Por Cândido Grzybowski
Estamos diante de uma possibilidade histórica real, no Brasil, de renovação democrática. Mas os desafios e obstáculos são muitos. Sabemos que o Governo Lula e sua equipe ministerial, apesar das dificuldades que vão enfrentar no próprio aparelho do Governo Federal (Forças Armadas e desmonte institucional do governo anterior), no Congresso (que obriga à buscar a conciliação política) e a ditadura dos rentistas do mercado (com seu dogma de ajuste fiscal), vai dar o melhor de si e com determinação para reconstruir instituições públicas e políticas, até mais vigorosas que aquelas dos governos petistas passados. Só que a renovação democrática só acontecerá de fato se as cidadanias ativas também renovarem seu ativismo e suas propostas naquilo que só elas podem fazer.
Sei que imediatamente a gente é levada a pensar em “governo participativo”. Por sinal, o Lula já assinou decreto a respeito e atribuiu à Secretaria da Presidência a tarefa de coordenar tudo o que diz respeito à participação social no governo. Nos dois períodos passadas do Lula na Presidência se avançou em espaços de participação, com conselhos de participação de representantes da sociedade civil em muitas políticas – mas não nas “duras” voltadas à economia e o mercado, a raiz do atraso e dos privilégios vergonhosos – e com o ciclo de grandes conferências nacionais, para lembrar as iniciativas mais importantes. Criou entusiasmo e abriu grandes expectativas. O funcionamento foi muito desigual, com alguns bons resultados em algumas áreas, mas gerou igualmente grandes frustrações na maior parte. O melhor do processo de então foi o avanço em debates e propostas, gerando um aprendizado cidadão sobre limites e possibilidades de um governo participativo pra valer. Mas como afirmava o ministro do Governo Lula com atribuições de coordenação, no então, foi mais um processo de “consulta forte” do que de real compromisso do governo com as propostas feitas e encaminhadas pelos conselhos e conferências. Cabe acreditar que desta vez a aposta em “governo participativo” seja algo mais ousado, apesar das dificuldades.[i]
Por mais importante e necessária que seja a participação direta no governo e suas políticas, também nos espaços do Congresso, há uma ação política estratégica para a democracia de alta intensidade que só um bloco histórico de cidadanias ativas em permanente renovação pode propiciar: forjar uma potente cultura democrática como imaginário agregador e mobilizador capaz de conquistar hegemonia na sociedade civil, condição indispensável para um governo democrático participativo e transformador. É esta questão, a mais desafiante e, portanto, a mais difícil na conjuntura política e encruzilhada histórica em que estamos, que precisamos enfrentar urgente e consequentemente. E ela depende mais de nós, as cidadanias em ação, do que do Estado.
Para enfrentar um desafio assim é indispensável não minimizar o enorme avanço e suporte que conquistou na sociedade a onda fascista da direita. Descobrimos, até meio espantados, que o imaginário democrático foi posto em questão de forma sistemática. E, pior, vimos que a onda fascista em nome de “Deus, Pátria e Família”, racista, misógina, homofóbica, armamentista, miliciana e violenta conquistou corações e mentes e esgarçou a sociedade. Tudo alimentado por muito ódio e fakenews espalhados de forma sistemática nas redes sociais. Usou o governo para abrir as porteiras e “passar a boiada” sobre territórios, instituições, políticas e conquistas democráticas desde a Constituição de 1988. E por fim, mas não menos importante, se mostrou muito oportuno e útil para negócios legais e ilegais, especialmente o desmatamento e a grilagem de terras, os garimpos em terras indígenas, os grandes extrativismos minerais e do agronegócio, e o poderoso mundo do mercado dominado pelas grandes corporações econômicas e financeiras.
