Por Almir Felitte
Nos últimos meses, ganhou força o debate acerca de uma PEC da segurança pública do governo Lula através do ministro da Justiça e da Segurança Pública, Ricardo Lewandowski. Não oficializada até agora em qualquer documento, não temos muito mais informações sobre ela. Para falarmos aqui, nos baseamos, portanto, em entrevistas do ministro que explicitam algumas de suas diretrizes, bem resumidas em um artigo que ele publicou no Conjur.
Ao que tudo indica, a PEC deve se desdobrar em 3 grandes eixos: a efetiva criação de um SUSP (Sistema Único de Segurança Público) coordenado pela União; o aumento da competência da União para legislar sobre segurança pública e sistema prisional; e o aumento de competências da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal.
A criação do SUSP
No primeiro ponto, a União enfim reconhece: o SUSP não existe na prática, só mesmo na lei. E mesmo a lei (13.6715/18) tem seus vários buracos, sem boa delimitação de liderança em seus processos decisórios e sem a criação de mecanismos efetivos de controle sobre a atividade policial. Para usar as palavras de Luiz Eduardo Soares, um SUSP “anêmico”, que compila princípios desejáveis sem garantir os meios que os tornem realizáveis.
Um erro que já vivemos com o Estatuto Geral das Guardas Municipais, que, apesar de ser o regulamento policial mais avançado da história do país em relação a princípios cidadãos e policiamento comunitário, sem um efetivo mecanismo federal que mantivesse a coesão de sua aplicação, acabou sendo, na prática, deformado pelas diversas administrações municipais do país.
É importante, portanto, que, para além dos desejos de integração nacional, o SUSP venha no sentido de estabelecer uma maior rigidez em certos princípios mais gerais da segurança pública, principalmente nos que se referem às garantias cidadãs. Ele deve servir para evitar, por exemplo, outra situação humilhante como a do início do ano, quando o governo paulista declarou que pensaria se aceitaria ou não as diretrizes nacionais para o uso de câmeras corporais por seus policiais.
Condicionando o repasse orçamentário e o controle sobre o Fundo Nacional de Segurança Pública, se o SUSP se efetivar como uma forma de realocar os recursos dos demais entes federativos, evitando gastos tendentes à militarização das forças policiais, revertendo-os para o policiamento preventivo e comunitário e para mecanismos de controle sobre a atividade policial, já será uma grande vitória.
União com mais poder, mas para quê?
Igualmente importante na efetivação do SUSP é a necessidade de integração nacional. Realmente, a transnacionalidade da questão da segurança pública é um problema que se impôs ao país. A natureza do crime organizado (principalmente do PCC) e a internacionalização do sistema financeiro impõe que as soluções para a violência sejam mais do que locais. Além disso, o problema das milícias e da violência policial deve impor, cada vez mais, a federalização de investigações e de processos criminais que envolvem diretamente agentes da segurança pública no país.
Assim, faz sentido que a União concentre um pouco mais das atribuições referentes à segurança pública e ao sistema prisional. Mas essa concentração não pode se dar só com vistas ao caráter repressivo da segurança pública. Existem outras questões estruturais que merecem a atenção da União nesse processo.
Para além da criminalização das drogas, que possibilitou o surgimento de um mercado econômico ilegal altamente lucrativo, o outro pilar fundamental que sustenta o crime organizado é o superencarceramento. É em presídios superlotados por pessoas pobres, que, em sua maioria (comprovadamente) esmagadora, não cometeram crimes com violência nem pertencem a nenhuma quadrilha, que as facções encontram o ambiente vulnerável mais perfeito para recrutar sua mão de obra.
Quase um milhão de presos são colocados em prisões superlotadas nas quais mínimas condições de saúde, higiene, alimentação e lazer só podem ser acessadas de forma privada, por familiares que vêm de fora. Muitas vezes, esses familiares ou os próprios presos recorrem às facções, que garantem o frete de ônibus para visitas em presídios distantes e a venda dos chamados “jumbos”, kits com itens de primeira necessidade permitidos nos presídios. Assim se forma um ciclo em que o preso, por dívida ou por proteção, acaba se filiando a uma facção para garantir coisas mínimas, já que o Estado não o faz.
