Por Beatriz Rodrigues Sanchez, Bruna Della Torre, Carolina Peters, Carolina Soares, Daniela Costanzo, Isabella Meucci, Mariana Amaral e Larissa Vannucci

A Coletiva Marxismo Feminista analisa as origens do “PL do estupro”, os desdobramentos da proposta e as possíveis consequências de sua aprovação, travando um debate mais amplo sobre o lugar da pauta feminista no horizonte político da esquerda.

 

O Projeto de Lei nº 1904/24, que se popularizou como “PL do estupro” ou “PL da gravidez infantil”, provocou grande repercussão midiática e nas redes sociais nas últimas semanas. Isso porque o projeto é um ataque brutal à dignidade de crianças, mulheres e pessoas que gestam vítimas de violência sexual. A proposta em questão consiste em equiparar qualquer aborto realizado após a 22ª semana de gestação ao crime de homicídio – um dos mais graves em nosso contexto político-criminal –, na prática, retrocedendo nas prerrogativas de aborto legal previstas desde 1940 e transformando as vítimas de violência sexual em assassinas. Em outras palavras, às pessoas violentadas restariam duas opções de acordo com o PL 1904/24: a gravidez compulsória de seu estuprador ou uma pena de prisão que pode chegar até 20 anos.

A gravidade dessa situação se acentua quando consideramos os números de estupros que ocorrem cotidianamente no Brasil: em média, 2 por minuto, segundo dados do IPEA,  sendo suas principais vítimas meninas e jovens menores de idade e de contextos sociais pobres e precarizados (também segundo o IPEA, a maior parte das vítimas tem entre 10 e 14 anos). Sendo assim, os procedimentos de aborto acima de 22 semanas de gestação são realizados, em sua maioria, justamente por meninas e jovens vítimas de violência sexual que não têm condições de entender que foram vítimas de violência, que precisam de apoio familiar para fazer uma denúncia e procurar os meios legais para a realização do procedimento de interrupção da gestação. Em grande parte desses casos de abuso infantil, os familiares, assim como as meninas e jovens violentadas, só se dão conta da gravidez quando ela já está mais avançada, com sinais aparentes como o crescimento da barriga. Por isso, a limitação de 22 semanas de gestação proposta no PL representa a interrupção da infância e do futuro para essas meninas e jovens vítimas de violência. Enquanto seus estupradores seguirão suas vidas, a elas serão negados direitos fundamentais como frequentar a escola, conviver com crianças da mesma idade, planejar um futuro e sonhar com outras possibilidades de vida.

Em 12 de junho de 2024, a Câmara dos Deputados aprovou o requerimento de regime de urgência para a tramitação do PL 1904/24, o que significa que o texto não precisará passar pela apreciação das comissões da casa nem pelos debates – entre parlamentares e com a sociedade civil, em audiências públicas – por elas suscitados, podendo ser levado diretamente a votação em plenário.

Este texto pretende discutir as origens e desdobramentos da proposta, as consequências possíveis de sua aprovação e travar um debate mais amplo com a esquerda, particularmente os marxistas, sobre o lugar da pauta feminista no nosso horizonte político.

Como chegamos até aqui?

Não é a primeira vez nos anos recentes que um projeto desse tipo tramita no Congresso Nacional. Desde antes da Constituinte, os movimentos feministas têm travado embates para a garantia dos direitos reprodutivos das mulheres, como a defesa da laicidade do Estado brasileiro, contra a inscrição na Carta Magna do preceito religioso do “direito à vida desde a concepção”, o que interditaria de pronto qualquer avanço nos direitos sexuais e reprodutivos. Mas foi nos anos 2000 que a crescente bancada fundamentalista, cada vez mais articulada, começou sua campanha por um “Estatuto do Nascituro”.

Em 2005, foi apresentada uma primeira versão do projeto, bastante reativa aos desenvolvimentos científicos em genética da época, que visava proibir inclusive pesquisas com células tronco. Este projeto inicial foi arquivado em janeiro de 2007, contudo, ainda no mesmo ano, o projeto seria reapresentado com modificações e com teor punitivista ainda maior, visando transformar a interrupção de gestação, realizada em qualquer circunstância e idade gestacional, em crime hediondo. A proposta assegurava ainda direitos paternos a estupradores, concedendo às vítimas, obrigadas a uma gravidez compulsória, um “benefício” financeiro, razão pela qual passou a ser conhecida como “bolsa estupro”. O proponente era o deputado baiano Luiz Bassuma, então eleito pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e expulso do partido pouco depois. Sua motivação para ressuscitar o projeto recém-arquivado vinha da repercussão nacional daquele que ficou conhecido como “Caso das 10 mil”.

