Por Nathan Caixeta

Nas ideias de Pochmann, chaves para entender as novas faces do retrocesso. Com desmonte do Estado, ganha força o poder paralelo de milícias, igrejas e crime organizado. Violência e precarização tornam-se cotidiano das massas desesperançadas.

Introdução: um quadro geral sobre a estrutura social Brasileira e suas mudanças recentes

Durante aula proferida no curso de pós-graduação em Desenvolvimento Econômico do Instituto de Economia da Unicamp, o professor doutor Marcio Pochmann denuncia a existência do “sistema jagunço”, a união entre o fanatismo religioso e o banditismo social, soldados pela precarização das relações de trabalho, a descartabilidade social marcadamente racista, machista, transfóbica e xenofóbica, e o retrocesso do papel do Estado enquanto agente operador da “soldagem social” pelas vias da normatividade, da assistência social básica e do aporte gerador de crescimento econômico e do emprego.

Ao assistir à aula, percebi-me atônito, pois o conceito anunciado me obrigou a rever todo arquétipo histórico-teórico que até então acumulei para denominar o processo chamado “modernização conservadora”, pelo qual se modernizou a estrutura econômica, aprofundando relativamente as desigualdades sociais. Esse ensaio não propõe abranger a totalidade das transformações ocorridas na relação Estado-mercado-sociedade, recortadas pelos meios de reprodução do atraso social. O que se pretende é explorar de maneira desapaixonada dos contornos da tese do sistema jagunço descrito por Pochmann, há quem me desculpo antecipadamente por possíveis equívocos interpretativos.

Revisitando a literatura clássica sobre a cisão entre o sonho na aurora do Brasil moderno, digamos, a partir de 1950, e o país que marchou forçosamente para a desilusão pós-anos 1980, verifica-se um fenômeno que se esgueirou pela mutação da estrutura social brasileira nos últimos 40 anos: a consolidação de um poder paralelo, semelhante e distinto ao poder do Estado democrático que reproduz sob nova roupagem a antiga figura do Jagunço, protetor fiel dos mandonismos locais desde os tempos do Brasil-Colônia.

Em O Capitalismo Tardio e Sociabilidade Moderna, Fernando Novais e Cardoso de Mello demarcam o ponto de mutação entre o Brasil que ascendia econômica, social e culturalmente, para aquele cuja ruptura política do golpe de 1964 subverteu o sentido da modernização, reproduzindo os elementos que diluíram os valores da liberdade e da igualdade em favor dos valores mercantis do individualismo e da concorrência, fabricando uma nova forma de açoitamento pelo jagunço: se antes as chibatadas de couro de boi doíam nos lombos de quem desafiasse o “coroné”, sob o rito ditatorial a chibata foi substituída pela caneta, versão oculta dos instrumentos de repressão política, policial e econômica contra os refugiados, dos quilombos, dos recantos pobres dos sertões para as favelas, formação geográfico-social tão antiga quanto a Velha República.

As demarcações entre os morros cariocas e Copacabana, entre Paraisópolis e os Jardins paulistanos, acompanharam o ritmo da concentração da riqueza financeira e fundiária, assim como, a aceleração da precarização do trabalho e a sedimentação da “viração”, como saída para aqueles cujo descarte dos meios formais de trabalho é dado desde a “largada”, visto que as condições de escolarização, especialização profissional e a fluidez com que as reformas liberalizantes destruíram o dinamismo do mercado de trabalho brasileiro, formaram o conjunto de barreira historicamente intransponíveis entre a periferia e o centro das relações sociais demarcadas pela detenção da propriedade e do dinheiro, onde realizam-se efetivamente os nexos da cidadania.

A Constituição de 1988, como demonstra Paulo Arantes em O Novo Tempo do Mundo, imprimiu o timbre no papel em branco que a democracia, teoricamente, deveria rechear com os termos da alforria do indivíduo miserável e anônimo, elevando-o para o status de cidadão. Contudo, a democracia ganhou, mas não levou, pois, a cidadania oferecida aos habitantes da periferia permanece demarcada pela clivagem da concorrência, esfera protetora do verniz democrático que esconde os tons plutocráticos do poder no Brasil.

Nem mesmo a adaptação da tese de Wolfgang Streeck em Tempo Comprado para a vasta terra do Pindorama é suficiente para aportar as raízes da distância do Estado em relação à população periférica. No Brasil, as demandas sociais identitárias são pressões coadjuvantes sobre a estrutura democrática: o que, verdadeiramente, pressiona as barrigas, sem cutucar os poros do poder, é o fenômeno da fome, contemplado com marginalidade nos períodos em que a política social sobra como migalhas do banquete oferecido aos proprietários da riqueza. Mas, se para toda regra existe exceção, nos idos da marginalização das populações “faveladas”, a exceção fixou-se como regra, pois cada passo adiante na direção da integração social dos pobres, as canetas tripartites dos poderes republicanos expurgavam o feixe de luz pelo qual os oprimidos enxergavam a esperança, pois os pingos de sangue que sobram da execução, criação e observância das leis no Brasil escolhe seu tinteiro, como o Farialimer seleciona a folha do próprio tabaco: a fome do pobre alimenta o banquete do rico.

