Por Lola Ferreira e Flávia Bozza Martins
Melhor ano de vendas para o setor tem lucro recorde de grandes redes ao mesmo tempo em que arroz e feijão estão sumindo da mesa dos brasileiros; medo de contrair covid e pouca proteção em estabelecimentos cheios preocupam funcionárias.
Melhor ano de vendas para o setor tem lucro recorde de grandes redes ao mesmo tempo em que arroz e feijão estão sumindo da mesa dos brasileiros; medo de contrair covid e pouca proteção em estabelecimentos cheios preocupam funcionárias.
Mesmo sendo muito cedo para quantificar em nível nacional os problemas como os relatados por Norma Bonfim, dados mostram que as mulheres estão em postos de trabalho mais precarizados e atingidos pela pandemia: elas são maioria entre os trabalhadores de comércios e mercados (58%) e nas funções de apoio administrativo (62%), de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) do último trimestre de 2019.
Mesmo sendo muito cedo para quantificar em nível nacional os problemas como os relatados por Norma Bonfim, dados mostram que as mulheres estão em postos de trabalho mais precarizados e atingidos pela pandemia: elas são maioria entre os trabalhadores de comércios e mercados (58%) e nas funções de apoio administrativo (62%), de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) do último trimestre de 2019.
O livro “Donos do Mercado: Como os grandes supermercados exploram trabalhadores, fornecedores e a sociedade”, de Victor Matioli e João Peres, traz relatos e informações sobre essa precarização. Na publicação, os jornalistas expõem a dificuldade da rotina dessas mulheres, como a possibilidade de ir ao banheiro somente duas vezes ao dia e o fato de ocuparem funções consideradas “menos relevantes”, além do receio constante da exposição ao coronavírus em supermercados cheios e com pouca proteção. Matioli e Peres também analisam os relatórios do Grupo Pão de Açúcar, que mostraram que em 2018 o salário mais alto do grupo era 150 vezes maior que o salário mais baixo.
E com a pandemia, os lucros dos supermercados só aumentam, apesar da perda de postos de trabalho e renda instável para os brasileiros. No comparativo do trimestre entre setembro e novembro de 2020 com o mesmo período do ano anterior, todo o comércio (não incluindo bares e restaurantes) perdeu 10,4% dos seus postos de trabalho, o que significa cerca de 1,9 milhão de pessoas trabalhadoras no comércio desempregadas. O Grupo Pão de Açúcar teve lucro de R$ 1,59 bilhão no último trimestre de 2020, um aumento de 58,5% em relação ao mesmo período de 2019. Já o Carrefour registrou lucro de R$ 935 milhões, um aumento de 47% em relação ao último trimestre do ano anterior.
Impacto do auxílio
Além do lucro e da informação do alto fluxo de clientes, citada por Bonfim, há outro exemplo do ano dourado para os supermercados brasileiros. O índice geral de vendas, calculado pela Associação Brasileira de Supermercados (Abras) — como o custo dos 35 itens mais vendidos — disparou em 2020: os supermercados venderam 9,36% a mais do que em 2019, o maior aumento anual da categoria em 20 anos. Os números já são corrigidos pela inflação. De acordo com a Abras, o cálculo é feito em um universo de mais de 2.800 lojas. Em nota à imprensa, Márcio Milan, vice-presidente da Abras, disse que as medidas de isolamento social influenciaram os brasileiros a “mudar seus hábitos, contribuindo com o aumento do consumo dentro do lar”.
Líderes do setor e a Abras também acreditam que o auxílio emergencial foi responsável pelo pico de vendas, já que a principal linha de gastos para os beneficiários é realmente a alimentação, de acordo com o Datafolha. Na pesquisa feita pelo instituto em agosto de 2020 sobre o tema, 53% dos respondentes afirmaram que gastaram os R$ 600 do auxílio preferencialmente com alimentação. Depois, para pagar contas e despesas domésticas. Com análise por grupo, o gasto com alimentação é de 61% entre os mais pobres e de 59% entre os com menor escolaridade. A pesquisa mais recente, de dezembro, mostrou que o auxílio era a única fonte de renda para 36% dos que se inscreveram para recebê-lo.
Diante das incertezas sobre a continuação do auxílio, cresce o cenário de insegurança alimentar para mulheres pobres, principalmente as negras e indígenas, mesmo com um gasto maior do brasileiro em supermercados. Vender mais não significa que mais gente está comendo, muito menos comendo melhor.
Supermercados venderam mais durante a pandemia do que na última década.Alta de preços e insegurança financeira não impediram disparo nas vendas do setor.
“A insegurança alimentar é um problema de gênero”, avalia Ana Carolina Feldenheimer, professora do departamento de Nutrição da UERJ que atuou como consultora na elaboração de diferentes políticas relacionadas ao tema no governo federal entre 2008 e 2015. “As mulheres negras e mais pobres são as que têm mais dificuldade para garantir a alimentação da sua família e isso é uma cascata: elas têm menos chances de emprego, menos recursos financeiros e, consequentemente, terão mais dificuldade de garantir boa alimentação para a sua casa”, completa.