De lá para cá, outras investidas contra os direitos sexuais e reprodutivos não cessaram de ameaçar os direitos mínimos já conquistados, mas nunca sem enfrentamento. A “Primavera Feminista” que tomou as ruas do país em 2015 derrotou o PL 5069/2013, que entre outras barbaridades negava atendimento emergencial e de urgência a vítimas de violência sexual, exigindo apresentação de boletim de ocorrência para o atendimento médico, impondo restrições à profilaxia de gravidez e dando brecha para dificultar de modo geral o acesso à pílula do dia seguinte. Entre seus coautores estava  Eduardo Cunha, que liderou o processo de impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff.

Seja como for, iniciativas afins seguem rondando o Legislativo brasileiro, não só a nível federal, dando ensejo a inúmeras proposições que buscam afirmar e celebrar a figura do “não nascido” como sujeito de direito – restringindo, para isso, os direitos de crianças, mulheres, dissidentes de gênero –, desinformar a população e criar entraves para a garantia do aborto legal nos três casos previstos atualmente: gravidez decorrente de estupro e risco de vida à pessoa gestante, inscritos no Código Penal de 1940; além de anencefalia fetal, incluído na lista por decisão do STF de 2012. E como se não bastassem as propostas de mudança na legislação vigente, a extrema-direita teocrática age também ao arrepio da lei.

Fazendo uma retrospectiva sintética dos últimos anos, lembremos que Damares Alves, ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos (sic) e defensora da “bolsa estupro”, mobilizou a estrutura pública para tentar impedir que uma menina de apenas 10 anos tivesse acesso ao aborto legal. Também no governo Bolsonaro, o Ministério da Saúde produziu normativas e materiais que contrariavam as orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS) e as melhores práticas médicas em relação tanto ao aborto legal quanto à gestação e parto.

Ainda mais recentemente, a prefeitura de São Paulo fechou um dos principais centros de referência no atendimento ao aborto legal no país, o hospital Vila Nova Cachoeirinha, cujas pacientes eram sobretudo crianças violentadas em idade gestacional avançada. O prefeito Ricardo Nunes rebateu as críticas alegando supostas irregularidades, denúncia que se mostrou infundada. O serviço, no entanto, segue suspenso, enquanto seu corpo médico é coagido pelo Conselho Regional de Medicina do estado de São Paulo (CREMESP). Jogar luz sobre o episódio que ainda se desdobra na capital paulista, aliás, é fundamental para entender as razões de ser do “PL do estupro”.

Mas por que o Congresso colocou essa lei em votação agora?

Projeto de Lei nº 1904/2024 foi proposto no dia 17 de maio deste ano por Sóstenes Cavalcante, do Partido Liberal (PL), e por mais 32 deputadas e deputados coautores de extrema-direita, a maioria do mesmo partido de Sóstenes. Na antessala de sua redação está uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) – inconstitucional e sem base científica, diga-se de passagem – que, acompanhando a movimentação de sua sucursal paulista e reiterando seu bolsonarismo já explicitado durante a pandemia da covid-19, veda a realização da “assistolia fetal”. Proibindo irrestritamente a técnica clínica comprovadamente adequada à realização de abortamento em idades gestacionais avançadas, o CFM restringe, portanto, o acesso, assim como persegue profissionais de medicina que trabalham nos serviços de aborto legal. A resolução havia sido suspensa por uma liminar do STF concedida naquele mesmo dia, em resposta a uma ação movida pelo PSOL, em conjunto com as organizações Anis e Cravinas (UnB).

No dia 28 de maio, Eli Borges (PL) e mais 26 deputados requereram a tramitação da proposta em regime de urgência, acelerando e pulando algumas etapas do processo. Entre esses 26 deputados estavam os líderes do Bloco União Brasil, PP, Federação PSDB, Cidadania, PDT, Avante, Solidariedade, PRD e do Bloco MDB, PSD, Republicanos e Podemos.