Embora a União tenha competência exclusiva para legislar sobre matéria penal e processual penal, ela divide com os estados a competência para legislar sobre direito penitenciário. Nessa divisão e com a total falta de controle, não é raro ouvir de familiares de pessoas presas que cada diretor de presídio faz a sua própria lei.
Não quero, aqui, fazer elogios à Lei de Execução Penal brasileira, piorada pelo “pacote anticrime” de Moro e Bolsonaro. Mas, junto a um esforço pelo desencarceramento, a PEC pode vir no sentido de conferir à União maior controle para que as mínimas garantias cidadãs previstas na LEP sejam efetivamente colocadas em prática nos presídios. A ampliação do auxílio estatal aos presos e seus familiares por meio da União, igualmente, pode ajudar a romper esse ciclo que joga, todos os dias, uma massa de pessoas comuns no colo das facções criminosas.
A questão policial: uma sociedade refém da PM
Por fim, chegamos a outro ponto central da PEC: a questão policial. Nos estados, temos duas meias-polícias: uma Polícia Militar preventiva e ostensiva e uma Polícia Civil que investiga e transforma os crimes em processos criminais através dos inquéritos. Pelas falas de Lewandowski, a PEC pretende continuar espelhando essa quebra do ciclo policial no âmbito federal, apenas ampliando o campo de atuação da PF (investigativa) e da PRF (ostensiva e preventiva).
Em primeiro lugar, é importante dizer: a quebra do monopólio das PMs estaduais sobre o policiamento ostensivo seria completamente saudável para a democracia do país. Essa exclusividade da PM foi uma anomalia criada por um Decreto da ditadura militar em 1969 para militarizar o cotidiano da sociedade civil brasileira. A vasta participação de policiais militares em atos golpistas nos últimos anos e a politização das fileiras policiais têm relação direta com o inchaço que a PM passou nas décadas seguintes a essa mudança na legislação, como já falei em outros artigos.
A questão é que essa quebra de exclusividade deveria ser feita em um processo mais amplo de desconcentração do poder policial no país. Mesmo com caráter civil, a ideia de que a PRF venha a ser uma espécie de “Polícia Militar Federal” é temerária, sobretudo com as amostras de golpismo e violência policial dela nos últimos anos.
Se a ideia for simplesmente “anabolizar” a atual PRF, o que poderíamos esperar dela em um novo surto de autoritarismo no país? Lembremos que, em tempos de Bolsonaro, a direita chegou a cogitar proposta de unificação das polícias militares.
Nesse sentido, seria ideal que a desconcentração do poder de policiamento ostensivo se desse em dois sentidos: em direção à União, mas também aos municípios. Seria interessante que o governo incorporasse à sua PEC outras propostas de emenda à Constituição para a transformação das Guardas Municipais em Polícias Municipais, de caráter preventivo e comunitário. Isso, logicamente, aliado ao fortalecimento do SUSP, para que o ótimo Estatuto Geral das Guardas Municipais não seja mais sistematicamente desrespeitado.
Hoje, nós temos um sistema em que, embora com flutuações para baixo nos últimos anos, os policiais militares estaduais representam mais da metade do efetivo de segurança pública do país. Seus mais de 400 mil membros ultrapassam o número de militares ativos das Forças Armadas nacionais.
Soma-se a isso uma peculiaridade brasileira: apesar de estadual, a PM segue com traços centrais de subordinação ao Exército Nacional, principalmente na figura da Inspetoria Geral das Polícias Militares, na integração ao Sistema de Informações do Exército e na subordinação de sua instrução, ensino e material ao Estado-Maior do Exército. Em suma, mesmo estadualizada, há certa unidade de desígnios entre as diversas PMs do país que, não por acaso, tem sido demonstrada no campo político nos últimos anos.
