por isso, ver plataformas como a Coalizão Feminista voluntariamente levantar e desembolsar fundos para serviços sociais como alimentação, abrigo, assistência médica, segurança pessoal e apoio legal durante os protestos incutiram uma esperança renovada no futuro do país.

Olhando para frente, o único caminho é uma completa reforma da Nigéria. Aprendemos que a podridão não começa e não termina com as operações ilegais de um só grupo desonesto, mas que é propagada por todas as facções dentro da sociedade nigeriana que permite e recompensa o abuso de poder e o uso desproporcional de força. Mas a agitação política que buscamos não chegará até nós de bandeja, como aprendemos.

Em seu artigo, Anene ainda argumenta: “somente uma profunda apreciação do fato de que as revoluções envolvem situações de vida e morte podem gerar as disposições mentais necessárias para conduzir uma revolução com sucesso. Nas revoluções, medidas pela metade são fúteis e contraproducentes”.

Então, a pergunta do milhão permanece: quem está pronto para traçar todo o caminho necessário para derrubar esses sistemas de controle? Em face a resistências violentas e fatais, quem está preparado para permanecer firme? Quem é corajoso o suficiente para se rebelar?

 

Fonte: Al Jazeera | Créditos da foto: (Temilade Adelaja/Reuters).

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