No dia 12 de junho, na forma de votação relâmpago, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, colocou na mesa a urgência do projeto e apenas PSOL, PC do B e PT se opuseram. A reação nas ruas, na internet e na imprensa foi imediata, dado o absurdo da legislação proposta.

Nos dias 17 e 18 de junho, as deputadas e deputados do PSOL requereram a devolução do projeto, alegando sua inconstitucionalidade, e no dia 18 Lira desistiu temporariamente de levar adiante tal proposta, que deve seguir para análise de uma comissão no segundo semestre.

Por fim, ainda no dia 18 de junho, mais 23 deputados de extrema-direita solicitaram a inclusão de coautoria no projeto. Aparentemente, a reação e todo o debate que ocorreu no Brasil em uma semana fez mais deputados terem interesse em se vincular a uma legislação inconstitucional como essa.

A movimentação de Lira e da extrema-direita em torno desta proposta veio em um momento especialmente preocupante para o que se convencionou chamar de forças progressistas no Brasil. Arthur Lira está em meio a negociações para fazer sua sucessão na presidência da Câmara dos Deputados e quer apoio tanto do governo quanto da extrema-direita, por isso vem demonstrando estar disposto a pautar barbaridades para mostrar sua força e angariar apoio.

O governo, por seu lado, passa por um momento difícil no Congresso. Teve vetos presidenciais derrubados, seu ministro da fazenda ameaçado, além de não conseguir ter uma agenda unificada e coerente para negociar com o Legislativo, gerando dificuldades para a construção de uma coalizão.

O momento presente, entretanto, é só um dos sintomas de mudanças mais profundas que aconteceram na relação Executivo e Legislativo (e até Judiciário) que poderiam ser resumidas em três pontos principais, interrelacionados. Em primeiro lugar, desde 2015 a Câmara dos Deputados vem aumentando o poder Legislativo em relação ao Executivo, o que foi sintetizado principalmente na Emenda Constitucional n°86 de 2015 que determinou as emendas impositivas, ou seja, os deputados teriam suas emendas ao orçamento aprovadas de forma obrigatória, diminuindo o poder de controle do Executivo sobre o Legislativo. Em segundo lugar, o fato de que ofertar ministérios ou cargos importantes no Executivo em troca de apoio no Parlamento não funciona mais para várias das matérias importantes para a sociedade e para o Executivo. O apoio é negociado no varejo a cada votação importante, e com uma articulação relevante do presidente da Câmara, que coordena blocões suprapartidários. Em terceiro lugar, os partidos que originalmente faziam parte do Centrão estão maiores e mais fortes do que nunca no Legislativo. Eles decidiram por uma aliança com a extrema-direita e formam maioria simples facilmente e maioria qualificada com alguma articulação.

Não é novidade que no Brasil temos um Legislativo conservador, a diferença é que agora o Executivo tem menos condições de avançar em algumas agendas, caso quisesse. Pois chama a atenção que o Executivo só se manifestou em relação ao projeto depois de ver uma reação contrária enorme na sociedade. Inicialmente, o líder do governo na Câmara, José Guimarães, declarou que o Executivo não se envolveria nessa pauta, pois estava focado nas questões econômicas. Há relatos inclusive de que a bancada petista no Legislativo teria articulado para que não houvesse divulgação de quais deputados votaram a favor da urgência e quais votaram contra – o que evidencia que o conservadorismo em relação aos direitos das mulheres não está presente apenas na direita.

Como se não bastasse o abandono da questão por parte do governo e de vários parlamentares petistas, o presidente Lula se manifestou com 7 dias de atraso. Disse que considerava um absurdo a proposta, que chamou de “pauta de costumes”, e reafirmou ser contra a descriminalização do aborto. Resumindo, aproveitou para fazer seu discurso conciliador de sempre.

O problema é que não se trata de descriminalizar o aborto, como dissemos acima. Ao trazer a questão para a descriminalização, Lula aproveita para desfilar seu conservadorismo em cima dos corpos de mulheres e crianças que estão com seu direito ao aborto legal ameaçado. Além disso, a oposição “pauta econômica” e “pauta de costumes” por parte do governo o impede de ver que o debate sobre o aborto legal e o retrocesso nos direitos das mulheres são centrais para a articulação da extrema-direita e para a própria sucessão do presidente da Câmara – que também teve uma acusação de estupro registrada por sua ex-esposa.

