[Foto Reprodução: a Frente Negra Brasileira, no auge da sua existência, mantinha escolas para que os negros pudessem estudar, além de cursos profissionalizantes]
Por Nayara Melo, Coluna Observatório da Branquitude
Este temor aparece nas tantas disputas por ações afirmativas nas universidades para que não considerem a raça dos estudantes.
“Divino Mestre” era a forma como Agostinho José Pereira era conhecido em 1846 em Recife, preso por incitar uma revolta nas ruas da cidade. A “revolta” — pasmem — era a alfabetização de mais de 300 negros libertos e livres. Para além disso, o Divino Mestre circulava versos de cunho religioso com tom de profecia: “Haverá sobre os morenos/ Raios de divindade”. A história do Agostinho José Pereira acena para um arsenal de histórias de pessoas negras revolucionárias, que não são facilmente conhecidas pela escassez de registros e de divulgação em larga escala.
Mais de cem anos se passaram dessa prisão justificada como uma insubordinação. O ensino da leitura e o consumo de palavras que apresentavam um deus negro que proclama decretos de uma vitória aos morenos parecia ser algo além do permitido para aquela época. Talvez até nos dias de hoje não estejamos tão distantes desse medo branco. Ainda existe o receio de perder as oportunidades e a legitimidade. Um medo que pode ser despertado quando o “outro” se torna sujeito de sua história.
O medo branco aparece também nas tantas disputas por ações afirmativas nas universidades para que não considerem a raça dos estudantes. A universidade, as escolas de alto prestígio e outras oportunidades educacionais são imagens de um poder social, afinal a educação transfere milhas para alargamento dos horizontes. Nos últimos 20 anos, com a atuação da Lei de Cotas no ensino superior, pela primeira vez em nossa história enquanto país, temos mais de 50% do alunado composto por alunos pretos e pardos. O “novo” cenário das universidades faz com que a sociedade tenha que reimaginar as figuras de senso comum: as imagens dos médicos e engenheiros não podem mais estar acomodadas sob o imaginário de pessoas brancas. As ações afirmativas pressionam a população a reorganizar as figuras de poder e conhecimento, tão habituadas a serem vistas por rostos brancos.
Diante disso, os copiosos editoriais de grandes jornais com posicionamentos contrários às ações afirmativas, parecem ser uma tentativa falha da manutenção dessa imagem de um Brasil com uma vitrine embranquecida. De semelhante modo, as moções assinadas e os projetos de lei que tentaram inviabilizar ou deturpar o funcionamento das ações afirmativas, quer seja no ensino superior ou para concursos públicos. O medo vinculado a escancarar que a desigualdade no país não está atrelada — apenas — aos critérios de classe, mas que as assimetrias sociais estão vinculadas também à raça. O posicionamento “anticota” é mais um reflexo do medo branco — e nós monitoramos essas ações por meio do Observatório da Branquitude.
O acesso de pessoas negras a uma educação de qualidade é uma transgressão na ordem de um sistema que as ratifica como marginalizadas e as pessoas brancas em posições de poder
Na pesquisa “A cor da infraestrutura escolar”, detalhamos as diferenças entre escolas públicas de maioria de alunado negro e de maioria de alunado branco. Os resultados mostram que escolas com mais de 60% de alunos brancos também são as escolas que apresentam maiores percentuais de biblioteca, quadra de esportes, água potável e saneamento básico. Entretanto, a maioria do alunado geral de escolas públicas no país é composta por alunos negros. A reflexão sobre esses aspectos mostra uma diferença na oferta das escolas que atinge uma disposição racial desses alunos, com considerações de outros critérios como região do país, localização rural ou urbana, capital ou interior dos estados. Uma soma de desigualdades que atinge em grande medida aqueles que mais precisam de horizontes alargados.
O acesso de pessoas negras a uma educação de qualidade é uma transgressão na ordem de um sistema que ratifica pessoas negras marginalizadas e pessoas brancas em posições de poder. A quebra da disposição racial com significantes de classe é assustadora a quem esteve sempre em posições seguras de alcance e sem questionamentos sobre os méritos de acesso a determinada oportunidade educacional ou de emprego. É complexo atestar um processo tão longo e que desperta respostas semelhantes — o medo — em brancos em situação de poder, quer seja em meados de 1800 ou nos dias atuais. Não à toa, Darcy Ribeiro identifica o desmantelamento da educação brasileira como um projeto. Cabe acrescentar uma pergunta a esta sentença: um projeto para quem?
Não são as pessoas brancas que ocupam as maiores taxas de analfabetismo no país, ou as que estão mais dependentes dos serviços públicos de diferentes ordens (educacionais, saúde e seguridade social). O projeto de descaso das instituições públicas se reflete também em um descaso com a população que mais o utiliza. A singularidade sobre como a educação oferece autonomia para os de baixo, pode ser vista como amedrontador para os que estão no poder. A quem interessa a manutenção de escolas públicas mais precarizadas ou as universidades com perfis elitizados? A gana de “chegar lá” não deveria ser a história de exceção e mérito que estampam jornais. Assim como, alfabetizar 300 pessoas também não deveria ser encarado como crime. Na época de Agostinho e ainda hoje, o medo branco opera para afastar pessoas negras dos acessos que a educação pode proporcionar.
NAYARA MELO é graduada em odontologia pela UFPE e tem mestrado em sociologia pela mesma instituição, com pesquisas voltadas para ensino superior e ações afirmativas. É doutoranda em sociologia, pelo IESP-UERJ, com foco em desigualdade racial no SUS. Possui experiência como pesquisadora no terceiro setor e como profissional de saúde no serviço público e privado. Atualmente, é analista de pesquisa na OdB.
OBSERVATÓRIO DA BRANQUITUDE é uma organização da sociedade civil fundada em 2022 e dedicada a produzir e disseminar conhecimento e incidência estratégica com foco na branquitude, em suas estruturas de poder materiais e simbólicas, alicerces em que as desigualdades raciais se apoiam.
Fonte: Gama Revista.