CARTA DE GENEBRA EM DEFESA DOS DIREITOS QUILOMBOLAS
As Comunidades Remanescentes de Quilombos no Brasil saúdam os participantes da Conferência de Revisão de Durban, realizada entre os dias 20 e 24 de abril de 2009 em Genebra na Suíça para reafirmar o compromisso internacional com a Declaração e Programa de Ação de Durban (DDPA), conforme foi adotado na Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas realizada em Durban na África do Sul em 2001.
Na oportunidade, denunciamos junto à comunidade internacional, os ataques que vimos sofrendo sistematicamente por um forte setor da sociedade brasileira.
Somos atualmente, cerca de 5.000 Comunidades Quilombolas em todo Território Nacional, descendentes de africanos escravizados que ficaram de fora do projeto de democratizaçao do país, se organizando em sociedade autônoma e quase independente dentro da nova República.
Apenas 100 anos após a chamada “Abolição da Escravatura” no Brasil, as Comunidades Quilombolas tiveram o seu primeiro marco jurídico assegurado, em ocasião da nova Costituição Federal que traz em suas disposições transitórias o artigo 68, norma constitucional autoaplicável na garantia de direitos fundamentais coletivos, segundo a própria Constituição Brasileira. Essa norma traz a seguinte determinação: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
Passados 20 anos da nova Costituição Federal, ao invés de constatarmos uma corrida para recuperar o tempo perdido, o que vemos é um lamentável debate abordando questões irrelevantes, travando o andamentos dos processos de regularização dos Territórios Quilombolas no Brasil.
No ano de 2003, o Presidente da República Luís Inácio Lula da Silva, no uso de sua atribuição e em consonância com o DDPA, assinou o decreto 4.887/03 estabelecendo uma Política Nacional de atendimento às Comunidades Quilombolas e sobretudo, normatizando os procedimentos administrativos para o processo de regularização fundiária dos Territórios Quilombolas.
Logo vieram os ataques, haja vista que em 2004 o extinto PFL (Partido da Frente Liberal ), atual Democratas, entrou junto ao STF (Supremo Tribunal Federal), corte máxima do judiciário brasileiro, com uma ADI (Ação Direta de Incostitucionalidade) de no. 3239/04, pedindo que seja julgado inconstitucional o decreto 4.887/03.
Em 2007, o Deputado Federal Valdir Colatto (PMDB/SC) entrou com um PDL (Projeto de Decreto Legislativo) de no. 44/07 na Câmara Federal, pedindo a anulação do decreto que trata da questão quilombola. Como se não bastasse, exatamente no ano da revisão do DDPA, o Senador Lúcio Alcântara (PSDB/CE) entrou no Senado Federal com um PEC (Projeto de Emenda Constitucional) de no. 190, dessa vez não mais intervindo sobre o decreto 4.887/03, mas sobre o próprio dispositivo constitucional assegurador de um direito, o artigo 68 do ADCT (Atos das Disposições Constitucionais Transitórias) da Constituição Federal.
Todas essas iniciativas são paralelas a uma série de eventos violentos, onde as comunidades quilombolas vivem tempos de pavor, frente a frequentes casos de agressão, em suas mais diversas facetas e constantes ameaças, atos orquestrados com um forte jogo de mídia, uma verdadeira guerra fria, buscando formar a opnião pública no sentido de colocar o Movimento das Comunidades Quilombolas como grupo marginal que ameaça a paz na sociedade e o direito à propriedade. O caso virou até tema de telenovela em defesa da monocultura de eucaliptos para a produção de celulose, um dos principais casos de violação de Direitos Humanos envolvendo comunidades Quilombolas no Estado do Espírito Santo, Região Sudeste do Brasil.
Vale lembrar que os Territórios Étnicos são propriedades coletivas, necessárias à reprodução social, cultural, econômica, religiosa e ambiental do grupo, identificado à partir do critério de autodefinição, conforme rege o decreto 4.887/03 e a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho). O processo de regularização desses territórios obedece às normas de inalienabilidade, o que contraria os interesses de grupos ligados ao setor do agronegócio e outras forças econômicas, destacando-se empresas multinacionais de países ditos desenvolvidos que exploram de maneira violenta e criminosa os grupos sociais, bem como os recursos naturais no Brasil, assim como nos países em desenvolvimento de maneira geral.
Hoje o PDL 44/07, bem como o PEC 190 se encontram no Congresso Nacional para tramitação, enquanto a ADI 3.239/04 se encontra em vias de julgamento no STF. Nós acreditamos que uma vitória ou uma derrota nossa no Brasil abrirá precedente para casos parecidos de fortalecimento ou fragilização da luta desses povos em toda América Latina e no mundo. Portanto, pedimos o apoio da Comunidade Internacional, sensível às causas das chamadas minorias, numa intervenção política pedindo uma ação mais efetiva do Estado Brasileiro em todas as suas instâncias de poder, na defesa do Povo Quilombola.
Por fim, pedimos que a Comunidade Internacional faça ecoar o grito da comunidade afro-brasileira:
Pela manutenção do decreto 4.887/03 e a imediata aplicação do Artigo 68 do ADCT da Constituição Federal;
Pelo Cumprimento da Convenção 169 da OIT e dos Tratados Internacionais em defesa dos Direitos Humanos assumidos;
Pela aprovação do Estatuto da Igualdade Racial em absoluta consonância com os interesses do Povo Quilombola;
E, pela solidariedade aos grupos religiosos perseguidos no mundo inteiro, sobretudo, os de religiões de matrizes afrianas.
Na oportunidade, repudiamos aqueles que se utilizam do espaço da Conferência de Revisão de Durban, tão importante na resolução dos problemas históricos das chamadas minorias, para fazerem seus palcos de disputas, tirando o foco do debate. Repudiamos também aqueles que se utilizam de argumentos fúteis para não participar do debate, demonstrando total indisposição na busca de soluções para os problemas raciais, sociais, étnicos, religiosos e de imigração, agravados pelo fato de que parte relevante dessa população é composta por jovens e mulheres, sujeitos a toda forma de intolerâncias correlatas, afligindo historicamente os grupos menos favorecidos no mundo.
Genebra, 22 de abril de 2009.
CONAQ – Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Quilombolas.