Por Bolívar Torres
Texto publicado em 1906 faz ataques frontais à sociedade escravocrata e ecoa pautas antirracistas da atualidade.
Não é um acaso que, entre os 200 contos de Machado de Assis, o miúdo “Pai contra mãe” acabe de ser contemplado com uma edição só para ele, lançada pela Cobogó. Até hoje, vale lembrar, esta distinção foi reservada a poucas histórias curtas do escritor. Publicado originalmente em 1906 dentro da coletânea “Relíquias da Casa Velha”, o texto traz à tona um Machado de Assis mais frontal em seus ataques às perversidades da escravidão.
Após décadas sendo acusado de se omitir diante do assunto — e até mesmo de trair as suas origens africanas —, o Bruxo do Cosme Velho foi reabilitado recentemente como um autor que soube, sim, se posicionar. No contexto atual, em meio ao fortalecimento de pautas antirracistas, este Machado ganha cada vez mais destaque nas universidades e nas livrarias. Se em geral o escritor abordou a escravidão de forma sinuosa, em “Pai contra mãe” ele foi direto na ferida.
A premissa fala por si só: com um filho a caminho e tendo fracassado em todo tipo de trabalho, um homem desesperado por sustento se converte em caçador de escravizados. Ele persegue e captura uma fugitiva grávida, que lhe implora por clemência. No fim, a mulher aborta e é devolvida ao senhor que a escravizou. A frase final do caçador é reconhecida hoje como uma das mais impactantes da literatura brasileira: “Nem toda criança vinga…”
— Hoje, é impossível ler Machado sem reconhecer em sua obra uma crítica decisiva ao funcionamento da sociedade escravocrata — diz José Fernando Peixoto de Azevedo, dramaturgo e professor da Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo, que assina um dos textos complementares da edição. — Em uma perspectiva tradicional, podemos até dizer que a figura do escravizado não seja protagonista na literatura de Machado. Mas, em quase tudo que escreveu, o autor explicita a lógica de violência da classe dominante. Mesmo quando ele não tematiza a escravidão, ele a mostra como algo estruturante.
Os dois posfácios que fecham a edição (escritos por Azevedo e Bianca Santana) buscam conexões do conto com questões urgentes do Brasil contemporâneo, como tentativas de controle do corpo das mulheres e assassinatos de crianças negras pela polícia. Na complexidade de seu narrador onisciente, Machado dá espaço a esse tipo de paralelo. Publicado 18 anos após o fim da escravidão, o texto sugere que a mentalidade escravocrata não desapareceu no país. Adaptou-se inventando outras modalidades.
— Apenas dois anos antes de morrer, Machado sente necessidade de voltar à escravidão para dizer que ela não passou — observa Azevedo. — Se ele a devolve para o contexto da República, é porque a naturalização da violência permanece. Nesse sentido, vejo-o como um conto fundador do pensamento negro sobre o presente. Ele volta no tempo e fica preso, como se dissesse: “Deu ruim.”
‘Vale por três manifestos abolicionistas’
Ao longo das décadas, Machado de Assis já foi descrito como branco e negro, machista e feminista, beletrista e revolucionário, alienado e engajado. Como o escritor fez da ambiguidade e ironia o motor de sua obra, esses diferentes Machados convivem em harmonia. “Pai contra mãe”, aliás, é um caso representativo desse jogo. Autor de “Machado de Assis, o escritor que nos lê”, que analisa a recepção da obra do escritor pela crítica e pelos leitores, Hélio Seixas lembra as diferentes interpretações do conto.
— Em 1906, o crítico Medeiros e Albuquerque disse o seguinte: “O interessante, nas cenas em que se referem a episódios do tempo da escravidão, é sentir como essa época nos parece remota, perdida em um passado indefinido.” Ou seja, ele leu o conto ao pé da letra, como se a escravidão de fato fizesse parte do passado, e isso há pouco menos de 20 anos do 13 de maio de 1888! Carlos Drummond de Andrade, na década de 1980, disse coisa muito diferente, que esse conto “vale por três manifestos abolicionistas”.
