Por Renato Sérgio de Lima
Como Jair Bolsonaro se aproveitou do vácuo no debate sobre segurança pública para montar uma tropa de eleitores armados.
Este conteúdo é parte da série “Aqui mando eu: democracias frágeis, políticas autoritárias”, projeto jornalístico dedicado a investigar expressões contemporâneas do autoritarismo na América Latina. O projeto é coordenado pela produtora mexicana Dromómanos, em parceria com o Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT) e os seguintes veículos: El Universal (México), El Faro (El Salvador), Divergentes (Nicarágua), Cerosetenta (Colômbia), Efecto Cocuyo (Venezuela), revista piauí (Brasil) y La Pública (Chile). Os demais conteúdos podem ser acessados aqui.
Jair Bolsonaro pode ser acusado, apropriadamente, de muitos absurdos e disparates. Sua administração é, por diversas métricas, uma das mais disfuncionais e caóticas que o Brasil já teve. São várias as esferas da burocracia pública que estão sob ataque e fragilizadas, levando analistas, jornalistas e cientistas sociais a debater continuamente a capacidade de resistência das instituições democráticas. O problema é que, enquanto esses analistas constroem suas teses sobre o caos e as bravatas bolsonaristas – alguns minimizando o estrago, outros superdimensionando-o –, ao menos em uma área do governo o presidente atua de forma planejada e metódica: na segurança pública. Neste caso, não há caos nem bravatas. É por meio das forças policiais que Bolsonaro persegue seu objetivo de destruir as bases da Nova República, criadas pela redemocratização e pela Constituição de 1988.
O presidente não surgiu no vácuo. Ao analisar o que está em jogo neste momento, é preciso que olhemos para as bases sociais da política e das relações entre o Estado e a sociedade brasileira. É necessário, para isso, partir da premissa de que Bolsonaro representa não apenas uma disputa entre valores autoritários e valores democráticos – o que é muito anterior à sua gestão –, mas também um embate de concepções geopolíticas sobre qual projeto de país deve ser seguido. E que, por tabela, Bolsonaro também materializa uma disputa sobre o papel das forças policiais no controle da ordem social.
A administração bolsonarista não é a única responsável pelo momento que vivemos hoje, apesar de sua enorme contribuição. O presidente catalisou – e ainda catalisa – diferentes interesses particulares que veem a universalização dos direitos humanos, civis, políticos, sociais e ambientais como algo que “não cabe no orçamento”; algo exagerado num país em que a cidadania continua sendo regulada com base na estratificação social e racial da população. A emergência do populismo de extrema direita, portanto, deve ser vista não só como causa, mas também como efeito da fragilidade democrática e do nosso iliberalismo.
As políticas adotadas a partir da Constituição de 1988 não foram capazes de levar adiante reformas que democratizassem as polícias e orientassem ações considerando a segurança pública como um direito fundamental, e não como uma atividade voltada exclusivamente à persecução penal. Houve, sim, várias tentativas de modernização da arquitetura institucional das polícias ao longo dos anos. Nenhuma delas, porém, atingiu o âmago desse sistema, onde se reproduzem padrões operacionais que, se não são explicitamente lastreados na violência, a aceitam como linguagem corrente das nossas relações sociais.
A história do Brasil sempre foi uma história de violência e desigualdade, que separa a população entre “cidadãos de bem”, dotados de direitos, e “bandidos”, que devem ser perseguidos e eliminados. Reproduzimos um ciclo típico da América Latina de convivência com altas taxas de violência: a região responde por cerca de um terço dos homicídios do planeta, e o Brasil, com 3% da população mundial, acumula em torno de 10% de todos os assassinatos. Sem histórico recente de conflitos armados entre países, o Brasil e a maioria de seus vizinhos repetem um movimento pendular, alternando entre inovações na gestão policial e contrarreformas que acabam legitimando um modelo policial pautado na guerra às drogas e na repressão a movimentos sociais.
Bolsonaro aproveita o ambiente de disjunção na segurança pública para construir uma simbiose de narrativas entre seu projeto de poder e a identidade profissional dos policiais brasileiros. Simbiose que tenta reforçar o conservadorismo político dos integrantes das polícias e, ao mesmo tempo, estimular o protagonismo radicalizado desses oficiais na vida pública, à semelhança do que tem ocorrido na Alemanha, na Bolívia, no Chile, na Colômbia, nos Estados Unidos, nas Filipinas, na França e na Índia.
