O Supremo Tribunal Federal (STF) pode decidir ou começar a decidir o futuro das demarcações das Terras Indígenas (TIs) no mesmo mês que a Constituição completa 32 anos. Está previsto, para o próximo dia 28, o julgamento da reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra a demarcação da TI Ibirama-Laklanõ. Como o STF reconheceu a “repercussão geral” do caso, ele vai fixar orientações gerais para todas as demarcações (saiba mais no quadro abaixo). A Constituição fez aniversário no dia 5 de outubro e é considerada o maior marco na história do país da garantia dos direitos indígenas, em especial dos direitos territoriais.

Também no dia 28, o STF discutirá se mantém ou não a medida cautelar deferida pelo ministro Edson Fachin, em maio, que suspendeu os efeitos do Parecer 001/2017, instrumento usado para institucionalizar o “marco temporal” como norma dos procedimentos administrativos de demarcação. Pelo menos 17 terras indígenas tiveram seus processos de demarcação devolvidos da Casa Civil e do Ministério da Justiça para a Fundação Nacional do Índio (Funai) com base no parecer 001 (saiba mais). A medida cautelar é um procedimento usado pelo Judiciário para prevenir, conservar ou defender direitos.

Também no âmbito do processo de repercussão geral, do qual é relator, Fachin suspendeu todos processos judiciais que poderiam resultar em despejos ou na anulação de demarcações de terras indígenas até o final da pandemia de covid-19.

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) lançou uma nota em defesa dos direitos indígenas em função do julgamento. “Obviamente que os nossos povos anseiam a reafirmação do Indigenato, o direito originário, congênito sobre as nossas terras e territórios, contra a tese do marco temporal defendido pela bancada ruralista e forças contrárias aos nossos direitos fundamentais”, afirma a nota da Apib.

Para comemorar o aniversário de 32 anos da Constituição, que garantiu o direito dos povos indígenas às suas terras, e alertar sobre a importância do julgamento, a Apib e organizações parceiras, como o ISA, estão lançando ainda uma campanha em defesa desses direitos e das demarcações.

Entenda porque o caso de repercussão geral no STF pode definir o futuro das terras indígenas

Em 2019, o STF reconheceu a repercussão geral do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, caso que discute uma reintegração de posse movida contra o povo Xokleng, em Santa Catarina. Isso significa que a decisão tomada nesse julgamento, marcado para iniciar no dia 28 de outubro, repercutirá sobre todos os povos indígenas do Brasil. A Suprema Corte poderá, assim, dar uma solução definitiva aos conflitos envolvendo terras indígenas no país. Embora a data do julgamento esteja marcada, isso não quer dizer que ele será finalizado nesse mesmo dia: algum ministro pode pedir vistas do processo ou a presidência do STF pode alterar sua pauta por outros motivos.

Entenda o que se discutirá nesse julgamento e o que está em jogo.

Do que trata o RE 1.017.365?

O Recurso Extraordinário com repercussão geral (RE-RG) 1.017.365, que tramita no STF, é um pedido de reintegração de posse movido pelo Instituto do Meio a Ambiente de Santa Catarina (IMA) contra a Fundação Nacional do Índio (Funai) e indígenas do povo Xokleng, envolvendo uma área reivindicada – e já identificada – como parte de seu território tradicional.

A terra em disputa é parte do território Ibirama-Laklanõ, que foi reduzido ao longo do século XX. Os indígenas nunca deixaram de reivindicar a área, que foi identificada pelos estudos antropológicos da Funai e declarada pelo Ministério da Justiça como parte da sua terra tradicional.

Por que esse julgamento é central para o futuro dos povos indígenas no Brasil?
Em decisão publicada no dia 11 de abril de 2019, o plenário do STF reconheceu por unanimidade a repercussão geral do julgamento do RE 1.017.365. Isso significa que o que for julgado nesse caso servirá para fixar uma tese de referência a todos os casos envolvendo terras indígenas, em todas as instâncias do judiciário.

Há muitos casos de demarcação de terras e disputas possessórias sobre terras tradicionais que se encontram, atualmente, judicializados. Também há muitas medidas legislativas que visam retirar ou relativizar os direitos constitucionais dos povos indígenas. Ao admitir a repercussão geral, o STF reconhece, também, que há necessidade de uma definição sobre o tema.

Quando ocorrerá o julgamento?

O julgamento foi colocado na pauta do STF do dia 28 de outubro de 2020 pelo novo presidente da Corte, o ministro Luiz Fux. Ele ocorrerá de forma telepresencial, ou seja, por meio de um sistema de votação virtual, por vídeo, que substituiu sessões presenciais em função da pandemia da covid-19. As sustentações orais também ocorrerão telepresencialmente.

