Por Hélio de Seixas Guimarães
Novas traduções das ʽMemórias póstumasʼ rejuvenescem romance de 140 anos e provocam reflexões sobre modos de se referir a cor e raça no Brasil. Difíceis de traduzir, as crueldades produzidas pelo escravismo são enfrentadas com rigor e alinhadas às agendas identitárias de 2020 nas últimas versões em língua estrangeira.
The Posthumous Memoirs of Brás Cubas
PREF. Dave Eggers. TRAD., APRES. e notas Flora Thomson-DeVeaux
Machado de Assis, Joaquima Maria
Posthumous Memoirs of Brás Cubas
TRAD. Margaret Jull Costa e Robin Patterson
Duas recentes traduções de Memórias póstumas de Brás Cubas para o inglês, publicadas com o intervalo de alguns dias, dão fôlego novo ao morto mais ilustre da literatura brasileira. Às vésperas de completar 140 anos, o romance narrado pelo autor-defunto parece estar mais vivo do que nunca e continua a causar espanto em leitores de várias gerações e latitudes, como mostra a já longa história de sua perambulação pelo mundo.
Desde que foi publicado pela primeira vez, aos pedaços, na Revista Brasileira, entre março e dezembro de 1880, são incontáveis as edições em português. O livro tornou-se uma espécie de monumento da literatura e da cultura, em torno do qual se discutem desde questões metafísicas até a geologia do poço sem fundo em que estamos cronicamente metidos.
A carreira do romance em outras línguas, embora tenha se iniciado tardiamente, também é longa, e já tem sua própria história. Apesar das tentativas fracassadas de três traduções para o alemão, nas quais o próprio Machado se empenhou entre as décadas de 1880 e 1890, a primeira publicação em língua estrangeira só viria em 1902, com a edição no Uruguai das Memorias póstumas de Blas Cubas, seguidas pelas traduções para o francês (1911), italiano (1929) e alemão (1950), espaçadas por uma ou duas décadas.
O grande impulso à circulação internacional do romance e do nome do seu autor foi dado pela primeira tradução para o inglês, por William Grossman, publicada em 1951, em São Paulo, com o título The Posthumous Memoirs of Braz Cubas. A mesma tradução saiu no ano seguinte em Nova York, pela pequena e prestigiosa Noonday Press, com título reformulado – Epitaph of a Small Winner, algo como “epitáfio de um pequeno ganhador”.
O escritor, que até 1950 contava com apenas três dos seus contos traduzidos para o inglês, num curto intervalo teve três dos seus romances publicados pela Noonday de Cecil Hemley: Epitaph of a Small Winner (1952) foi seguido por Dom Casmurro (1953), traduzido por Helen Caldwell, e por Philosopher or Dog? (1954), este último tradução de Clotilde Wilson para Quincas Borba.
A partir dali, Brás Cubas e Machado foram sendo publicados nas mais diversas línguas: sueco (1955), holandês (1956), dinamarquês (1956), servo-croata (1957), polonês (1959), tcheco (1960), russo (1961), árabe (1963), estoniano (1973), chinês (1992), turco (2003) e japonês (2012).
Tal disposição de línguas e datas sugere que a internacionalização da obra machadiana acompanhou a movimentação do mundo no pós-guerra. Nos Estados Unidos, foi estimulada pelo apoio direto ou indireto do governo norte-americano, via organismos internacionais e fundações, às chamadas línguas críticas, entre as quais se incluía, e ainda se inclui, o português, fomentando a tradução e a circulação de obras brasileiras nos Estados Unidos.
Na Europa, as traduções esparsas realizadas na primeira metade do século 20 para o francês, italiano e alemão chegaram a outras línguas e países, muitas vezes como efeito das publicações em inglês. A chegada ao leste da Europa, especialmente a partir do final dos anos 1950, se deu em meio às disputas travadas entre Estados Unidos e o bloco soviético por áreas de influência no globo, no auge da Guerra Fria. Nas últimas décadas, Brás Cubas parece seguir em direção à Ásia.