O presidente se fortalece no amálgama de condições políticas e institucionais que dão forma à desigualdade brasileira e são naturalizadas pela maioria dos policiais. Ao fazer isso, Bolsonaro estimula que esses agentes não aceitem questionamentos aos seus padrões de atuação. Ele reproduz ideias sobre a ordem social que estão na base do arcabouço institucional da segurança pública. Cabe, então, esclarecer: que arcabouço é esse e por que ele continua existindo?
Diversas leis, decretos, normas e regulamentos que hoje regem o trabalho das polícias no Brasil são anteriores à Constituição e nunca foram modernizadas. A consequência disso é que, entre o discurso democrático e as práticas cotidianas, cria-se um enorme vão, onde se perpetua o antagonismo entre policiais e comunidades pobres, resultando num caldo de insatisfações e frustrações para todos os lados. Tais frustrações se manifestam dentro de um quadro fragmentado. Ao todo, o Brasil conta hoje com 86 organizações policiais e 1.188 guardas municipais (estas últimas não têm poder de polícia pleno e atuam de forma subsidiária na segurança pública). Esse número se deve ao fato de o Brasil ser uma República Federativa e estar organizado em três níveis de governo: União, unidades da federação (estados e Distrito Federal) e municípios.
A União é uma entidade federativa autônoma em relação aos estados e municípios, mas que não se resume ao governo federal – é composta também pelo Congresso, pelo Ministério Público da União, pelas Forças Armadas, pela Polícia Federal e outros órgãos. Cabe à União exercer as prerrogativas da soberania do Estado brasileiro. Já as unidades da federação se traduzem em 26 estados mais o Distrito Federal, território onde está localizada a capital do país, Brasília. Na ponta da linha, há 5.570 municípios, que variam muito em termos de população e de possibilidades financeiras.
Por ser uma federação, o Brasil não tem uma instância responsável por integrar e coordenar ações de segurança. Tudo precisa ser pactuado entre as diferentes esferas de poder, e, durante esse processo, cada ente acaba caminhando na direção que acha mais apropriada – e que quase sempre é alinhada à visão de que a polícia existe exclusivamente para perseguir e prender. Em teoria, os três níveis de governo compartilham (ou deveriam compartilhar) atribuições de planejamento, formulação e implementação de políticas. As regras que regem as polícias, no entanto, são confusas e se sobrepõem umas às outras.
Segundo a Constituição, cabe à União editar normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação, mobilização, inatividades e pensões das polícias militares e dos corpos de bombeiros militares. Mas em outro trecho, no Artigo 144, ela diz que as polícias militares estão subordinadas aos governadores dos estados, cabendo a eles editar normas de gestão e administração. E a confusão não termina aí. Nesse mesmo artigo, a Constituição diz que as polícias militares são Forças Auxiliares e de Reserva do Exército, que, por força de uma lei aprovada na ditadura, detém a prerrogativa de coordená-las no que diz respeito à instrução, supervisão, coordenação e controle.
Em suma, o pacto federativo estabelecido pela Constituição negligenciou a governança das polícias. Isso acabou produzindo o quadro que temos hoje, de dissonância entre diferentes esferas do poder público, o que incentiva a fragmentação e o insulamento dessas tropas. No dia a dia, as polícias fazem o que acham certo, sem que ninguém as controle efetivamente.
Contribui para esse cenário o fato de que, nas últimas décadas, demandas corporativistas e percepções dos policiais foram sendo diluídas numa espécie de jogo de soma zero. Os policiais passaram a disputar cargos políticos com o objetivo de destravar reformas e influenciar os rumos da segurança pública. Essa ação, contudo, é enfraquecida porque, se por um lado há consenso entre os policiais quanto à urgência de reformar e valorizar a carreira, há também enormes discordâncias sobre a forma de fazer isso.
Os interesses dos representantes das diferentes carreiras que compõem as polícias são muitas vezes contraditórios (as pautas defendidas por delegados da Polícia Civil se opõem àquelas defendidas por oficiais da PM, por exemplo). O resultado disso é um sistema de vetos perfeitos, similar ao que ocorre entre países no Conselho de Segurança da ONU. Isto é: todos concordam com a necessidade de reformas, mas não há consenso sobre o que deve ser posto no lugar, então cada carreira veta a proposta da outra e nada avança.
