Por Elissandro Santana

Para muitos é difícil perceber intersecções entre racismo ambiental e perda de biodiversidade, mas ainda que esta não seja uma tarefa tão simples para grande parte da sociedade, as relações existem, são duras, precisam ser explicadas e, principalmente, resolvidas.

Por racismo ambiental, entendam aquilo que a professora Joceneide Cunha, o professor Denys Câmara e eu, no artigo “Racismo ambiental no Brasil”, pontuamos: que aos homens e às mulheres negros/as sempre reservaram os rincões mais inóspitos no Brasil. Que eles/elas foram trazidos/as forçados/as, maltratados/as, humilhados/as através do Atlântico, oriundos/as de várias partes do imenso Continente Africano, e jogados/as nas senzalas da maldição. Muitos/as, inconformados/as, fugiram e formaram os Quilombos (embriões de luta pela liberdade). Tais espaços, até meados do XIX, foram construídos em lugares de difícil acesso, com fins precípuos de evitarem que os andantes em fuga fossem descobertos pelos brancos opressores. No século XIX, com o aumento de libertos e processo maior de urbanização, alguns quilombos foram presentes no meio urbano, no centro e em lugares que a população branca transitava com limitações. Os quilombos representaram, a partir da poesia do sangue, um paradoxo, pois, ao mesmo tempo em que eram castelos frágeis de sonhos, também eram fortalezas simbólicas para o hoje. Alguns destes espaços não eram fixos, pois a busca do senhorio patriarcal pela captura dos viajantes sedentos pela liberdade forçava a fuga constante. Os que não se rebelaram, por medo ou por outros sentimentos ainda mais profundos e sem explicação detalhada, continuaram nas periferias da Casa Grande, na insalubridade, no limite entre a vida e a morte. As reformas urbanísticas do final do XIX e início do XX derrubaram os cortiços e, com isso, boa parte da população negra e pobre passou a ocupar os morros, dentre outros lugares.

Ao condenar a população negra e outros grupos subalternizados às periferias das cidades, os governos, a serviço das elites, contribuíram e contribuem para a destruição de áreas naturais, para a degradação ambiental, para a péssima qualidade de vida das populações pobres, historicamente esquecidas e violentadas, e, principalmente, para a perda da biodiversidade.

À medida que o povo negro e outras minorias são obrigados a se deslocarem, a se afastarem dos perímetros urbanos assistidos pelos serviços públicos e privados, se distanciam dos centros de decisão e, afastados disso, terão que se virar com os escassos recursos para a construção de moradias, quase sempre em espaços degradados ou que serão degradados ambientalmente, não porque querem, mas por necessidade. E logo nesse ponto nos deparamos com o problema do crescimento urbano horizontal, um sério entrave à manutenção das áreas naturais com seus cursos d’água, flora e fauna.

A esta altura da discussão, acredito que muitos/as leitores/as já tenham percebido as relações entre racismo ambiental e perda de biodiversidade, por isso, talvez, a partir deste ponto ficará mais fácil estabelecer outras pontes. Antes, porém, faz-se necessário dizer que esta, de fato, é uma discussão complexa, por isso, exige reflexões e diálogos em torno de campos conceituais plurais e transversais. Dentre estes pontos, é preciso, com urgência, revisitar conceitos como raça, racismo e conservação da biodiversidade (a partir dos pilares da diversidade de espécies, da diversidade genética e da diversidade de ecossistemas), além de debates em torno de saberes que orbitam campos como conflitos ambientais, justiça social, justiça ambiental e garantias constitucionais socioambientais.

Para o entendimento do conceito de raça e outras questões nesta linha, sempre que discuto o que é racismo ambiental, sugiro leituras em torno da seguinte tese “Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulista”, de Lia Vainer Schucman, autora que se vale de grandes autores, dentre eles, Munanga, para nos apresentar a ideia de que raça e racialização do mundo são, desde então, uma das explicações encontradas pela humanidade para classificar e hierarquizar os grupos humanos. Que no século XVIII, a cor da pele foi considerada um dos critérios dentro desse processo de classificação pela racialização e, dessa forma, a espécie humana ficou dividida em três raças, que permanecem até hoje no imaginário coletivo: branca, amarela e negra. No século XIX, acrescentaram ao critério de cor outros critérios morfológicos, como forma do nariz, lábios, queixos, ângulo facial etc.