Mas por enquanto é principalmente para o inglês que Machado está melhor e mais extensamente traduzido, efeito também dos investimentos feitos a partir da década de 1940 no ensino de língua e cultura brasileiras em departamentos de espanhol, português e estudos latino-americanos das principais universidade norte-americanas, com repercussões na Inglaterra e outros países. Com isso, criou-se um público de formação acadêmica interessado no Brasil e na cultura brasileira, que responde por boa parte do leitorado das obras de Machado de Assis para o inglês, e também pela boa reputação do escritor principalmente entre círculos intelectualizados.
Hoje, todos os 76 contos publicados por Machado de Assis em livro têm pelo menos uma versão para o inglês. Todos os seus nove romances estão traduzidos, alguns com várias versões, como é o caso das Memórias póstumas. Com cinco versões, é o romance brasileiro com o maior número de traduções, o que o põe entre os grandes clássicos da cultura mundial, incessantemente retraduzidos.
As duas traduções recentes, a de Flora Thomson-DeVeaux, lançada pela Penguim Classics, e a de Margaret Jull Costa e Robin Patterson, publicada pela Liveright, são precedidas pelo pioneiro Epitaph of a Small Winner, de William Grossman, por Posthumous Reminiscences of Braz Cubas, de E. Percy Ellis (1955), e por The Posthumous Memoirs of Brás Cubas, de Gregory Rabassa (1997).
Os perfis dos três tradutores e das duas tradutoras indicam a crescente profissionalização e especialização envolvidas nas publicações em inglês da literatura brasileira. Grossman era advogado e engenheiro de transportes e depois das Memórias póstumas traduziu vários livros brasileiros em paralelo à sua ocupação principal como professor de engenharia aeronáutica no ITA (Instituto Tecnológico da Aeronáutica, em São José dos Campos) e na New York University (NYU). Ellis era pastor protestante e não traduziu nenhum outro livro além de Brás Cubas. Rabassa, embora tenha se tornado tradutor profissional, chegou à tradução, segundo seu próprio depoimento, meio por acaso.
O encontro das tradutoras recentes com Brás Cubas tem muito pouco de acaso. Flora Thomson-DeVeaux graduou-se em espanhol e português na Universidade de Princeton, e o projeto da tradução de Brás Cubas fez parte do doutoramento no Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros na Universidade Brown. A tradução resulta, portanto, de longa convivência com Machado de Assis e sua crítica.
Margaret Jull Costa traduziu centenas de títulos do português e do espanhol, incluindo algumas dezenas de clássicos da língua, como Eça de Queirós e José Saramago, e ganhou muitos prêmios por suas traduções. Seu parceiro na tradução das Memórias póstumas, Robin Patterson, tem se dedicado nos últimos anos à tradução de textos em português. Ambos traduziram os 76 contos de Machado de Assis publicados em 2018, também pela Liveright, num volume monumental intitulado The Collected Stories of Machado de Assis.
Retraduções
É, portanto, nessa história e nessa linhagem que as duas novas traduções, ou melhor, retraduções, se inserem e se destacam. Um grande estudioso do assunto, Antoine Berman, diz em A tradução e a letra ou o albergue do longínquo que as retraduções permitem pensar na historicidade e nas marcas que as circunstâncias de cada tradutor deixam sobre o texto traduzido. Quem retraduz não está diante apenas de um só texto, o “original”, mas de dois ou mais textos, produzidos em circunstâncias diversas. Paul Ricoeur observa que é na retradução que se observa melhor a pulsão de tradução, que se caracteriza pela insatisfação com as versões existentes. Então, a que vêm estes novos Brás Cubas?
De maneira geral, o que se nota nas duas versões recentes é um texto em inglês mais rente ao texto em português, de maneira geral buscando acompanhar a pontuação e o ritmo de Machado, mantendo estranhezas do texto em português (os nomes próprios tendem a aparecer com todas as letras e acentos), sem incorrer no que Berman define como as grandes deformações que operam sobre as traduções, entre elas a racionalização, a clarificação, o alongamento e a destruição de ritmos e locuções.