Professor da USP, Hélio Seixas vê uma evidenciação da afrodescendência ou da negritude de Machado de Assis no meio acadêmico. Isso se dá, acredita, pela seleção e valorização de textos em que o autor trata mais diretamente dessas questões. O próprio fato de hoje haver um livro dedicado apenas a “Pai contra mãe” indicaria, segundo ele, a importância da escravidão e das relações raciais nas leituras atuais.
— Tornou-se leitura obrigatória em quase todos os cursos que tratam de Machado de Assis — diz Seixas. — Uma coletânea atual do autor que não inclua esse conto, além de “Mariana” e “O caso da vara” (outros textos que tematizam a escravidão), provavelmente será considerada incompleta.
Seixas está à frente de um ambicioso projeto: reeditar na ordem cronológica os 26 livros publicados por Machado em vida. A coleção, que começa a sair este ano pela Todavia, permite acompanhar um engajamento progressivo, mas não uniforme.
— No conjunto, é possível notar uma enorme coerência, mas também hesitações, retomadas, repetições e contradições — diz Seixas.
Capoeirista da palavra
A reafirmação da negritude de Machado deve muito ao trabalho do pesquisador Eduardo Duarte de Assis. Quando seu “Machado de Assis afrodescendente” foi lançado, em 2007, havia surpresa com o autor sendo tratado como negro. A frase do crítico americano Harold Bloom de que ele seria “o maior literato negro da história universal” provocava certo choque, lembra Assis. Agora, o cenário é outro. Em 2020, o livro ganhou uma terceira edição ampliada que redimensiona ainda mais a atuação de Machado na escravidão.
De acordo com Assis, faltou aos estudiosos se concentrarem mais nos textos que o Bruxo publicou com pseudônimos na imprensa abolicionista. Ele nota que, de acordo com a biografia de Raimundo Magalhães Júnior, Machado teria sido sócio da Gazeta de Notícias, principal veículo abolicionista do Rio. Mas, por ser funcionário público e temer represálias, o autor escondia seu nome.
— Dizem que a sociedade na Gazeta nunca foi comprovada, mas o biógrafo não teria incluído a informação se não tivesse uma fonte confiável — diz Assis. — A crítica canônica se detém nos romances de Machado, mas isso é uma leitura pela metade. Ele foi um homem de imprensa. Escrevia contra a escravidão em um jornal que vendia 23 mil cópias na década de 1870 (para cerca de 275 mil habitantes, segundo o Censo de 1872).
Foram mapeados até hoje 23 pseudônimos de Machado, mas estudos ainda não finalizados indicam que o número poderia chegar a 80. Mesmo se escondendo em outros nomes, o escritor mantinha seu estilo sinuoso ao denunciar as distorções da classe dominante. Para Assis, era uma espécie de “capoeirista da palavra”. Dava o golpe sorrindo.
— Muitos acreditaram que ele estava jogando capoeira quando na verdade ele estava lutando — observa o pesquisador. — Machado era especialista em fazer uma espécie de poética da dissimulação.
Muito além da bandeira
Em 2015, surgiu outro sinal de que Machado se empenhara na abolição. Ele foi identificado em uma foto da missa campal que celebrou a assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel, em 17 de maio de 1888, no Rio de Janeiro (em destaque na capa desta edição). A presença do escritor no evento era, até então, desconhecida dos biógrafos.
Ainda que Machado não possa mais ser considerado um abolicionista tardio, nem por isso sua obra deveria ser pega como “bandeira”, diz o escritor e jornalista Sérgio Rodrigues — que lançou, em 2022, “A vida futura”, romance que transporta Machado e José de Alencar ao Rio atual. De volta ao mundo dos vivos, o autor acaba abraçando uma reconciliação com a raça. Encanta-se com uma pessoa não binária que mora na Rocinha, projetando nela uma espécie de futuro do Brasil.
— O tratamento que Machado deu a questões centrais como a escravidão era muito sofisticado para ser entendido. A sua obra era complexa demais para virar bandeira, mas por isso mesmo foi mais longe que as outras. Acho que sua figura vive um momento de passagem. Considero importante a ênfase em um Machado negro, é algo que precisava ser feito. Mas, com o tempo, a tendência é se chegar a um personagem mais complexo e multifacetado, esse poço de contradições que é também o maior personagem da literatura brasileira.
Fonte: O Globo.