Por José Luís Fiori

Prevalece a consciência de que as políticas neoliberais não conseguem atender à necessidade de um desenvolvimento econômico acelerado, nem muito menos a urgência da eliminação da miséria e redução da desigualdade social.

“Qualquer país ou povo que se comporte bem, pode contar com nossa amizade cordial. Se a nação demonstra que ela sabe agir com razoável eficiência e decência nos assuntos sociais e políticos, se ela sabe manter a ordem e paga suas dívidas, ela não precisa ter medo da interferência dos Estados Unidos. Um mau comportamento crônico, ou uma impotência que resulte no afrouxamento dos laços de civilidade social, podem requerer, na América ou em qualquer outro lugar do mundo, a intervenção de alguma nação civilizada, e no caso do Hemisfério Ocidental, a adesão dos Estados Unidos à Doutrina Monroe, pode forçar os Estados Unidos a exercer um poder policial internacional, mesmo que seja relutantemente” (Theodor Roosevelt, discurso feito no Congresso Americano, em 6 de dezembro de 1904. In: Pratt, W. J. A History of United States Foreign Policy, p. 417).

Ao começar a terceira década do século XXI, a esquerda e as forças progressistas estão sendo chamadas de volta ao governo de vários países importantes da América Latina. O caso mais recente é o do Chile, com a vitória e a posse do jovem presidente Gabriel Boric – no dia 11 de março de 2022 – liderando uma coalizão de forças que reúne todos os velhos partidos e as novas organizações da esquerda chilenas. Algo sem precedentes na história de uma país que se caracteriza por sua extraordinária inventividade política, desde os tempos do seu governo de Frente Popular, na década de 1930.

Mas antes de Boric, as forças progressistas latino-americanas já haviam vencido as eleições e assumido o governo no México, Argentina, Bolívia, Peru e em Honduras. E o mais provável é que essa tendência se confirme no Brasil, e até mesmo na Colômbia, nas próximas eleições presidenciais de 2022, num momento em que cresce em todo o continente latino-americano a consciência de que as políticas neoliberais não conseguem atender à necessidade de um desenvolvimento econômico acelerado, nem muito menos a urgência da eliminação da miséria e redução da desigualdade social. É um momento também em que se aguça a consciência de que o velho modelo nacional-desenvolvimentista esgotou seu potencial, depois de completar a agenda da Segunda Revolução Industrial e perder o apoio norte-americano no final dos anos 1970.

Assim mesmo, não existe uma resposta fácil, nem uma solução simples para a atual crise da América Latina. Nesse contexto, a América Latina precisa se repensar radicalmente para poder redefinir sua estratégia de desenvolvimento, tendo clara sua localização geográfica e sua posição hierárquica dentro do “hemisfério ocidental”, onde a potência dominante foi sempre os Estados Unidos, apoiados pela Grã-Bretanha, desde o momento da formulação da Doutrina Monroe, em 1823.

Depois da Segunda Guerra Mundial e até a década de 1970, os Estados Unidos patrocinaram na sua “zona de influência” um projeto de tipo “desenvolvimentista” que prometia rápido crescimento econômico e modernização social, como caminho de superação do subdesenvolvimento latino-americano. Mas depois da sua crise dos anos 1970, e em particular na década de 1980, os norte-americanos mudaram sua estratégia econômica internacional e abandonaram definitivamente seu projeto e patrocínio desenvolvimentista.

Desde então, passaram a defender, urbe et orbi, um programa econômico de reformas e políticas neoliberais conhecido pelo nome de “Consenso de Washington”, que se transformou no núcleo de sua retórica vitoriosa depois do fim da Guerra Fria. Um programa que combinava a defesa do livre-mercado com a desregulação financeira e a desestatização das economias que haviam seguido o programa desenvolvimentista coordenado pelo Estado. Isto aconteceu nas décadas de 1980 e 1990 do século passado, quando o neoliberalismo se transformou no pensamento hegemônico de quase todos os partidos e governos da América Latina, incluindo os partidos socialistas e social-democratas. Mais à frente, na segunda década do século XXI, os Estados Unidos radicalizaram ainda mais suas propostas globalitárias voltadas para sua periferia latina e mundial, agora já com viés golpista e autoritário, e sem nenhum tipo de horizonte social ou promessa de um futuro com maior grau de maior justiça e igualdade.

O fracasso dessa nova rodada ultraliberal é que explica em grande medida a volta da esquerda ao governo de alguns dos principais países do continente latino-americano. Uma boa hora para reler, analisar e repensar a história de longo prazo da esquerda e de suas experiências de governo na América Latina.

De forma muito sintética, pode-se afirmar que tudo começou com a proposta revolucionária do Plano Ayala, apresentado em 1911 pelo líder camponês da Revolução Mexicana, Emiliano Zapata. Zapata propunha a coletivização da propriedade da terra e sua devolução à comunidade dos índios e camponeses mexicanos. Zapata foi derrotado e morto, mas seu programa agrário foi retomado alguns anos depois pelo presidente Lázaro Cárdenas, um militar nacionalista que governou o México entre 1936 e 1940 e criou o Partido Revolucionário Institucional (PRI), que governou o país durante quase todo o século XX.

O governo de Cárdenas fez a reforma agrária, estatizou as empresas estrangeiras produtoras de petróleo, criou os primeiros bancos estatais de desenvolvimento industrial e de comércio exterior da América Latina, investiu em infraestrutura, fez políticas de industrialização e proteção do mercado interno mexicano, criou uma legislação trabalhista, tomou medidas de proteção social dos trabalhadores e exercitou uma política externa independente e anti-imperialista.