Por ser um processo cumulativo, as lições passadas contribuem para a possibilidade de dizer de modo mais curto e direto, liberando as traduções mais recentes do peso de apresentar um texto e um autor a um público para o qual ele é pouco ou nada conhecido. Esse era o caso no início da década de 1950, quando a mudança do título para Epitaph of a Small Winner eliminou o paradoxo contido em “memórias póstumas” e o nome estrangeiro, Brás Cubas, que causaria muito estranheza entre leitores que mal sabiam quem era Machado de Assis.
É sintomático que as traduções mais recentes quase coincidam no título, mantendo o paradoxo e o exotismo do nome de Brás, com acento e tudo. Ainda que entre a de Thomson-DeVeaux (The Posthumous Memoirs of Brás Cubas) e a de Jull Costa e Patterson (Posthumous Memoirs of Brás Cubas), a diferença recaia apenas num “The”, as edições não poderiam ser mais diferentes.
A da Penguin, além da tradução do romance, traz um verdadeiro guia para o leitor anglófono sobre a trajetória de Brás e Machado em inglês. Além dos elogios de dezenas de escritores e críticos à tradução, ao romance e ao autor, o livro contém um prefácio do escritor Dave Eggers, uma introdução assinada pela tradutora, uma nota à tradução, uma nota às notas (algo como 150, nada burocráticas), além de sugestões de outras leituras, que incluem as principais edições de escritos de Machado e de estudos críticos disponíveis em inglês.
A profusão de aparatos pode dar a impressão de uma certa vontade de pôr tudo no livro, mas a impressão se desfaz na leitura. As notas são conscienciosamente postas no final da obra, de forma a distrair o mínimo do texto principal ou interferir no desenho das páginas. Como lembra Thomson-DeVeaux na seção “A Note to the Endnotes” (Uma nota sobre as notas de fim), Machado de Assis provavelmente pensou até mesmo nos detalhes gráficos das páginas, o que fica sugerido pela disposição do título e da dedicatória aos vermes, em forma de epitáfio, pelo famoso diálogo de Adão e Eva, composto de reticências, exclamações e interrogações, passando pelas inúmeras considerações do narrador sobre praticamente todos os aspectos gráficos do livro: tamanho do volume, dimensão da mancha, escolha dos tipos, cortes, vinhetas etc.
A edição da Penguin dá-se ao luxo de traduzir e apresentar em notas ao fim do livro trechos da primeira publicação do romance na Revista Brasileira, suprimidos da edição em livro. Requinte dos requintes, acrescenta mais um nível à dimensão autorreflexiva do romance, ao tratar do próprio processo de tradução.
A nota que cria para explicar o título do “Capítulo CL – Rotação e translação”, traduzido como “Rotation and translation”, explica que, se em inglês “translation” refere-se tanto à transferência de uma língua a outra como a um deslocamento no espaço, em português há termos diferentes para cada ideia: tradução e translação. E comenta: “mas parece apropriado que os dois termos apareçam juntos, e de maneira desorientadora, nesse livro traduzido em muitos tempos e línguas”.
A edição da Liveright é bastante discreta, quase espartana, nos aparatos. Além do texto do romance, traz uma breve introdução, uma nota biográfica sobre Machado de Assis (com algumas informações imprecisas, que embora muito repetidas carecem de base documental), ambas não assinadas, e 48 notas explicativas, também bastante sóbrias.
Pretos, negros e moleques
As novas traduções equilibram-se na sintonia com as discussões e reivindicações atuais relativas às relações entre raça, cor e escravidão e à presença dessas questões na obra de Machado de Assis. Para se ter uma ideia, no romance em português a palavra “escravo” (e suas flexões em gênero e número) aparece doze vezes. Nas duas traduções, as ocorrências de “slave” e “slaves” são 27 em Thomson-DeVeaux e 28 em Jull Costa e Patterson. Ou seja, a situação de escravidão das personagens, nem sempre afirmada, tende a ser explicitada nas traduções recentes.