A cultura democrática viva e transformadora que precisamos para enfrentar tal onda é um desafiante processo coletivo de nos pautar por um modo de ver, pensar e agir democrático. Trata-se de um esforço permanente para a construção de imaginários no seio da sociedade, assentados em princípios e valores de busca do reconhecimento de direitos comuns da liberdade, igualdade, diversidade, participação e solidariedade, interligados entre si, como bases do pertencimento, cuidado, convivência e compartilhamento, sem exclusões ou discriminações, como cimento agregador e vivência no seio da sociedade civil e de se sentir parte de uma nação. A cultura democrática pode ganhar potência e renovação diante dos desafios que enfrentamos. Trata-se de priorizar isto como um processo sistemático de criar espaços e formas de diálogo entre nós, as cidadanias ativas, sobre a diversidade de situações e relações vividas, que nos motivam a nos organizar e lutar, sempre em busca por direitos negados. O saber e o imaginário coletivo desta prática de trocas de vivências, experiências, lutas e reflexões, integrado organicamente, é a base para um pensamento político estratégico do que é e como fazer democracia ecossocial transformadora e disputar hegemonia na sociedade civil. Cultura democrática não é um modelo acabado de sociedade, mas um modo de fazer e uma orientação em busca do possível e do melhor para a maioria e, num certo sentido, para todo mundo. Sempre baseado no poder instituinte e constituinte da cidadania. Por isto, cultura democrática é um processo de empoderamento de nós mesmos que, a partir de nossas lutas, abraçamos a democracia como processo transformador por mais justiça ecossocial.
Conquistar hegemonia democrática é trazer ao centro do viver um modo de pensar e fazer a política baseado na sociedade civil, definindo que Estado/poder e que Economia/mercado precisamos. Numa sociedade de classes, com suas múltiplas formas de exploração, dominação e exclusão, é um processo contraditório de luta política, permeado pelas relações, estruturas e situações sociais e históricas dadas, com extremas injustiças ecossociais, onde os princípios e valores democráticos apontados acima estão longe de serem compartidos.
Não podemos confundir a última vitória eleitoral do bloco de forças em torno a Lula como resultado de uma hegemonia política democrática. O maior erro na conjuntura atual é menosprezar a onda fascista e de ódio que se implantou entre nós. Criar uma poderosa e transformadora cultura democrática como hegemonia tem como fundamento consentimento ativo majoritário, não apenas eleitoral. Isto supõe um permanente movimento de aprendizado em trocas e em disputas na sociedade de como se ver e perceber a si e todas e todos os demais, os seres humanos e não humanos vivos e da própria base de todas as formas de vida, a natureza, de como pertencer e viver em coletividade compartida, territorial, nacional, regional, mundial, num Planeta Terra único. A hegemonia política de uma visão e cultura democrática será consequente e virtuosa se for capaz de moldar e cobrar do poder as políticas promotores de direitos iguais na diversidade social e, também, formular e executar consistentes políticas para uma economia sustentável, baseada na preservação da integridade dos sistemas ecológicos e biomas naturais, para produzir os bens e serviços que precisamos.
Colocado assim o desafio político, a cultura democrática ecossocial precisa se renovar de forma permanente pela ação das cidadanias ativas, por práticas culturais e políticas no nosso seio de sociedade civil, que qualifiquem uma visão democrática estratégica, onde cabe a valorização da igualdade na diversidade, o combate às discriminações de qualquer tipo e as violências praticadas, a defesa dos comuns naturais e dos produzidos. Isto implica em pensarmos estrategicamente a comunicação e a informação ampla e responsável, contra as fakenews. A disputa de hegemonia é uma tarefa essencialmente política a ser feita no seio da sociedade civil. Será mais potente quanto mais procurarmos os elos comuns da vibrante diversidade que existe entre nós mesmos, cidadanias em ação.
[i] Cabe lembrar aqui a reflexão sobre participação e governo participativo feitas por Olívio Dutra, do PT, que como prefeito de Porto Alegre introduziu o “orçamento participativo”, uma experiência mais direta e consequente de participação, com repercussão nacional e mundial. No pequeno período como Ministro das cidades no primeiro Governo Lula, Dutra não conseguiu avançar a respeito. Ver entrevista de Olívio Dutra a Glauco Faria, para o Brasil de Fato. Acessado no blog Combate Racismo Ambiental, de 6 de fevereiro de 2023.