Por Edison Veiga
A notícia viralizou rápido, como costuma acontecer toda vez que alguém revira as memórias póstumas de Machado de Assis: uma pesquisadora da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) descobriu um texto desconhecido do maior escritor do cânone da literatura nacional. E mais, o artigo — publicado na imprensa da época — não era uma ficção do Bruxo de Cosme Velho, mas sim um texto biográfico. E de outra figura importante para a nossa História. No caso, o segundo e último imperador do Brasil.
Machado de Assis (1839-1908) biografou D. Pedro 2º (1825-1891), eis a novidade! Mas, se o referido texto “D. Pedro II (Esboço biographico)”, publicado na edição número 10 da “O Espelho – Revista de litteratura, modas, industria e artes”, no domingo dia 6 de novembro de 1859, não tinha assinatura alguma, como foi que a autora da descoberta, a historiadora Cristiane Garcia Teixeira, cravou o achado?
Um quebra-cabeças, um trabalho detetivesco. Ela amalgamou evidências. Foi durante seu mestrado, realizado na UFSC, que a historiadora se deteve sobre a revista. De início, chamou-lhe a atenção a primazia dos textos daquele jovem Machado na publicação — considerando os artigos assinados, é claro. “Ele era um garoto de 20 anos”, comenta ela, ao TAB. “Analisei as edições e comecei a perceber que ele era um colaborador específico que captava a maior parte da revista. Ele era o faz-tudo. Das 12 páginas [de cada edição], ele publicava entre sete e 15 artigos. Em média, Machado ocupava cinco páginas”.
Teixeira notou, ainda, que os textos machadianos costumavam ocupar os mesmos espaços a cada número da publicação. Só a partir daí a pesquisadora passou a observar os textos não assinados. E então, chegou ao esboço biográfico de D. Pedro. “Percebi, primeiro, que ocupava um espaço comum ao Machado, o primeiro artigo da edição. Então comecei a analisar mais a fundo.”
Foi quando ela retornou às edições anteriores e, na de número 6, de 9 de outubro de 1859, estava lá publicado um recadinho para os leitores: “brevemente encetaremos a publicação de (…) biographias (…) e o biographo é o Sr. Machado de Assis”.
Como nenhuma biografia apareceu antes da edição 10, a pesquisadora passou a acreditar que estava diante de um texto machadiano e debruçou-se sobre ele. Percebeu ali alguns indícios — ainda imaturos, é verdade — do estilo que consagraria o escritor. “Tem duas coisas que são muito dele: a primeira é a escrita em primeira pessoa; a segunda é o negaceio que ele faz muito bem. Ele diz ‘não vou escrever sobre política’, mas quando ele fala isso é porque justamente vai escrever sobre política. E na biografia, ele diz que não vai se ater a esse campo, que vai deixar para os historiadores e tal, mas é justamente assim que apresenta as informações.”
Professor de Teoria e História Literária na Universidade de Princeton (EUA), o sociólogo Pedro Meira Monteiro acredita que é preciso um pouco de cautela antes de dar como certa a descoberta. “Sinceramente, acho muito difícil saber se é de fato do Machado, embora os argumentos da Cristiane Garcia Teixeira me pareçam bem alinhavados. Mas ela mesma é cuidadosa e assume que é uma possibilidade, não uma certeza”, afirma ao TAB. “Eu não vejo, tão claramente quanto a pesquisadora, o ‘negaceio’ machadiano, mas, como lhe disse, acho que os argumentos dela são sólidos. É uma possibilidade, portanto.”
“Como ela mesma argumenta, a atribuição de autoria para esses textos é controversa. Era comum àquela altura esse tipo de texto não assinado. A meu ver há um complicador: se de fato o texto é de Machado de Assis, ele no entanto é de um Machado muito jovem, cujo estilo ainda não está sequer cristalizado. Isso não desmerece a hipótese e a argumentação da historiadora, mas adiciona uma camada de dúvida”, complementa o professor.
Monteiro ainda ressalta que não se trata de nenhuma obra-prima. “Talvez valha a pena lembrar que tampouco é um texto impressionante. Ele tem valor porque é testemunho de uma certa prática de imprensa, mas não chega a constituir uma peça literária interessante. É muito convencional, o que não é surpreendente”, comenta ele.
Checagens
Pesquisador independente, o publicitário e bancário Felipe Rissato já descobriu mais de uma dezena de textos até então desconhecidos de Machado de Assis. Apenas um deles, contudo, não tinha a assinatura do escritor. Trata-se da crônica “Lembranças de Minha Mãe”, publicada pela “Revista Luso-Brasileira” em 1860.
Para confirmar a autoria, Rissato conta ao TAB que “cruzou as referências”. O que primeiro chamou a atenção é que o nome do escritor constava do expediente da publicação sem que houvesse registro de qualquer material assinado por ele. Então, ele buscou evidências biográficas. Na crônica, o autor afirma que perdeu a mãe aos 9 anos — o que bate com a história de Machado.