Há muito a tradução das palavras “negro” e “preto” é uma questão sensível para os tradutores da literatura brasileira, mesmo para aqueles de países de longa história escravista, como Estados Unidos e Inglaterra. Nas traduções da década de 1950, há forte oscilação entre o uso de “Negro”, “negro”, “black” e “colored”, este último equivalente ao “de cor”, que Machado nunca usa. Grossman traduziu “um preto jardineiro” e “preto velho” por “colored gardener” e “old colored servant”, mas em geral traduz “negro” por “Negro”, com inicial maiúscula, como foi usual nos Estados Unidos na primeira metade do século 20, antes que “black” e “African-American” se tornassem as formas mais aceitáveis (está em curso nos Estados Unidos uma polêmica sobre grafar “black” com “b” maiúsculo ou minúsculo).
As crueldades singulares produzidas pelo escravismo e as peculiaridades nos modos de se referir a cor e raça no Brasil, também difíceis de traduzir, são enfrentadas com rigor, alinhando as traduções às agendas identitárias de 2020. Ao traduzir “preto do ganho”, Grossman procurou a explicação com “Negroes hired out by their masters to do odd jobs” (algo como “negros alugados por seus donos para fazer biscates”), Ellis parece ter errado completamente o alvo com “the black porters” (porteiro, ou carregador de malas, negro?), assim como Rabassa com “the black street sweeper” (varredor de rua negro?). Thomson-DeVeaux e a dupla Jull Costa/Patterson escolhem respectivamente “hired-out slaves working odd jobs” e “the black slave who did odd jobs”, tornando mais sintética a solução de Grossman.
Atenta ao uso que seria corrente na boca e na pena de um personagem como Brás Cubas em seu tempo, Thomson-DeVeaux utiliza todas as lições das traduções anteriores e corajosamente emprega “negro”, assim como fizera Grossman, ao traduzir a surpresa de Brás Cubas ao andar, certo dia, “por aquele Valongo afora”: “era um preto que vergalhava outro na praça” (“a negro was whipping another in the square”). Nesse caso, todos os outros tradutores preferiram “black man”.
Mesmo em palavras nas quais a referência racial e a situação de escravidão nem sempre estão óbvias, como é o caso de “moleque”, as traduções tendem a explicitá-las. Grossman oscila entre “boy”, “black boy” e “Negro boy”; Ellis utiliza “boy”, “fellow” e até um inesperado “urchin”, mais próximo de “maltrapilho”; e Rabassa oscila entre “black boy” e “house boy”. As duas traduções mais recentes não hesitam. Em ambas, moleque é “slave boy”, com a diferença do acréscimo de um hífen na versão de Jull Costa e Patterson.
Em muitos casos, o sentido de um termo só poderá ser determinado pela imaginação de quem o lê, e Machado de Assis é mestre nas ambiguidades. O desafio posto aos seus leitores torna-se particularmente agudo para os tradutores.
Um bom exemplo é a primeira aparição de Eugênia, “a flor da moita”, que se dá nestes termos: “A voz e as saias pertenciam a uma mocinha morena”. Ainda que existam fortes paralelos entre o desfecho da relação de Brás Cubas com Eugênia e o modo como ele se livra da borboleta preta, nada se explicita a respeito da pertença étnica ou racial de Eugênia, a despeito da ironia do nome, de conotações eugenistas. Assim, o termo “morena” pode se referir à cor do cabelo, em oposição a uma mocinha loira, e também às múltiplas gradações da cor da pele.
Eis como os tradutores respondem à ambiguidade da palavra:
“The voice and the skirt belonged to a dark young girl” (Grossman)
“The voice and skirt belonged to a slightly coloured girl” (Ellis)
“The voice and skirts belonged to a young brunette” (Rabassa)
“The voice and the skirts belonged to a dark young girl” (Thomson-DeVeaux)
“Voice and skirts belongd to a dark-complexioned young girl” (Jull Costa/ Patterson)
As cinco traduções de alguma forma concretizam as potencialidades do termo escolhido por Machado, chamando a atenção para a cor do cabelo, com “brunette”, ou da pele, com “slightly coloured” e “dark-complexioned”, mantendo-se alguma ambiguidade com “dark young girl”. Esta última forma deixa margem para a imaginação da tonalidade da pele, ainda que talvez exclua para o leitor anglófono a possibilidade de Eugênia ser considerada branca, o que não ocorre em português.