Diante desse quadro de indefinições, a presidência da República, única força política capaz de alterar a correlação de forças no Congresso, só tomou iniciativas quando provocada por crises e crimes espetaculares que repercutiram na imprensa e nas redes sociais. Todos os ex-presidentes da República desde 1989 buscaram não se envolver diretamente com a segurança pública, deixando as polícias estaduais isoladas, e/ou se limitaram a dar suporte financeiro às unidades da federação. A maioria dos presidentes pensava que segurança era uma agenda dos governadores e que não seria politicamente conveniente se envolver com ela.
Foi Bolsonaro quem quebrou esse padrão, chamando para si a responsabilidade sobre o assunto, ainda que de forma puramente retórica. Enquanto seus antecessores mantinham distância do problema, ele assumiu a segurança pública como uma questão prioritária, atiçando com isso as expectativas dos policiais, que até então vinham sendo frustradas pelo tortuoso modelo de governança descrito acima. Seu discurso autoritário, de eliminação dos “inimigos” e de uso da violência para executar uma espécie de “limpeza moral” do país teve grande aderência na classe policial. Não se trata de uma parcela pequena da população: considerando os policiais, os militares de modo geral e seus familiares, esse grupo é composto por aproximadamente 18,5 milhões de brasileiros.
Auxiliado pela queda da violência letal no Brasil, fenômeno que ocorre desde 2018, Bolsonaro construiu uma narrativa política em que ele coloca a si próprio e aos policiais, sobretudo os militares, no papel de protagonistas de uma área na qual todos os ex-presidentes apareciam apenas como coadjuvantes. Em três anos de governo, ele pouco fez de concreto, e não poucas vezes desagradou interesses corporativistas das polícias não militares. Ainda assim, Bolsonaro passou a dominar o enquadramento do debate público com propostas absurdas, como a autorização para que as polícias matem sem serem investigadas; a criação de uma lei antiterrorismo que lhe permitiria reprimir movimentos sociais; entre muitos outros exemplos. E é aqui que muitos analistas podem se enganar. Como Bolsonaro não consegue aprovar suas propostas bizarras no Congresso, muitos deduzem que ele está fraco, isolado, e que os riscos de uma ruptura democrática são pequenos.
Creio, no entanto, que, para o presidente, não importa tanto aprovar alterações legais no quadro institucional das polícias. Ao menos não neste momento. O que ele quer é destruí-lo, e para isso não é necessário propor alternativas, mas tão somente investir na tática de terra arrasada e guerra assimétrica, que ocupa e toma por dentro as instituições. Bolsonaro compreendeu que, dada a complexidade do sistema político brasileiro, investir na conquista da base policial é um cálculo eleitoral que lhe garante um piso confortável de apoio para as eleições e que neutraliza a capacidade que nomes do campo conservador teriam de substituí-lo como oponente do PT e da esquerda.
Não é só isso. Ele também sabe que provavelmente será o único candidato na corrida presidencial a falar abertamente sobre segurança pública e sobre projetos para a área – os demais não devem pautar a reforma desse setor devido ao temor reverencial que as polícias impõem. É por essa razão que Bolsonaro pode prometer reajustes salariais para policiais federais e, sendo essa promessa contestada pelos gestores das finanças públicas, jogar a culpa nos outros e recuar sem nenhum desgaste. O presidente criou um modelo de gestão que o exime de responsabilidade pelas consequências de seus atos. Um modelo que fomenta a radicalização política e vive de mobilizar conflitos e contradições.
A radicalização dos policiais no Brasil só poderá ser enfrentada com reformas substantivas na arquitetura da segurança pública – tema que, paradoxalmente, é muito improvável que se discuta de forma séria em 2022. De um jeito ou de outro, persiste uma questão que precisamos enfrentar: o que queremos colocar no lugar do bolsonarismo caso ele seja derrotado na eleição? A tendência natural da realpolitik é deixar tudo como está e evitar fricções. Precisamos, no entanto, construir um projeto urgente para ser posto em prática logo após a campanha, de modo a evitar a reprodução de tudo o que temos denunciado nas últimas décadas. Caso isso não ocorra, o bolsonarismo permanecerá como um espectro ameaçador rondando a segurança pública no Brasil.
* Este artigo é uma versão resumida de texto originalmente escrito para a coletânea Populism in Latin America and Beyond, organizada por Anthony Pereira, do King’s College, de Londres, com o título: Bolsonaro’s Brazil: National populism and the role of the police.
Professor da FGV EAESP e diretor presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Fonte: Revista Piauí.