ALCÂNTARA (MA)

Desde que foi fundada, em 1990, a associação quilombola Itamatatiua, na cidade maranhense de Alcântara, nunca teve um homem como presidente. Ali liderança é coisa de mulher.

Décadas atrás, a norma era ainda mais rígida. Membros do sexo masculino nem sequer podiam participar da associação, muito menos assumir postos como suplente e fiscal, funções que hoje lhes são permitidas.

“A maior força daqui é a das mulheres. Nem sei como os homens se sentem”, afirma rindo Maria Gorete de Jesus, 53. “E daqui para frente tudo vai ser mulher. Delegada, juíza, tudo.”

É difícil falar de Itamatatiua sem mencionar os marcadores de gênero que rodeiam o povoado. Seja por sua troca de valores da hegemonia patriarcal ou pelas atribuições cotidianas de cada sexo, a comunidade chama a atenção.

 

 

A questão, no entanto, é tratada com naturalidade pela presidente da associação, Aleciane de Jesus, 33. “Aqui é tudo união, conjunto, diálogo. Entramos em consenso”, afirma, enfatizando que os homens contribuem com a comunidade “de outras formas”.

Entre as atividades executadas por eles estão a queima de argila para a produção dos artesanatos, a agricultura e a roça de coivara.

Segundo Aleciane, a decisão de excluir o sexo masculino da presidência da associação veio por dois motivos. Primeiro, porque seria um respeito à história da federação, criada por mulheres. Depois, porque elas são a maioria do coletivo.

Não existe nenhum artigo no estatuto de Itamatatiua que barre homens de assumir o poder. Ainda assim, a regra, surgida em reuniões e passada de boca em boca, nunca foi descumprida.

Durante a formação da associação, os homens mostravam desinteresse, segundo Neide de Jesus, 74, uma das fundadoras do órgão. “A gente convidou, mas eles não quiseram participar.”

Como foram, então, somente mulheres que se organizaram para criar um coletivo que defendesse os direitos da comunidade e pleiteasse ações estatais, elas optaram por centrar esse poder apenas na parcela feminina do quilombo. Demorou, afirma Neide, para surgir algum homem a fim de se envolver nas decisões da entidade.

“Agora, a associação já é mista. Com o passar do tempo, os esposos foram entrando”, diz Aleciane, reforçando que, apesar disso, “os primeiros cargos” continuam sob a alçada delas.

“A gente não interpreta a comunidade como feminista, mas todos que vêm aqui pensam dessa forma”, afirma a presidente. “Para a gente, é normal.”

Já Heloisa Inês Jesus, 69, afirma que os homens da região não gostam de serem excluídos do comando. “Mas é isso. Não adianta”, diz ela, aos risos. “As mulheres têm um cuidado maior com as coisas.”

mulher olha paisagem de sua janela
Heloísa Inês de Jesus, 69, no centro de Produção Cerâmica Itamatatiua, em Alcântara, em maio de 2023 – Danilo Verpa/Folhapress

Nem sempre, porém, os homens de Itamatatiua ficaram de fora das decisões da comunidade. Neide conta que, o pai e o irmão dela, por exemplo, foram alguns dos nomes masculinos que se empenharam em defender o povoado, lutando por melhorias no território e sendo reconhecidos como líderes.

Com a morte do irmão, Neide ficou responsável por exercer esse papel e, anos mais tarde, criou a federação, ao lado de outras moradoras.

“Antes da associação, as mulheres não eram tão fortes como hoje”, diz a maranhense. “A gente nem sabia se era quilombola. Foi o Sérvulo Borges [considerado um dos pioneiros na luta contra a expansão da base espacial de Alcântara] que nos ajudou, com arquivos sobre a ancestralidade do território.”

Ela afirma ainda que o reconhecimento como quilombola foi um ponto crucial para a comunidade se ver como detentora de direitos e perder o medo de quem é de fora.

Na luta desde os anos de 1990 pela titulação da área, a associação de Itamatatiua fala que seu povo surgiu há cerca de três séculos, com escravizados em fuga.

Tempos depois, as terras teriam sido ocupadas por carmelitas. Daí viria a forte devoção dos moradores à santa católica Teresa de Ávila, padroeira da comunidade —em outubro, o quilombo entra em clima de festa para celebrá-la.

No caminho de acesso ao território, dois objetos ficam em destaque: a imagem da santa, numa berlinda, e um grande pote de cerâmica. Ambos símbolos refletem a cultura local.

mulheres em roda tocam tambores, em frente a um menino pequeno
Apresentação de forró de caixa no Centro de Produção Cerâmica Itamatatiua, em Alcântara, no Maranhão – Danilo Verpa/Folhapress

Além de tradição ancestral do quilombo, o artesanato é uma das principais fontes de renda da comunidade, levando desde pesquisadores curiosos até turistas entusiasmados ao Centro de Produção Cerâmica Itamatatiua.

São vendidas estátuas, máscaras, bustos, potes, xícaras, panelas e incontáveis peças moldadas à argila.

“É um processo que leva meses”, afirma Neide, detalhando os bastidores da produção. “A gente vai ao campo no verão, quando tá tudo seco, e leva homens para cavar. Bota a argila num caminhão e traz para cá.”

Fazendo de Itamatatiua um dos quilombos mais famosos do estado, as mulheres também são as únicas a produzirem os artesanatos.

 

Fonte: Folha de São Paulo.
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