Embora com mais de 1.600 agências de segurança pública espalhadas pelo país, nossa realidade é, portanto, a de uma alta concentração de poder policial nas PMs estaduais, que, até hoje, estão presas a uma unidade que se dá através de um Exército Nacional que, de décadas em décadas, sofre algum surto político de “síndrome de Poder Moderador”.
Isso desemboca em uma sociedade civil e em governos civis altamente dependentes, na área da segurança pública, de uma instituição militarizada que monopolizou as funções de policiamento cotidiano e, após anos de fortalecimento político, já começa a engolir as funções exclusivas de outras instituições policiais.
Vinda do Governo Lula e após um período (ainda inacabado) de golpismo iminente, a PEC da segurança pública deve trabalhar para diminuir essa “dependência forçada” que a sociedade civil tem de uma única instituição policial. Isso nos impõe andar sobre a corda bamba de inúmeras contradições da segurança pública que, em realidade, são mais aparentes do que concretas.
O principal desafio é enxergar que a pluralidade de instituições policiais não é um entrave para a integração nacional, assim como a municipalização de unidades de saúde nunca acabou com o SUS. Ao contrário, a pluralidade seria um bom mecanismo de fortalecimento da democracia, evitando que algumas polícias se tornem pequenos exércitos com demasiado poder político. E isso pode se amoldar perfeitamente aos desejos de integração nacional a partir da criação de um SUSP efetivo e que conte com a participação democrática e majoritária de setores da sociedade civil.
Nesse contexto, não seria nenhum obstáculo para a integração nacional proposta pelo SUSP se a PEC desconcentrasse o poder policial através do fortalecimento das Guardas Municipais. Ou possibilitasse uma maior diversidade policial na própria União que, ao invés de criar uma “mega-PRF”, poderia deixar em aberto uma futura pluralidade de polícias federais de ciclo completo organizadas a partir de aspectos temáticos e estratégicos, como polícias federais rurais, urbanas, de fronteira, ambientais, florestais, marítimas, entre outras.
O segundo desafio é a compreensão de que a criminalidade transnacional não anula o fato de que parte da criminalidade continua sendo essencialmente local. Em outras palavras, nem toda prevenção ao crime e à violência vai exigir um complexo sistema ultratecnológico de cruzamento de dados transnacionais. Nem todo crime está ligado às milícias e ao PCC. Existe, também, a violência do cotidiano, do bairro, do entorno escolar, do trajeto entre a casa e o trabalho, do celular no bolso, do troco na carteira. O SUSP também vai ter de lidar com esses problemas que são causa de boa parte da sensação de insegurança que o povo brasileiro cultiva em seu dia a dia.
E a principal maneira de mudar esse cenário é finalmente transformando o militarizado cotidiano do policiamento comum brasileiro, sempre envolto em confrontos que não reduzem os índices de violência e alimentam ainda mais medo na população, em um sistema local de policiamento comunitário voltado à prevenção e à mediação de conflitos. Novamente, criando mecanismos federais que concretizem as regulações sobre as Guardas Municipais, o SUSP pode ter papel fundamental.
Resumindo: trata-se do Governo Lula conseguir apresentar uma PEC da segurança pública que conjugue as necessidades de integração nacional para o combate à violência organizada com as necessidades democráticas de desconcentração do poder policial. Um trabalho difícil, mas se o governo conseguir (e quiser) fazê-lo, certamente vai mudar a história do nosso país.
Almir Felitte é autor do livro História da Polícia no Brasil, mestre em Direito pela Faculdade de Ribeirão Preto (USP). Atualmente é advogado e academicamente atua nos seguintes temas: sociologia do direito, instituições policiais, segurança pública, direitos humanos e militarismo.
Fonte: Ponte Jornalismo | Foto: reprodução.