Por Jéssica Costa Estigaribia
O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, em sessão virtual concluída no dia 30 de abril, julgou prejudicada a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5581. A ação, ajuizada pela Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep), questionava dispositivos da Lei 13.301/2016, que trata da adoção de medidas de vigilância em saúde relativas aos vírus da dengue, chikungunya e zika.
A ADI foi ajuizada juntamente com Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), na qual a entidade alegava diversas omissões do Poder Público e pedia a declaração de inconstitucionalidade do enquadramento da interrupção da gestação em relação à mulher infectada pelo zika vírus no artigo 124 do Código Penal.
Segundo entendimento da Relatora Carmen Lúcia, acompanhado pelos demais Ministros, a Anadep não tem legitimidade para a propositura da ADPF. A discussão foi barrada então por questões processuais, eis que a jurisprudência do STF somente reconhece a legitimidade das entidades de classe nacionais para o ajuizamento de ação de controle abstrato se houver nexo de afinidade entre os seus objetivos institucionais e o conteúdo dos textos normativos, o que se concluiu ser inexistente no presente caso.
Nessa situação, portanto, sequer houve análise do mérito sobre a (in)constitucionalidade da criminalização do aborto. Mas cumpre analisar qual o cenário atual sobre o assunto no Brasil e como sua evolução vem ocorrendo lentamente.
Atualmente, o aborto é definido como crime contra a vida no Código Penal. O artigo 124 se aplica à gestante e prevê pena de detenção de 1 a 3 anos para a mulher que realiza o autoaborto ou consente na realização do aborto. Já ao terceiro que provoca o aborto com o consentimento da gestante, a pena é de reclusão, de 1 a 4 anos (art. 126). E para aquele que o provoca sem o consentimento da mulher, a pena prevista é de 3 a 10 anos (art. 125).
Nossa legislação pátria prevê apenas algumas situações em que o aborto não é punido (art. 128). A primeira hipótese diz respeito ao denominado aborto necessário ou terapêutico, realizado quando não há outro meio de salvar a vida da gestante. O segundo inciso, por sua vez, versa sobre o aborto sentimental, exceção prevista para gravidez decorrente de estupro.
Ainda, o Supremo Tribunal Federal admitiu mais uma exceção no julgamento da ADPF 54: a antecipação terapêutica do parto de fetos anencefálicos. Ante a incompatibilidade da anencefalia com a vida extrauterina, em atenção ao princípio da dignidade da pessoa humana, no caso de a gestante carregar um feto sem qualquer perspectiva de vida, optou-se também pela não punição. A conclusão foi a de que a interrupção da gravidez de feto anencefálico é conduta atípica.
Quando do julgamento do ADPF 54, a ministra Carmen Lúcia se pronunciou de forma favorável à descriminalização do aborto, lembrando o sofrimento da mãe que prepara o corpo do filho morto para ser sepultado, citando, inclusive, um trecho de Guimarães Rosa:
Não há bem jurídico a ser tutelado pela norma penal que possa justificar a impossibilidade total de a mulher fazer a escolha sobre a interrupção da gravidez. “Quando o berço se transforma num pequeno esquife, a vida se entorta” – Guimarães Rosa.
Em outra oportunidade, a 1ª Turma do STF, no julgamento do HC 124306, mencionou a possibilidade de se admitir uma quarta exceção: a interrupção da gravidez no primeiro trimestre da gestação provocado pela própria gestante ou com o seu consentimento também não seria crime.
Segundo o Ministro Roberto Barroso, para ser compatível com a Constituição, a criminalização de uma conduta exige o preenchimento de três requisitos: a) este tipo penal deverá proteger um bem jurídico relevante; b) o comportamento incriminado não pode constituir exercício legítimo de um direito fundamental; e c) deverá haver proporcionalidade entre a ação praticada e a reação estatal. Em seu voto, o Ministro acertadamente entendeu que a conduta de praticar aborto com consentimento da gestante no primeiro trimestre da gravidez não pode ser punida como crime porque não preenche o segundo e terceiro requisitos.
Para justificar seu entendimento, invocou diversos argumentos pertinentes, dentre eles a violação à autonomia da mulher, à integridade física e psíquica, aos direitos sexuais e reprodutivos da mulher, à igualdade de gênero, bem como a discriminação social e impacto desproporcional sobre mulheres pobres. O critério temporal de três meses justifica-se pela premissa científica de que durante esse período o córtex cerebral (que permite que o feto desenvolva sentimentos e racionalidade) ainda não foi formado e não há qualquer potencialidade de vida fora do útero materno.
