Em debate com o Sergio Fausto, historiador português diz que a sociedade precisa de um discurso que transcenda o temor manipulado pela extrema direita.

 

Num mundo de incertezas quanto ao futuro, em que a extrema direita tem conquistado espaço em várias partes do mundo, é preciso que forças democráticas apresentem propostas que mobilizem o desejo no lugar do medo. Foi o que defendeu Rui Tavares, historiador e político português, na mesa ‘Esquerda e Direita sem Extremos’, no dia 29 de junho na programação da Feira do Livro 2024, uma realização da Associação Quatro Cinco Um.

“A gente tem de convencer as pessoas a não ter medo. Os progressistas em geral perderam essa capacidade”, disse Tavares, que está lançando, pela Tinta-da-China Brasil, selo editorial da Associação Quatro Cinco UmEsquerda e direita: guia histórico para o século XXI.

Em debate com Tavares, o cientista político Sergio Fausto, diretor da Fundação Fernando Henrique Cardoso, ressaltou que nunca vivemos um momento histórico de incerteza tão radical quanto ao futuro – “a começar pela própria sobrevivência da espécie humana”. “Em relação a essas incertezas, nem a esquerda nem a direita têm projetos.”

Quando a esquerda perdeu a capacidade de apontar um futuro, também perdeu a capacidade de atração política, argumentou. Já a direita, na visão do cientista político, inventou uma resposta, “tipicamente reacionária”. “Como é possível recuperar essa dupla dinâmica?”, questionou. “Essa resposta eu transfiro para o Rui porque é muito complicada”, brincou Fausto, provocando risos na plateia.

O historiador regrediu até o século 19 para explicar que, na dinâmica entre revolucionários e reacionários, ou progressistas e conservadores, o roteiro da mudança era mais ou menos conhecido, com a ampliação de direitos, por exemplo. Hoje, num contexto em que as mudanças incluem a Inteligência Artificial e a emergência climática, é preciso protagonistas que apontem caminhos.

Polarização assimétrica

Segundo Tavares, na Europa, uma parte da visão racista da extrema direita teme que outros grupos sejam “tão egoístas e vingativos quanto eles”, e esse medo é assimilado por parte da população. “Temos que ter uma esquerda que transporte consigo a ideia do desejo. A principal coisa que contraria o medo é o desejo. A sociedade precisa de um discurso que transcenda o medo.”

O historiador português, que contou ter ficado entre 2010 e 2015 sem vir ao Brasil, disse ter encontrado um país “totalmente diferente” do ponto de vista da polarização política. “O Brasil vivia uma outra fase, de uma polarização assimétrica. Um polo claramente não se importava de colocar em risco o estado de direito e um outro que pensava, corretamente, que a maneira de ultrapassar isso era fazer uma aliança com o centro”, disse, citando como exemplo a chapa entre o presidente Lula e seu ex-rival Geraldo Alckmin.

Tavares também ressaltou a importância de superar posições que não deveriam ser contrárias dentro da própria esquerda, como as que opõem grupos que defendem uma política identitária e os que querem priorizar a luta de classes.

“A questão da identidade nunca pode ser uma questão menor. A esquerda que fala isso está errada. O que a extrema direita faz é encarar tudo que tem a ver com memória e passado e estruturar com sentimentos de culpa”, disse. “Não podemos fazer um debate só combatendo o que a direita faz.”

Sergio Fausto lembrou de outros temas mobilizados pela extrema direita nos últimos anos no país, como uma visão mais fundamentalista do cristianismo – “um dos gatilhos do pânico moral” –, segurança pública e as próprias pautas identitárias. O cientista político, no entanto, disse ver uma ponta de esperança na reação ao projeto de lei que tentou equiparar as penas para quem fizer aborto ao homicídio.

“Houve uma reação da sociedade brasileira que mobilizou inclusive setores evangélicos, colocou um freio e o Projeto de Lei teve que ser colocado de escanteio. Isso mostra que são valores em disputa e é possível para o campo progressista entrar nessa briga e estabelecer alianças que permitam virar um pouco a maré.”

 

Rui Tavares

Rui Tavares nasceu em Lisboa, em 1972. Licenciou-se em História e História de Arte pela Universidade Nova de Lisboa. É Doutor em História pela École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, investigador associado no Centro de Estudos Internacionais do ISCTE/IUL e membro integrado do Instituto de Filosofia da Universidade Nova de Lisboa.

Para além da sua atividade como historiador, foi cronista do jornal Público durante mais de uma década, e é ensaísta e escritor. Publicou vários livros, sobretudo de não-ficção, sobre temas históricos ou políticos, incluindo O Pequeno Livro do Grande Terramoto (2005), A Ironia do Projeto Europeu (2012), Esquerda e Direita: Guia Histórico para o Século XXI (2015), O Censor Iluminado (2018), as coleções Portugal, uma restrospectiva (4 volumes, 2022) e Agora, agora e mais agora: seis memórias do último milénio (7 volumes, 2023) — que surgiu originalmente em formato podcast, em colaboração com o jornal Público.

 

Fonte: Quatro Cinco Um | Foto: Filipe Redondo.

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