O Direito e seus usos no PL 1904/24: um projeto de país para a extrema-direita

Para além do peso que o avanço do PL 1904/24 tem para a extrema-direita dentro do jogo legislativo e do que ele significa para sua propaganda, o projeto se insere em um esforço mais amplo de disputa do Direito e da linguagem jurídica. Se aprovado, representaria a concretização de um processo de reinterpretação da Constituição e dos direitos que tem sido levado em frente há anos, tanto no Congresso quanto no Judiciário, e que teria impactos profundos na sociedade.

Para entender o que está em disputa neste caso, vale retomarmos brevemente as alterações propostas pelo PL. O texto original altera quatro artigos do Código Penal: o que prevê o crime de aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento (art. 124); os que preveem o crime de aborto provocado por terceiro, com consentimento da gestante (art. 125), ou sem tal consentimento (art. 126); e por, fim, o artigo que determina quais abortos não são punidos (art. 128).

Nos três primeiros artigos mencionados, o PL 1904/24 pretende inserir novo dispositivo que determine que “quando houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas, as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples”. Na prática, isso significa que penas como a prevista por “provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque”, de detenção de um a três anos, só poderiam ser aplicadas nos casos em que não houvesse viabilidade fetal. Nos demais casos – de acordo com o PL, necessariamente nos casos de abortos realizados após a 22ª semana de gestação –, a pena passaria para a prevista no art. 121 do Código Penal: reclusão, de seis a vinte anos.

Aqui, vale destacar que a redação proposta no PL 1904/24 afirma que essa nova pena deveria ser aplicada “quando houver viabilidade fetal, presumida em gestações de 22 semanas”. Isso significa não só que os magistrados estariam obrigados a entender que há viabilidade fetal em todas as gestações após a 22ª semana, mas que eles poderiam também entender que haveria tal viabilidade em gestações mais curtas – e com isso aplicar a pena equivalente a de homicídio simples também nesses casos. Ou seja, o texto deixa nas mãos dos juízes a definição do que se entende como “viabilidade fetal”. Vale ressaltar que essa inserção seria uma inovação legislativa: nunca houve, no Código Penal, nenhuma menção à ideia de “viabilidade fetal”. Sendo o judiciário brasileiro majoritariamente masculino, branco, punitivista e totalmente ignorante quanto às discussões de gênero, esse espaço para interpretação provavelmente suprimiria totalmente o direito ao aborto, mesmo sem a legislação dizê-lo com todas as letras.

Já no art. 128, que prevê duas possibilidades em que “não se pune o aborto praticado por médico”, o PL 1904/24 pretende inserir um novo dispositivo que determina que “se a gravidez resulta de estupro e houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas, não se aplicará a excludente de punibilidade prevista neste artigo” (grifamos). Para além de suprimir, na prática, as possibilidades de realização do aborto que foram previstas em 1940, na época de elaboração do Código Penal – um retrocesso de mais de 80 anos – esse trecho nos revela uma das disputas mais amplas do PL 1904/24: a tentativa de enquadrar o aborto legal não como um direito, mas como um excludente de ilicitude.

De acordo com a justificativa do projeto, teriam sido o “movimento de mulheres e outros grupos feministas” – pintados em todo o texto como inimigos – os responsáveis por enquadrar o aborto como um direito, o que, segundo eles, os legisladores de 1940 não pretendiam subscrever. A tentativa de reposicionamento é sutil, mas tem muito impacto. Uma vez que enxergamos o aborto legal como um direito – mesmo que em poucos casos – o Estado passa a ter uma obrigação positiva de garantir que ele se cumpra. Ou seja, ele deve se responsabilizar por implementar serviços de aborto legal e torná-los disponíveis para toda a população. Em oposição a essa interpretação, a extrema-direita argumenta que o aborto legal deve ser interpretado somente como um excludente de punibilidade, o que não geraria nenhum tipo de obrigação por parte do Estado.

Para além desta reinterpretação, no coração da argumentação do PL 1904/24 está a ideia de que “o nascituro é uma pessoa” e assim, deve ser protegida pelo Estado. Assim como em diversos outros projetos de lei com objetivos similares, sustenta-se que essa proteção é garantida tanto pela Constituição quanto por normativas de direito internacional dos Direitos Humanos. Essas iniciativas, portanto, não estariam violando a Constituição: na verdade, seriam uma maneira de garanti-la.