Para falar de meio ambiente, pontuo que precisamos, urgentemente, ultrapassar a ideia equivocada de que o ambiente só diz respeito ao meio natural e tudo o que ele comporta. O brasileiro precisa e deve entender que meio ambiente se refere às matas, aos rios, à flora, à fauna e a outros fatores bióticos e abióticos. Ademais, discuto que somos parte do meio ambiente, rompendo a visão de que o meio ambiente é algo distante de nós, e ao fazer isso, valho-me da ideia de que merecemos viver bem, mas, para isso, faz-se necessário compreender princípios como harmonia, ética biocêntrica, integração entre tudo e todos, pois somente assim o discurso da sustentabilidade deixará de ser uma condição verbal para se transformar em uma práxis, em uma realidade.

Nesse ponto do debate, coloco em cena a Constituição Federal, para dizer que não somente as elites merecem ocupar os espaços mais saudáveis ambientalmente, mas todos, pois nesse ponto residem justiça e reparo sócio-étnico-racial-ambiental. Por lei, sabe-se que todos devem ter acesso a ambientes saudáveis, mas, infelizmente, isso não tem se cumprido, o que é uma afronta à Constituição.

A grande verdade é que a maior parte da população negra (e outras categorias marginalizadas socialmente) foi condenada histórico-político-economicamente aos espaços degradados, ou que serão degradados. A partir daqui, um ponto se destaca – nesses espaços de destruição ambiental e, consequentemente, de degradação ecológica, a própria existência se compromete. Em meio a tantas injustiças sociais, outras injustiças tomam corpo e a exploração da terra é uma delas.

No que concerne aos direitos-garantias a um ambiente saudável e justo, a Constituição Federal, no Art. 225 assegura a todos/as o direito à dignidade socioambiental. A partir do referido artigo, todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à Coletividade, o dever de defendê-lo e preservá-lo para as gerações presentes e futuras. Nesse artigo, fala-se sobre a proteção da fauna e da flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade. Nesse sentido, pode-se dizer que quando o Estado condena a população negra e outras minorias ao degredo do desenvolvimento, condena também a mãe natureza, o futuro de todos/as e se condena. Nessa linha, pode-se afirmar que o combate ao racismo ambiental pode contribuir enormemente para a conservação da biodiversidade e para o respeito à vida em todos os sentidos, portanto, combater as diversas formas de racismo, dentre elas, o racismo ambiental é proteger a vida, é garantir uma vida sustentável às presentes e futuras gerações, em consonância com os pilares da sustentabilidade.

Quase a guisa de conclusão, não podemos esquecer que constitucionalmente temos a obrigação de combater toda e qualquer forma de racismo e no combate ao racismo ambiental ganhamos em diversas frentes, pois ao combatê-lo, além de lutarmos contra as injustiças para com o povo negro e outras minorias sociais, explorados historicamente pela política e elite escravocratas do atraso1, faremos justiça ambiental, impedindo que mais espaços-vidas sejam degradados. Enfim, o racismo ambiental é um câncer que precisa passar por quimioterapias e radioterapias, processos ionizantes que destruirão as raízes desse mal colonial que nos assola há mais de 5 séculos.

Referências

MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. Acesso em 24 de agosto de 2016.

SCHUCMAN, Lia Vainer. Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulista. São Paulo, 2012.

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Acesso em 2o de outubro de 2021.

 

1 Aqui uso o termo, ipsis litteris, na perspectiva de Jessé de Souza.

Elissandro Santana é  Professor da faculdade Nossa Senhora de Lourdes, mestrando em Conservação da biodiversidade e desenvolvimento sustentável, pela ESCAS – IPÊ, membro do Grupo de Estudos da Teoria da Dependência – GETD, coordenado pela Professora Doutora Luisa Maria Nunes de Moura e Silva, revisor da Revista Latinoamérica, colunista da área socioambiental, latino-americanicista e tradutor do Portal Desacato.

 

Fonte: Desacato.

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