(Até muito recentemente, poucos leitores brasileiros do romance em português terão pensado em Eugênia como mestiça ou negra, possibilidade com a qual deparei num curso sobre Machado de Assis nos Estados Unidos, em que os alunos levantaram essa questão, que não havia sido colocada em muitos anos de ensino do romance no Brasil.)
Ritmo e precisão
Na tradução de Jull Costa e Patterson, Brás Cubas ganha um traço afrancesado. Assim, “uma camilha rasa” aparece como “a low chaise longue”. “Espírito de classe” torna-se “esprit de classes”. “Fina flor” aparece como “crème de la crème”. “Colo” e “seio” aparecem como “décolleté” e “décolletage”.
Ainda mais notável é o trecho em que Brás se lembra dos tempos do velho cozinheiro do Hotel Pharoux, o velho M. Proudhon. Aí os acepipes aparecem como “hors d’oeuvres” e os nomes dos hotéis em que ele trabalhou em Paris, e dos nobres para os quais prestou seus serviços, são restaurados para o francês. A citação ao restaurante Véfour aparece como Le grande Véfour, e o conde Molé e o duque de la Rochefoucauld são referidos como “Comte Molé” e “Duc de la Rochefoucauld”.
Esse emprego de palavras de origem francesa incorporadas ao inglês, se passam batido para o leitor anglófono, para um leitor brasileiro parece enfatizar a postura esnobe de Brás, e faz pensar numa aproximação, nada descabida, do romance e do personagem machadiano com O primo Basílio de Eça de Queirós, que volta e meia usa palavras em francês para enfatizar a afetação do personagem.
Por meio da tradução, notei, depois de dezenas de leituras do romance, que as Memórias póstumas, tão pródiga na citação de autores de vários tempos e línguas, é muito parcimoniosa no uso de palavras estrangeiras. Contei duas do latim (“quid” e “pandemonium”), duas do francês (“toilette” e “calembour”) e três do inglês (“godemes”, provável corruptela da expressão “God damned”; “luncheon”; e um singelo “baby”). Todo o resto Machado põe na pena de Brás Cubas em bom português.
Nas traduções mais recentes, é notável a atenção ao ritmo do texto, procurando manter muitas das inversões, elipses, vírgulas e pontos-e-vírgulas que imprimem uma musicalidade peculiar às Memórias. Em relação às anteriores, tendem a não retificar estranhezas, preencher sentidos, explicar ou normalizar a escrita de Machado/Brás Cubas, com suas “arrojadas cabriolas de volatim” (“daring tumbler’s somersaults”, por Thomson DeVeaux, e “the most daring acrobatics imaginable”, por Jull Costa e Patterson).
O Capítulo 11, “O menino é pai do homem”, em que Brás conta a criação solta que teve (“Cresci naturalmente, como crescem as magnólias e os gatos”), é arrematado assim: “Dessa terra e desse estrume é que nasceu esta flor.”
Grossman, o primeiro tradutor, tende a explicar: “Of such land, fertilized by such manure, this flower drew its substance”. Ellis e Rabassa, nas traduções seguintes, são mais sintéticos: “From such a soil and such fertilizer this flower sprang” e “Out of that earth and that manure this flower was born”. Jull Costa e Patterson escolhem duas palavras, “soil” e “dung”, que acentuam o tom derrisório e despachado de Brás, e reorganizam ligeiramente a frase: “It was from that soil and that dung that this flower was born”. Thomson-DeVeaux traduz a frase lapidar de maneira ainda mais sintética, mantendo todas as inversões sintáticas: “From that earth and that manure was this flower born”.