Completa o quadro, a interpretação de Raimundo Faoro sobre a estruturação do poder no Brasil em que aparecem contrapostos o estamento endinheirado ornado pela burocracia do Estado contra o povo sobressalente. Por um lado, o Estado funciona como regulador dos conflitos sociais, por outro, transfere renda dos mais pobres para os mais ricos, utilizando-se da violência como método de “triagem” que separam a população periférica segundo as clivagens: do “bom cidadão” trabalhador, do “parasita” que suga o Estado, do “peixe pequeno”, hora, ou outra, eliminado pelo sorteio das balas perdidas, e do “bom bandido”, preso ou morto.

A tese central que amarra o quadro geral ensaiado nos parágrafos seguintes encaminhará a seguinte lógica argumentativa: a decadência crescente dos meios de integração e mobilidade sociais transmutou a forma de operação do velho “sistema jagunço”, pela articulação e mobilização do poder paraestatal a partir das formas evoluídas e contemporâneas de reprodução do atraso social que conjuga a miséria, a violência seletiva e a precarização das condições de inserção no mercado de trabalho, parcialmente cobertas pela presença social do Estado. Desde logo, não se trata de contrapor o Estado constituído democraticamente sob o gerenciamento tripartite da ordem cívica e legal, e aquele nascido das múltiplas formas de poder paraestatais, como a milícia, a “grande-empresa do crime” e os laços comunais cristalizados na religiosidade centrada na teologia da prosperidade, como vazão moral da ética da concorrência, eliminando qualquer meio de transcendência. O sistema estatal constituído sob as obstes da lei e da ordem atua manejando as tensões materiais e sociais que decorrem da desintegração dos meios de mobilidade social, enquanto o sistema paraestatal ocupa as lacunas deixadas pelo papel social do Estado, formando, como aponta Gabriel Feltran em O Valor dos Pobres, um espaço de sociabilidade distinta, consolidando uma intersecção entre os conjuntos de ação normativas e sociais do Estado democrático e societais do poder paraestatal.

O “sistema jagunço”: comentários ao desenvolvimento teórico e didático de Marcio Pochmann

Marcio Pochmann é autor de uma interpretação fundamental sobre as transformações da estrutura social a partir da desintegração dos mecanismos igualitários promovido pela franca ascensão dos pobres à chamada “nova classe-média”. Não menos relevantes são as contribuições de Antunes, Gimenez e Quadros que se encarregaram de jogar água no chopp da miragem estatística observada entre 2003 e 2011. Contudo, o eixo norteador do sistema jagunço, penso ser a transmutação da modernização-conservadora, reprisando as formas historicamente verticais de poder sob a roupagem da concorrência, mar divisor entre duas realidades: aquela governada pelo Estado Democrático promotor da concorrência como forma de individualização do mérito, e aquela nascida dos espaços cujo acesso do Estado Social se faz de forma nula, ou diminuta, exigindo a emulação das estruturas de poder sob mecanismos paraestatais de reprodução da esfera moral, punitiva, monetária e comunitária, completando as lacunas deixadas pela ausência, ou interferência do Estado violento na realização da clivagem social.

O sistema jagunço une, portanto, quatro esferas reprodutivas: 1) a sobreposição da moral protestante como forma de soldagem social entre a fé e as relações sociais comunais; 2) a viração como expressão da fluidez ocupacional dos mais vulneráveis; 3) a grande-empresa do crime como articulação paralela entre a reprodução do capital e o poder paraestatal de estabelecimento da lei e da ordem pela via da violência social; 4) O interstício entre o Estado, o sistema carcerário e a assistência social, entes de estabelecimento do sistema métrico que define a escala social dos desvalidos. A junção desses elementos transforma o conceito tradicional de modernização conservadora, centrado no mecanismo reciproco entre a expansão do poder estatal e do domínio do capital denunciado pela elevação das distância entre as oportunidades de integração social entre os super-ricos a flutuante posição da classe média e aqueles em situação de pobreza.