Contudo, referida decisão foi tomada pela 1ª Turma do STF, em caso concreto no qual se analisava um habeas corpus impetrado por dois médicos que foram presos em flagrante no momento em que supostamente estariam realizando um aborto com o consentimento da gestante. Nesse caso, portanto, a discussão se limitou a analisar se seria cabível a prisão preventiva dos médicos ou não. Até o momento, não há qualquer decisão do Plenário a respeito e o aborto continua sendo criminalizado no Brasil.
Enquanto isso, um milhão de abortos ocorrem todos os anos no país. O dado foi divulgado pelo Ministério da Saúde em audiência pública para debater a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 442), proposta em março de 2017 pelo PSOL em conjunto com o ANIS – Instituto de Bioética, no qual requerem a descriminalização da interrupção voluntária da gestação até a 12ª semana.
Segundo estudo da Organização Mundial de Saúde, restringir o acesso ao procedimento não reduz o número de abortos realizados. Em países onde o aborto é completamente proibido ou permitido somente no caso de a vida ou a saúde física da mulher estar em risco, apenas um em cada quatro abortos é seguro. Em países onde o aborto é legal em termos mais amplos, aproximadamente nove entre dez abortos são realizados de maneira segura.
Nesse sentido, ressalta Flávia Piovesan que o aborto figura como a 4ª causa de morte materna no Brasil, sendo sua vítima preferencial a mulher de baixa renda. A legislação repressiva-punitiva tem impacto, sobretudo, na vida de mulheres de baixa renda que, destituídas de outros meios e recursos, ora são obrigadas a prosseguir na gravidez indesejada, ora sujeitam-se à prática de aborto em condições de absoluta insegurança. As mulheres que têm recursos financeiros são atendidas de modo seguro, com qualidade e sem risco para sua saúde e vida, enquanto mulheres economicamente desfavorecidas continuam a submeter-se ao aborto clandestino e inseguro.
Diante desses dados, qual função estaria a criminalização do aborto exercendo? Existente a proibição, não se diminui o número de abortos. Mas o Estado retira da mulher a possibilidade de submissão a um procedimento médico seguro. E, em um país desigual como o nosso, sabemos quem morre. O direito à vida tem classe social.
O Comitê de Direitos Humanos da ONU, em sua Recomendação Geral de n° 24, preconiza a alteração da legislação penal de seus países-membros, a fim de que esses abandonem a punição de mulheres que praticam o aborto:
Os Estados-parte devem, igualmente, em particular:
(..).c) Priorizar a prevenção à gravidez não desejada mediante o planejamento familiar e a educação social e reduzir as taxas de mortalidade derivadas da maternidade, por meio de serviços de maternidade sem risco e assistência pré-natal. Na medida do possível, deverá ser alterada a legislação sobre criminalização do aborto, de forma a abolir as medidas punitivas impostas a mulheres que tenham sido submetidas a abortos.
E por que então no Brasil continuamos engatinhando na questão? Por que em um país no qual 5,5 milhões de crianças não tem o nome do pai no registro e 11 milhões de mães solo vivem abaixo da linha da pobreza continuamos focados em punir a mulher por uma escolha que diz respeito ao seu próprio útero?
Vimos recentemente Jair Bolsonaro afirmar que enquanto fosse Presidente, não haveria aborto. A frase foi proferida após uma reunião de crianças comandadas pelo padre Pedro Stepien, na frente do Palácio da Alvorada, que clamavam para que não existisse aborto, ante a pendência do julgamento da ADI 5581, acima mencionada.
Não custa lembrar que o Brasil, como Estado oficialmente laico, deve garantir que nenhuma religião influenciará suas decisões. Embora proteja a liberdade de culto religioso, deve garantir a não interferência de nenhuma religião em matérias sociopolíticas e econômicas.
Assim, não é razoável que um Estado que se diz laico se mantenha alienado à situação atual do Brasil em razão da pressão de grupos religiosos, recusando-se a analisar e aprovar mudanças na legislação sobre a legalização do aborto que atenda aos interesses públicos.
No entanto, continua sendo nítida a negação ou ignorância sobre a realidade que domina não apenas o Presidente, mas grande parte da sociedade: os abortos ocorrem e não há legislação ou religião que possa evitar isso. O que podemos, de fato, é evitar que mais mulheres morram em decorrência de procedimentos inseguros e implementar políticas públicas de acesso à informação, à saúde e aos métodos modernos de contracepção. Qualquer outra estratégia é ilusória.
Jéssica Costa Estigaribia é graduada em Direito. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, conclusão em dezembro de 2015. Especialista em Direito Constitucional. Pós-graduação no Instituto Damásio de Direito, conclusão em fevereiro de 2019.
Fonte: Justificando.