“No texto, o ele diz que quando era jovem corria atrás da borboleta azul. Os primeiros livros de Machado [Crisálidas, de 1864, e Falenas, de 1870] têm referências às borboletas. Além disso, em uma de suas principais obras, ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’ [de 1881], o personagem-título uma hora sai para o jardim e diz que é atacado por uma borboleta preta, e reclama de ela não ser azul. Mais tarde, em 1892, em crônica publicada pela ‘Gazeta de Notícias’, Machado afirma que tem muita afeição por borboletas”, enumera Rissato.
Não só. O pesquisador encontrou ainda outro elemento: quatro meses antes, a revista “Marmota” havia publicado um trecho de uma peça chamada “Odisseia dos Vinte Anos”. “Determinada fala de um dos personagens é basicamente um trecho dessa crônica, glosado”, acrescenta Rissato. O texto não era assinado por Machado; em um índice publicado pela revista, listando as colaborações do mês, há a indicação de autoria.
Pesquisadora do Museu Imperial de Petrópolis, a historiadora Alessandra Bettencourt Figueiredo Fraguas explica ao TAB que, para atestar a autenticidade de um documento não assinado, os historiadores precisam se deter às características extrínsecas e intrínsecas dos mesmos.
“Por análise extrínseca, entendemos os caracteres externos, como os selos e as chancelas, os monogramas, os carimbos, o tipo e ou a marca do papel, logomarcas”, detalha. “Já as intrínsecas dizem respeito ao conteúdo, ao teor do documento.”
“Neste caso, analisamos características como a caligrafia, o traço da letra, por exemplo. Quando se estuda um tema ou uma personagem por muito tempo, esse tipo de identificação se torna mais fácil. Ou seja, o pesquisador cria uma certa familiaridade não só com o traço da letra, mas também começa a identificar termos ou expressões recorrentemente empregados, formas de iniciar e assinar um documento, uma carta, por exemplo”, ressalta.
Essa checagem, portanto, é um trabalho árduo e que varia caso a caso, conforme os elementos de cada texto. Autor de biografias de personagens do Brasil imperial, o pesquisador e escritor Paulo Rezzutti revela ao TAB que teve muita dificuldade para fazer essas interpretações caligráficas quando escrevia “D. Pedro: A História Não Contada”, sobre o primeiro imperador do país. “A letra dele e do seu secretário, Francisco Gomes da Silva, o Chalaça [1791-1852], são muito semelhantes. Tem horas que, se você estiver desatento, você confunde um com o outro”, diz. “É preciso prestar atenção na forma de tratamento e na forma como o assunto em questão está sendo tratado, uma vez que algumas cartas simplesmente não eram assinadas. Deu bastante trabalho.”
Problema semelhante ocorreu quando ele se deparou com as cartas inéditas — muitas com conteúdo erótico — que o dom Dom Pedro 1º (1798-1834) enviou à sua amante, marquesa de Santos, Domitila de Castro (1797-1867). Quando preparava o livro “Titília e o Demonão: Cartas Inéditas de Dom Pedro 1º à Marquesa de Santos”, precisou organizá-los cronologicamente. “Eram assinados, mas não datados. E tive todo um trabalho para conseguir datá-los usando como base os assuntos e o modo como as cartas estavam assinadas, uma vez que o imperador mudou o modo de tratá-la e de assinar ao longo do relacionamento deles.”
Fake news também aparecem rotineiramente no trabalho desses pesquisadores, é claro. A historiadora Fraguas cita o caso de uma suposta carta escrita pela princesa Isabel (1846-1921) em 11 de agosto de 1889. “Este documento apresenta muitas características que nos permitem identificá-lo como apócrifo, falso, duvidoso. Apesar de assinado, e da caligrafia, numa boa tentativa de falsificação, ser bastante parecida, o primeiro elemento a despertar a dúvida sobre a autenticidade é a assinatura: além do tom mais informal utilizado no fechamento da carta, que não identificamos em outras correspondências do gênero escritas pela princesa Isabel”, explica.
A carta se encerra com um “Muito de coração” seguido por simplesmente “Isabel”. “É consenso que ela assinaria ‘Isabel, Condessa D’Eu’, e nunca apenas ‘Isabel'”, diz a historiadora.
“Outro aspecto fundamental sobre esta carta é o próprio conteúdo”, ressalta. Um dos trechos diz: “Quero agora me dedicar a libertar as mulheres dos grilhões do cativeiro doméstico, e isto será possível através do Sufrágio Feminino!”. “Os estudiosos da trajetória da princesa Isabel sabem que este tipo de questão não estava no ‘horizonte de expectativa’ dela”, contextualiza Fraguas.
Nem sempre há respostas definitivas. Há uma suposta carta escrita por Dom Pedro 2º ao cientista Louis Pasteur (1822-1895), por exemplo, sobre a qual dificilmente se chegará a um veredito. “Particularmente, gostaria muito que fosse verdadeira, já que é verossímil”, aponta a pesquisadora. “Ou seja, embora eu acredite que não tenha de fato existido esta carta, já que não consegui localizar o documento original, o conteúdo transcrito no jornal [Le Paris, em 20 de novembro de 1889] se coaduna, em boa medida, com o pensamento de D. Pedro 2º expresso em outros documentos.”
Fonte: UOL – TAB.