Na longa justificativa deste projeto em específico, há diversas páginas dedicadas a atacar a ex-ministra do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber, e seu voto no julgamento da ADPF 442. O esforço em desqualificar o posicionamento de Rosa Weber reflete como a extrema-direita tem, nos últimos anos, colocado o STF como um dos alvos preferenciais de seus ataques. No PL 1904/24, sustenta-se que, ao se colocar contra a proteção do “nascituro”, Rosa Weber estaria violando uma pedra angular da Constituição, do Estado de Direito e até mesmo da “civilização moderna”.

A justificativa do PL 1904/24 termina de forma apoteótica: “O que, no princípio, parecia ser apenas a defesa ao direito ao aborto em determinadas circunstâncias, termina se revelando como um processo que conduz à desconstrução dos fundamentos do Estado de Direito, da liberdade e da civilização moderna”. Ou seja, se não punidos os abortos em que há “viabilidade fetal”, o próprio Estado de Direito estaria ameaçado de “desconstrução”. Enquadra-se, portanto, a luta pela restrição ao aborto legal no âmbito de uma  luta civilizacional.

O texto nos dá um vislumbre do projeto de país da extrema-direita. O que eles nomeiam de “Estado de Direito” e de “civilização moderna” e dizem estar defendendo é a sociedade que se pretende construir por meio de projetos como o PL 1904/24: uma em que não há proteção para as meninas e mulheres vítimas de violência, com total supressão dos direitos reprodutivos das mulheres e pessoas que gestam, na qual o Estado não tem obrigação de garantir o acesso ao direito à saúde.

A extrema-direita investe na eterna tentativa de fazer o debate sobre aborto aparecer como uma cruzada moral e religiosa, e não uma disputa em torno de direito à saúde, autonomia e projeto de vida, constituição de família e organização socioeconômica da sociedade. Por isso, recorrem ao punitivismo em resposta à crítica feminista de que o PL 1904/24 tornaria mais alta a pena para mulheres que realizem interrupção da gravidez do que a própria pena para estupradores. Em réplica, o deputado Sóstenes Cavalcante afirmou que pediria aumento da pena de estupro para até 30 anos, proposta que não resolve em nada o direito ao aborto legal para vítimas de estupro ou para as outras hipóteses hoje permitidas. O que este aceno punitivista esconde é uma manobra para avançar com a agenda punitiva e carcerária, excluindo as propostas feministas da política. O que ele revela é que feministas entendem o aborto como uma agenda de direitos e de cuidado, enquanto os conservadores o disputam sempre com a gramática e os instrumentos da violência.

Nenhum direito é assegurado somente por leis e outras diretrizes normativas, todo direito depende de políticas públicas para que seja efetivado e, em relação ao aborto, a história não poderia ser diferente. Mesmo hoje, em um cenário no qual contamos com as possibilidades de aborto legal após estupro ou quando a gravidez é incompatível com a vida, na prática, muitas meninas e mulheres não conseguem interromper uma gravidez que se encaixa nesses casos.

Segundo os dados do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc) do Sistema Único de Saúde (SUS): um a cada sete bebês brasileiros é filho de mãe adolescente. E, por hora, são 44 bebês que nascem de mães adolescentes, sendo que dessas 44, duas tem idade entre 10 e 14 anos. Como não existe relação sexual consentida com menor de 14 anos, este dado nos informa que a cada hora, duas adolescentes brasileiras, vítimas de estupro, entre 10 e 14 anos se tornam mães.

Se hoje meninas estupradas que têm direito à interrupção voluntária da gravidez estão sendo ameaçadas e restringidas em seus direitos, obrigadas a se tornarem mães dos bebês gerados a partir de estupros, quais as consequências da possível aprovação do PL 1904/2024?  Segundo a Fiocruz, pelo menos metade dos estupros ocorrem durante a vida reprodutiva de uma mulher ou pessoa com útero e a probabilidade de que um estupro resulte em gravidez gira em torno de 5%, um dado nada ignorável e que revela três situações gravíssimas e encadeadas. Primeiro, meninas e mulheres brasileiras sofrem estupros diariamente, muitas delas não conseguem o devido acesso à saúde e cuidado por razões que variam do punitivismo de funcionários da saúde pública à ausência de estrutura para atender vítimas de estupro em muitos municípios. Depois, 5% das vítimas engravidam e, por fim, são obrigadas a continuar com a gravidez, quando o sistema de saúde falha novamente. Ao final, tantas delas criam esses filhos, tornando-se mães dos filhos de seus estupradores.