Tal transformação não torna mais conversadores os instrumentos do subdesenvolvimento periférico, mas realiza-se ao transformar a modernização conservadora em retrocesso do papel social do Estado que conjuntamente ao poder expansivo do capital acabam por racionalizar as interações com as populações periféricas, abrandando-as pelos programas focalizados de transferência de renda e enervando-as pela violência expressa nos índices de encarceramento em massa e de mortes das populações periféricas, pela bala perdida, ou direcionada para aqueles não enquadrados na triagem social do “bom sujeito”. Desse modo, o Estado opera como jagunço, enquanto agente direto de representação dos interesses pessoais e financeiros das elites. Conforme observado na figura 1, verificam-se movimentos que quando reunidos descrevem sinteticamente a operação do sistema jagunço (página 5):

Figura 1: Esquema Síntese das interações entre os polos de conflito do “Sistema Jagunço”

Em resumo:

– Cada área representa a atuação social, geográfica e econômica dos grupos representados pelo Estado (em amarelo), pelo Capital (em vermelho), pela Periferia (em Azul) e pela população submetida ao descarte social (em preto);

– O tamanho das setas que representam o grau a conexão entre os grupos simboliza a sobredeterminação ou interação sistêmica entre eles;

– A forma das retas tracejadas significa, do menor ao maior, grau de interdependência das relações entre os grupos, evidenciados pela interação entre a mediação das cores ao longo das retas tracejadas.

A partir do esquema-síntese apresentado na figura 1, é possível tecer o conjunto de argumentos que dialogam e desenvolvem o conceito do sistema jagunço:

  • O conjunto de ações normativas coercitivas e econômicas do Estado aprofundadas pelo regime neoliberal e cujo clímax é atingido no cenário atual ocupa-se, em primeira instância, em garantir a solidez dos estoques de riqueza privados, despendendo quase metade do resultado fiscal para as cambalhotas do endividamento público no país dos rentistas;
  • Quando sobradas as migalhas do orçamento público, as políticas de assistência básica servem para amenizar os conflitos trazidos pelo desemprego e pela insuficiência material, prova disso, segundo Pochmann é que em 1980, apenas 3% da população recebia recursos na forma de transferência de renda, saltando para 40% em 2020. Para além disso, os movimentos de “pacificação” das regiões periféricas reforçaram a relação entre a grande-empresa do crime e as milícias, transferindo no âmbito da periferia a divisão do monopólio da violência pelo Estado com o poder paralelo na mistura entre as três cores: a normatividade seletiva da violência do Estado, a rígida moral estabelecida pela presença paraestatal nas periferias e a demarquia hayekiana que entremeia a ditadura do código do crime e a normatividade democrática das leis e direitos constitucionais;
  • Aqueles não absorvidos na triagem entre o poder constituído são encarcerados aos montes como forma de confinamento da desigualdade aos ditames nada prudentes da magistratura, capaz de afiançar um ricaço assassino e condenar uma mãe que surrupiou um pote de manteiga para alimentar seu filho, dando-lhe o mesmo destino dos mais de 700 mil presos sem acesso ao devido processo legal e a um julgamento formal;
  • A reprodução da miséria, da viração e dos exíguos, senão inexistentes caminhos de ascensão social engordam as fileiras da população carcerária, enquanto formam a multidão de indivíduos reservados à convocação do capital para sua reprodução como mercadoria-trabalho, sob condições legais e estruturalmente cada vez mais precárias;
  • Por fim, os descartados sociais, habitantes do cotidiano periférico e carcerário guardam tão somente relações sociais precarizadas com a reprodução da riqueza, timbradas pela insuficiência material e referendadas pela autonomização do capital em relação ao trabalho.

Conclui-se encadeando o argumento aqui exposto que o sistema jagunço, ao transformar a modernização conservadora, estimulou o surgimento de novos nexos de conexão social que demarcam a existência de um outro tipo de sociabilidade, emulando os caminhos de encontro entre o indivíduo descartável, o jagunço que ocupa-se do descarte e a superestrutura político-econômica que fazem do Brasil de hoje mera litografia opaca e distorcida do Brasil de 130 anos atrás, conforme argumenta Pochmann.

A figura do jagunço era protetora dos interesses político-econômicos das elites, munidos por ferramentas de opressão que formavam um sistema de leis e repressão próprias ao regionalismo do velho Brasil, a reprodução sistêmica da figura do jagunço moderno como mecanismo de transmutação social, estabelece a ligação entre a democracia progressivamente enfraquecida, a comunhão entre a grande-empresa do crise e a força moral da teologia da prosperidade, segundo a qual o eterno é uma premiação para quem chega ao fim do túnel, depois de despender seu sacrifício monetário, abandonando quanto mais as ligações espirituais e transformando-as em cifrões de cura, prosperidade, fama e influência política na reunião de interesses que solidificam o conservadorismo moral, político e econômico: a bala, a bíblia e o boi.

O Brasil não andou para frente, sucedendo o retrocesso, mas retrocedeu ao passo em que modernizaram-se as formas de opressão social, sobrando do avanço econômico as marcas da pintura fresca da democracia, fazendo valer o concreto e real espaço do “poder”: a lei do dinheiro e o dinheiro da lei, o primeiro reflexo do jagunço moderno, o segundo reflexo do jagunço do século XIX.

 

Fonte: Outras Palavras.

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