O ousado “pago-te com um piparote, e adeus”, com que Brás Cubas despede-se do leitor em famoso prólogo, é traduzido por todos com variações em torno de “snap of my fingers”, que sugere um estalar de dedos. Thomson-DeVeaux utiliza “flick of a finger”, procurando dar conta do movimento exato do piparote, que consiste em distender com força um dedo (geralmente o indicador ou o médio) antes dobrado e apoiado sobre a parte mais carnuda do polegar.
Por fim, ouçamos a orquestração da cena em que Brás Cubas narra sua morte:
“Agora, quero morrer tranquilamente, metodicamente, ouvindo os soluços das damas, as falas baixas dos homens, a chuva que tamborila nas folhas de tinhorão da chácara, e o som estrídulo de uma navalha que um amolador está afiando lá fora, à porta de um correeiro. [….] A vida estrebuchava-me no peito, com uns ímpetos de vaga marinha, esvaía-se-me a consciência, eu descia à imobilidade física e moral, e o corpo fazia-se-me planta, e pedra, e lodo, e cousa nenhuma.”
Vejam como fica na tradução de Thomson-DeVeaux:
“For now I want to die peacefully, methodically, hearing the sobbing of the ladies, the low murmuring of the men, the rain drumming on the caladium leaves in the garden, and the piercing sound of a razor being sharpened by a knife grinder, out by the door to a currier’s shop. [….] Life floundered in my chest like the surging of an ocean swell, my consciousness melted away, I was drifting down into physical and moral immobility, my body becoming a plant, a stone, loam, nothing at all.”
O desenho da frase, a cadência das palavras e as aliterações procuram recompor em inglês efeito o auditivo semelhante ao produzido em português, numa orquestração de sons graves, agudos e sibilantes que parece ir sugerindo o desligamento do narrador do mundo dos vivos, ainda que com os ouvidos agarrados a ele.
A tradução de Jull Costa e Patterson entrega todos os sentidos, sem correr tão rente ao texto em português. No trecho em questão, a enumeração traz ao primeiro plano os agentes do som (“the ladies”, “the men”, “the rain”), e não os sons que Brás ouve enquanto morre (os soluços, as falas, a chuva, os sons estrídulos):
“Now, I wish to die peacefully, methodically, listening to the ladies sobbing, the men quietly talking, the rain drumming on the caladium leaves in the garden, and the grating noise made by a grinder sharpening a knife outside a chain-maker’s forge. [….] Life was struggling for survival in my breast, like a series of breaking waves; my consciuousness was fading, I was slipping into physical and moral stasis, and my body was turning me into plant, stone, mud, nothing.”
Para o meu ouvido, a enumeração terminada com “nothing at all” soa melhor, talvez por sugerir um nada mais absoluto, talvez pela proximidade com a duração de “e cousa nenhuma”.
Insatisfação
“Preso por ter cão, preso por não ter cão!”. Essa frase, gritada pelo infeliz barbeiro Porfírio, de O alienista, serve para muitas situações, e parece cair como uma luva para o trabalho da tradução. Por mais que se faça, sempre haverá quem diga que se poderia fazer de outra forma, e melhor. E as retraduções estão aí para provar que se trata mesmo de um trabalho sem fim, movido pela insatisfação, como aliás deve ser o trabalho de leitura dos grandes livros.
Entretanto, a publicação quase simultânea das duas traduções de um mesmo romance torna inevitáveis as comparações, e é preciso concluir. Sem querer pôr em campo mais um Fla-Flu, nem instalar o tribunal dos juízos peremptórios, de um primeiro cotejo entre as traduções extraio a seguinte conclusão, provisória como devem ser as conclusões: a tradução de Grossman, embora mais antiga, continua envelhecendo muito bem. A de Jull Costa/Patterson e a de Thomson-DeVeaux são, cada uma a seu modo, excelentes. A primeira é mais categórica, e a segunda capta mais matizes do texto de Machado de Assis, com uma edição que é mesmo uma festa para novos e velhos interessados em Machado de Assis.
Quanto ao romance de 1880, esse fica cada vez mais jovem e pimpão, e já à espera das próximas traduções.
Fonte: Quatro Cinco Um