As modificações propostas no PL 1904/2024 alterariam as políticas públicas para atendimento de vítimas de violência sexual de maneira ampla, tornando o aborto legal uma impossibilidade prática nos equipamentos de saúde pública. Nenhuma mulher vítima de estupro poderia se direcionar tranquilamente para um equipamento de saúde depois de um estupro, sob risco de ter registrado que do estupro decorreu gravidez e ser penalizada. Sem poder acessar os equipamentos de saúde, as mulheres não têm acesso a ginecologistas e obstetras, aos tratamentos de profilaxia para prevenção de contração e tratamento de ISTs, inclusive do HIV. Sem este direito, meninas e mulheres não têm acesso a psicólogas e assistentes sociais, não são informadas sobre seus direitos à denúncia e nos casos de violência cometida por um familiar, não encontrariam os meios – como acesso às políticas de abrigo – para se retirar da situação recorrente.

O “massacre dos inocentes”: a propaganda da extrema-direita

As redes sociais constituem o principal elemento de organização da extrema-direita no Brasil hoje e a luta contra o aborto é uma das pautas principais de sua propaganda desde 2018, com cada vez mais as mulheres tomando a frente da luta contra os direitos reprodutivos no país. Nos últimos anos, a Senadora e ex-ministra Damares Alves, já mencionada como defensora da “bolsa estupro”, acusou a esquerda de defender a legalização da pedofilia no Brasil e relacionou, em suas redes sociais, a luta pelos direitos reprodutivos e pela legalização da cannabis com práticas de pedofilia. Damares esteve também envolvida na criação do projeto “Município Amigo da Família”, que procura implementar ações que valorizem a família, a proteção social e o fortalecimento dos laços conjugais, excluindo famílias não heterossexuais e mães solo. Conforme descrito acima, em maio de 2022, quando uma menina de 10 anos, que havia engravidado devido a um estupro, procurou um hospital em seu estado para realizar um aborto, que lhe foi negado, o caso tornou-se matéria de debate em todo país – ainda que o procedimento estivesse previsto na lei e, portanto, em tese, protegido de qualquer “opinião” reacionária. Segundo reportagem publicada pelo jornal Folha de São Paulo, Damares tentou impedir o aborto oferecendo benefícios à família para manter o feto e pressionando as autoridades do estado para evitar o aborto.

Quando o Conselho Federal de Medicina proibiu – contra a legislação vigente – o término da gravidez por meio do procedimento de assistolia em caso de estupro, a ala feminina do partido digital de massas bolsonarista iniciou uma campanha ostensiva nas redes sociais contra o aborto, mas agora com ênfase na assistolia (técnica comprovadamente mais adequada para interrupção da gravidez indesejada em fetos de mais de 22 semanas). Segundo Júlia Zanatta (PL), o ponto é que “estavam banalizando a questão do aborto. A questão não é o aborto, é o limite. Ninguém se importa com a vida do bebê, que pode ser uma mulher”. Ou seja, Zanatta acusa o direito ao aborto, que já é extremamente restrito em comparação à Europa e aos Estados Unidos, de ser uma espécie de “farra feminista”, um comportamento exagerado e, que no final das contas, seria contrário às mulheres por nascer. Distorce, portanto, completamente todo o discurso da luta por direitos reprodutivos.

Num vídeo gravado por Michelle Bolsonaro, a ex-primeira dama menciona a liberação, a partir de um pedido do PSOL, de uma injeção letal para a realização do aborto (ela não diz o nome para que a informação não possa ser conferida) cuja substância não pode ser usada “nem para a eutanásia de animais”. Trata-se da suspensão da decisão supracitada do Conselho Federal de Medicina pelo juiz da Suprema Corte, Alexandre de Moraes, que restaurou a aplicação da lei que prevê a possibilidade de aborto em caso de estupro, sem restrição de tempo. Vestida de preto atrás de um fundo rosa, Michelle Bolsonaro chama a decisão de Moraes de autocrática e afirma que enquanto a lei do aborto atual estiver vigente, crianças “terão uma morte terrível”. A ex-primeira dama, além disso, afirma que “sempre seremos a favor da vida” e termina o vídeo pedindo uma oração, com os braços estendidos e duas bonecas em forma de feto em cada mão, uma branca e uma negra.