O fundamental dessa história, no entanto, para a esquerda latino-americana, é que esse programa de políticas públicas do governo de Cárdenas se transformou, depois dele, numa espécie de denominador comum de vários governos – “nacional-populares” ou “nacional-progressistas” – como foi o caso de Perón, na Argentina; de Vargas, no Brasil; de Velasco Ibarra, no Equador; e de Paz Estensoro, na Bolívia. Nenhum deles era socialista, comunista ou social-democrata, nem mesmo de esquerda; e no caso argentino, teve até mesmo um forte componente direitista, mas suas propostas políticas e posições no campo da política externa se transformaram numa espécie de paradigma básico que acabou sendo adotado e apoiado por quase toda a esquerda reformista latino-americana, pelo menos até 1980.

Em grandes linhas, foram esses mesmos ideais e objetivos que inspiraram a revolução camponesa boliviana de 1952; o governo democrático de Jacobo Arbenz, na Guatemala, entre 1951 e 1954; a primeira fase da revolução cubana, entre 1959 e 1962; o governo militar reformista do general Velasco Alvarado, no Peru, entre 1968 e 1975; e o próprio governo de Salvador Allende, no Chile, entre 1970 e 1973. No caso de Cuba, entretanto, a invasão de 1961 e as sanções americanas apressaram a opção socialista, levando o governo de Fidel Castro à coletivização da terra e a estatização e planejamento central da economia. O mesmo modelo que orientaria, mais tarde, a primeira fase da revolução sandinista da Nicarágua, de 1979, e o próprio “socialismo do século XXI”, proposto originalmente pelo ex-presidente da Venezuela, Hugo Chávez.

Hoje, entretanto, o continente latino-americano soma muitos desses desafios e projetos do passado que ainda não foram realizados, com uma nova agenda de problemas impostos pelas transformações econômicas e geopolíticas do sistema internacional, depois do fim da Guerra Fria, mas em particular nas duas primeiras décadas do século XXI, quando a China se transformou na segunda maior potência econômica do mundo e passou a ter papel econômico central como grande compradora das economias exportadoras latino-americanas, e quando a Rússia voltou a ocupar seu lugar como segunda maior potência militar do mundo, com uma presença cada vez mais ativa como fornecedora de armamento e suporte logístico e militar para vários governos da América Latina.

Nesse novo contexto mundial e latino-americano, uma coisa segue sendo verdadeira: a viabilidade futura de uma alternativa latino-americana mais autônoma e soberana seguirá dependendo muitíssimo das escolhas feitas pelo Brasil, que está neste momento tão ou mais dividido que o resto do continente, entre duas grandes alternativas político-ideológicas e econômicas que transcendem a conjuntura política imediata e devem se manter presentes e polarizadas mesmo depois que o Brasil supere os estragos mais dramáticos produzidos pelos seu atual governo de extrema direita.

De um lado, do ponto de vista econômico, está a proposta liberal apoiada pelos “mercados” e pelos grandes investidores financeiros nacionais internacionais. Se o Brasil seguir este caminho, deverá se manter na sua condição secular de uma sociedade periférica e desigual, exportadora de matérias-primas, alimentos e commodities, tendo como seu melhor horizonte transformar-se numa “periferia de luxo” das grandes potências compradoras do mundo.

Há, no entanto, a proposta, a capacidade e a possibilidade de construir um caminho diferente e novo dentro da América do Sul: o Brasil assumindo a posição de “locomotiva continental” aproveitando-se de sua autossuficiência energética e alimentar, e de sua excelente dotação de recursos naturais estratégicos para construir uma economia sustentável, com uma nova indústria de alto valor agregado articulada diretamente com seu próprio setor produtor de alimentos e commodities de alta produtividade, e tendo como objetivo estratégico central a construção de uma sociedade mais homogênea, igualitária, soberana e democrática. Tendo claro que nada disto será possível sem a intervenção e a orientação estratégica de um Estado fortalecido por um amplo apoio da sociedade brasileira.

Por outro lado, do ponto de vista de sua inserção estratégica e militar no novo contexto geopolítico mundial, o Brasil pode seguir sendo um país vassalo dos Estados Unidos, encarregado pelos norte-americanos da tutela militar de seus vizinhos. Ou pode assumir de uma vez por todas o comando de sua própria soberania, devolvendo os militares às suas funções constitucionais e levando à frente uma política externa que tenha como objetivo central aumentar a capacidade de decisão autônoma do país, através de uma política hábil e determinada de complementaridade e competitividade crescente com os Estados Unidos.

De qualquer forma, uma coisa é certa: tanto na disjuntiva econômica, como na estratégico-militar, a opção autônoma aponta para um caminho muito mais longo e árduo do que o caminho “natural” dos mercados e da subordinação estratégica aos EUA. Por isso mesmo, a construção deste caminho alternativo soberano, sustentável, igualitário e democrático supõe a existência de uma coalizão de poder suficientemente forte e com capacidade de sustentar, por um tempo prolongado, um projeto claro de afirmação geopolítica com a construção simultânea de uma nova hegemonia ideológica, no Brasil e na América Latina.

*José Luís Fiori é professor do Programa de pós-graduação em Economia Política Internacional da UFRJ. Autor, entre outros livros, de O Poder global e a nova geopolítica das nações (Boitempo).

 

Fonte: A Terra é Redonda.

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