As partes devem se manifestar em até 15 minutos cada. Além delas, os amici curiae ou “amigos da corte”, terão, ao todo, 30 minutos para sustentação oral – tempo que deverá ser dividido entre aqueles que tiverem interesse em se manifestar.

O que está em jogo?

No limite, o que está em jogo é o reconhecimento ou a negação do direito mais fundamental aos povos indígenas: o direito à terra. Há, em síntese, duas teses principais que se encontram atualmente em disputa: de um lado, a chamada “teoria do indigenato”, uma tradição legislativa que vem desde o período colonial e que reconhece o direito dos povos indígenas sobre suas terras como um direito originário – ou seja, anterior ao próprio Estado. A Constituição Federal de 1988 segue essa tradição e garante aos indígenas “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.

Do outro lado, há uma proposta mais restritiva, que pretende limitar os direitos dos povos indígenas às suas terras ao reinterpretar a Constituição com base na tese do chamado “marco temporal”. Há ainda a possibilidade de reavaliação das chamadas “salvaguardas institucionais”, conhecidas como “condicionantes”, fixadas, em 2009, no julgamento do caso Raposa Serra do Sol e que igualmente restringem a posse e o uso fruto exclusivos dos povos indígenas sobre suas terras.

O que é marco temporal?

O marco temporal é uma tese que busca restringir dos direitos constitucionais dos povos indígenas. Nessa interpretação, defendida por ruralistas e setores interessados na exploração das terras tradicionais, os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem sob sua posse no dia 5 de outubro de 1988, ou que, naquela data, estivessem sob disputa física ou judicial comprovada.

Na avaliação de indigenistas, juristas, lideranças indígenas e do Ministério Público Federal (MPF), essa é uma tese perversa, pois legaliza e legitima as violências a que os povos foram submetidos até a promulgação da Constituição de 1988, em especial durante a Ditadura Militar.
Além disso, essa posição ignora o fato de que, até 1988, os povos indígenas eram tutelados pelo Estado e não tinham autonomia para lutar, judicialmente, por seus direitos. Por tudo isso, os povos indígenas vêm dizendo, em manifestações e mobilizações: “Nossa história não começa em 1988”.

Que consequências esse julgamento pode ter para os povos indígenas?

Caso o STF reafirme o caráter originário dos direitos indígenas e, portanto, rechace definitivamente a tese do marco temporal, centenas de conflitos em todo o país terão o caminho aberto para sua solução, assim como dezenas de processos judiciais poderão ser imediatamente resolvidos.

As 310 terras indígenas que estão estagnadas em alguma etapa do processo de demarcação já não teriam, em tese, nenhum impedimento para que seus processos administrativos fossem concluídos.
Por outro lado, caso o STF opte pela tese anti-indígena do marco temporal, acabará por legalizar o esbulho e as violações ocorridas no passado contra os povos originários. Nesse caso, pode-se prever uma enxurrada de outras decisões anulando demarcações, com o consequente surgimento de conflitos em regiões pacificadas e o acirramento dos conflitos em áreas já deflagradas.

Esta decisão poderia incentivar, ainda, um novo processo de invasão e esbulho possessório a terras demarcadas – situação que já está em curso em várias regiões do país, especialmente na Amazônia.

Além disso,há referências de povos indígenas isolados ainda não reconhecidas pelo Estado, ou seja, ainda em estudo – um procedimento demorado, em função da política de não contato. Se o marco temporal de 1988 for aprovado, muitas terras de povos isolados não serão reconhecidas, pois sequer sabemos onde eles estão.

Há outros casos, como o do povo Kawahiva, em que a comprovação da existência desse povo isolado se deu, para o Estado brasileiro, em 1999, ou seja, muito depois de 1988. Como vai ficar a situação desses povos? Ademais, não é possível contatá-los para saber se já estavam lá em 1988.

Os povos indígenas participarão do julgamento?

O relator do caso, ministro Edson Fachin, defendeu a ampla participação de todos os setores interessados no tema, dada a importância da matéria. Tal participação se dará a partir da figura do amicus curiae – termo em latim que significa “amigo da corte” e que permite que pessoas, entidades ou órgãos com interesse e conhecimento sobre o tema contribuam subsidiando o tribunal com informações. Quase 40 amici curiae foram admitidos e estão habilitados a contribuir no processo – entre eles, muitas comunidades e organizações indígenas.

Além disso, a própria comunidade Xokleng também é parte no processo, tendo em vista que é diretamente afetada por ele. Usufruindo do direito de acesso à Justiça que foi assegurado aos povos indígenas pela Constituição de 1988, o povo Xokleng também se manifestará no julgamento.

 

Fonte: APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil.

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