A vereadora Ana Campagnolo (PL), em vídeo semelhante, segura uma boneca em forma de feto em suas mãos enquanto se opõe ao PL afirmando que a esquerda quer liberar uma injeção no coração dos bebês “que não é usada nem em eutanásia, nem o sacrifício de animais ou em casos de pena de morte”. Segundo ela, […] um bebê não deve ser torturado e morto por caprichos ideológicos ou pressão financeira de agências internacionais”. Em outra postagem do Instagram, Campagnolo afirma que “gosta de frequentar museus” e, em meio a selfies de gosto duvidoso em frente a obras de arte, passa a comentar o tema do “massacre dos inocentes”, tema de diversos quadros, de Pieter Brueghel a Peter Paul Rubens, nomes que ela não cita, pois sequer deve conhecer. A ideia de “massacre dos inocentes” também é articulada nas formulações jurídicas, identificadas em projetos de lei ou manifestações perante o Judiciário: como já mencionado, a caracterização do “nascituro” como uma pessoa inocente e vulnerável é o que que ensejaria a necessidade de ações do Estado para protegê-lo. O tema também remete ao Antigo Testamento – um dos favoritos da extrema-direita no Brasil, também pelo seu caráter apocalíptico e sanguinário. Campagnolo afirma:

Na história bíblica, o rei Herodes, temendo perder seu trono para Jesus, o novo Rei, ordenou a morte de todos os meninos com menos de dois anos em Belém. Esse episódio cruel ecoa na história de Moisés com o faraó do Egito, que ordenou a morte dos meninos hebreus recém-nascidos para manter seu poder. Hoje, o massacre dos inocentes assume uma nova forma, disfarçado de legislações que relativizam a vida dos bebês através de políticas pró-aborto. Assim como no passado, lideranças políticas utilizam essas práticas para manipulação populacional e interesses econômicos, sacrificando os mais vulneráveis. Precisamos abrir os olhos para essa realidade. Vamos defender a vida desde a concepção e combater esse novo massacre dos inocentes.

Ainda em outro vídeo, sobre Simone Weil (que Campagnolo grafa de forma equivocada, como Veil), a vereadora afirma que embora Weil tenha sido ela própria vítima de um projeto de holocausto, por ter sido uma defensora histórica do aborto no Parlamento Europeu, Weil seria também uma das arquitetas do maior programa de extermínio do mundo, um holocausto silencioso.

Damares, por sua vez, compartilhou um vídeo de @brasilsemaborto que, dentre outros alternava fotos de jovens dançando – uma mulher entre dois homens – com imagens de fotos de dezenas de fetos mortos em baldes sujos, contendo a seguinte narração (feita por um homem):

Nós sofremos, mas sempre a vida segue em frente. Às vezes me pego pensando: como chegamos tão fundo no fosso da humanidade? Quando foi que começamos a negociar vidas inocentes com tamanha falta de pudor? Desde quando se tornou necessário matar bebês no ventre para afirmar uma suposta liberdade? Quando a escravidão pelos nossos próprios prazeres aprisionou a nosso senso humanidade? Quando o medo hedonista de não se fazer viagens que só serão lembradas às quintas-feiras, conseguiu subjugar milênios de instinto materno e paterno? Quando decidimos sacrificar vidas por bens materiais? E o pior. Quando decidimos nos calar diante de tamanha barbárie. Me diga, por favor, quando o medo se tornou mais admirável que a bravura de nos tornarmos bons pais? Podem ter te manipulado ao chamar isso de livre escolha ou controle de natalidade, a solução drástica para uma gravidez acidental. Mas nada, absolutamente nada vai mudar o fato de que o aborto é o assassinato de bebês inocentes.

Damares também tem defendido o aumento da licença maternidade para mães de bebês não saudáveis, que nascem com algum problema de saúde, além da ampliação da licença paternidade. O que há em comum em todas essas propagandas? Em primeiro lugar, todas elas associam aborto ao hedonismo, ao egoísmo e aos abusos de poder. Apresentam a gravidez como algo que é produto de uma vida de prazeres sem limites, de “promiscuidade” – e o aborto como contrapartida dessa vida, um excesso, como disse Júlia Zanatta. Em nenhum momento a palavra estupro aparece nas considerações da extrema-direita. Contra isso, conforme o vídeo postado por Damares, o veredicto é o de que  a vida é dura e que temos que vencer nossas limitações para formar uma família. Além disso, como consta no vídeo gravado por Michelle Bolsonaro, que pede orações para os bebês assassinados, e na postagem de Ana Campagnolo, mobiliza-se a religião para sustentar um neofascismo que tem em seu centro o controle dos corpos das mulheres. Ao comparar o aborto ao holocausto, as antifeministas  associam o feminismo ao nazismo, com o fito de “anular” a crítica da esquerda em relação ao movimento ao qual essas mulheres ultrapassadas estão ligadas. A crítica ao aborto também aparece como uma manifestação do que essa extrema-direita chama de globalismo: parece atender aos interesses de “agências internacionais” e “poderes” que nem sequer são nomeados, mas funcionam como anteparo para qualquer crítica feminista que defenda que o aborto atende aos interesses das mulheres. A propaganda joga com o medo das pessoas de se sentirem enganadas e as empodera com mais ignorância.

É evidente, nessa propaganda, que o PL 1904/24 é uma espécie de atalho para a proibição do aborto de vez no Brasil e mais uma passo na direção da transformação do país numa teocracia – um retrocesso não só para as mulheres (como argumenta o governo ao restringir o tema à pauta de costumes), mas para a própria democracia brasileira. As mentiras contadas por essas mulheres, os vídeos apelativos e cheios de violência (ao mostrar fetos sendo retirados aos pedaços da barriga de uma grávida, as várias simulações surrealistas de aborto que circulam nas redes) deviam ser imediatamente retiradas de circulação e essas mulheres deveriam ser investigadas por atentar contra a lei – como já deveria ter acontecido com Damares, em 2022. A Suprema Corte e o governo deveriam levar a sério as propagandas contra o aborto como o atentado à democracia que são.

A reação do movimento feminista

As manifestações contrárias ao PL 1904/24, especialmente os atos dos últimos dias 13, 15 e 23 de junho por todo o país, demonstram mais uma vez que não se trata de uma “pauta de costumes”. As palavras de ordem “criança não é mãe!” e “estuprador não é pai” revelam que estamos diante de uma questão humanitária e democrática. A discussão retrocedeu a tal nível de perversidade que não estamos nem mesmo falando sobre a legalização do aborto e seus impactos na saúde pública ou na autonomia reprodutiva das mulheres e pessoas que gestam. Estamos lutando para que crianças que não foram protegidas pela sociedade não sejam obrigadas a serem mães de filhos daqueles que as violentaram, para que vítimas de estupro não sejam punidas de forma mais dura que seus estupradores, para que a escolha de uma pessoa gestante com uma gravidez de risco não seja a morte ou a cadeia. Não há “pauta de costumes” quando do outro lado impera a barbárie e desumanidade.

Lula, que deveria agir como chefe de Estado e representar a laicidade da lei, fez questão de emitir sua opinião retrógrada sobre o assunto, revelando que o Partido dos Trabalhadores está na retaguarda, querendo agradar a gregos e troianos. Apesar de estar no governo, o PT ainda permanece reativo às pautas bolsonaristas. São eles que estão determinando o debate público. Além disso, Lula perdeu uma imensa oportunidade de finalmente discutir a questão do aborto no país. Mesmo que isso não resultasse na descriminalização total do aborto, certamente ampliaria o escopo do debate político. A maior parte da população brasileira (66%) é contra o PL e a punição das mulheres que realizam abortos. É preciso mostrar que não há um consenso neofascista no Brasil.

A frase atribuída a Simone de Beauvoir de que “basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados” é frequentemente compartilhada sem a sua continuidade: “Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida.” Continuemos então na defesa de um direito adquirido desde a metade do século passado, tendo como horizonte a sua expansão. Vivas e livres, para que possamos continuar atentas e fortes.

 

Fonte: Boitempo.

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