Num cenário de fragilidade econômica e extrema vulnerabilidade social, como a pandemia, ações para segurar a alta dos preços dos alimentos e fortalecimento de políticas como restaurantes populares deveriam ter sido priorizadas, na avaliação da pesquisadora, mas houve omissão dos governos nesse sentido. Nem mesmo a merenda escolar, assunto que já faz parte da gestão das secretarias, contou com definições rápidas durante a pandemia.
Com escolas fechadas, crianças da rede pública precisavam de um plano B para continuar a ter acesso aos alimentos e refeições oferecidas nas unidades de ensino. Mas uma ação que pudesse garantir a alimentação às crianças não foi implementada em âmbito federal, e cada município decidiu como fazê-lo de forma individual.
Alguns municípios conseguiram fazer cestas adequadas, com legumes e frutas, mas muitos compraram alimentos ultraprocessados. Ana Carolina Feldenheimer, professora do departamento de Nutrição da UERJ.
Outros municípios, em vez de cestas, distribuíram cartões para compras de alimentos. De acordo com o Guia sobre Alimentação Escolar, a medida é ineficaz, pois o valor que um aluno “custa” para o Poder Público é mais baixo (R$ 0,36 por dia letivo), já que as compras são feitas em larga escala. A transferência de um valor próximo a este às crianças, individualmente, não supre a necessidade nem garante a alimentação saudável daquelas que estão em famílias sem outras fontes de renda.
Reflexos
O problema exposto, claro, é visto também por profissionais que atuam diretamente na saúde pública ou comunitária. Clarice Miranda, nutricionista que atende moradores na comunidade do Jacarezinho, zona norte do Rio de Janeiro, avalia que nos últimos seis meses houve aumento no número de atendimentos de pessoas jovens, principalmente mães, em situação de insegurança alimentar. Um caso recente, do início de fevereiro, é o de uma mulher de 21 anos que não consegue se alimentar idealmente porque deixa os alimentos para que a filha, de cerca de 1 ano, consiga fazer todas as refeições. O cardápio geralmente é macarrão. “A gente não escuta mais falarem tanto de arroz e feijão, que são a base da alimentação brasileira. De proteína, você escuta frango, ovo, mas não carne vermelha.”
A situação dessa casa é classificada pela Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF/IBGE) como insegurança alimentar moderada: “redução quantitativa de alimentos entre os adultos e/ou ruptura nos padrões de alimentação resultante da falta de alimentos entre os adultos”. Se essa redução quantitativa atingisse a filha da jovem, elas estariam em situação de insegurança alimentar grave.
A falta de arroz e feijão nos pratos, percebida por Miranda, também foi mapeada pela POF. De acordo com a pesquisa, em 15 anos houve redução de 52% na quantidade de feijão consumida anualmente por membros de famílias brasileiras. Em relação ao arroz, o índice foi de 37%.
“No nosso trabalho, hoje, estamos de mãos atadas. O máximo que podemos fazer é orientar quanto a possíveis benefícios, se a família se encaixar nos critérios. Também acionamos as redes [como chamam os contatos com instituições ligadas ao tema] para incluir as famílias nas ações em que ONGs entregam cestas básicas, por exemplo. Mas não tem muito além disso. E dentro de cada realidade, tentamos encontrar soluções, mas geralmente o cenário é muito desolador”, explica a nutricionista.
Os números da POF/IBGE, a principal pesquisa sobre orçamentos dos brasileiros, com dados atualizados em 2018, mostram que mais de 84 milhões de pessoas no Brasil vivem em insegurança alimentar, de leve a grave. Destas, 59 milhões são negras ou indígenas. E mais de 24 milhões de famílias vivem em algum nível de insegurança alimentar, sendo que cerca de 66% têm como pessoas de referência, os chamados “chefes de família”, negros ou indígenas.
Entre todas as famílias com algum nível de insegurança alimentar, 32% são comandadas por mulheres negras ou indígenas. No universo de famílias comandadas por mulheres e na situação de insegurança alimentar, as chefiadas por negras ou indígenas são 68%.
Família que tem acesso regular e permanente a alimentos de qualidade
INSEGURANÇA LEVE
Preocupação ou incerteza quanto aos alimentos no futuro; qualidade inadequada
Famílias com
chefia feminina
Famílias com
chefia masculina
14.1
milhões
8.8
milhões
2.6
milhões
3.1
milhões
Brancos
Negros ou
indígenas
4.9
milhões
5.9
milhões
8
milhões
12.7
milhões
INSEGURANÇA MODERADA
Redução de alimentos entre adultos e ruptura nos padrões de alimentação
INSEGURANÇA GRAVE
Redução de alimentos também entre crianças; falta de alimentos para todos. A fome é presente no domicílio
788
mil
714
mil
421
mil
364
mil
2
milhões
2.1
milhões
1.2
milhões
1.1
milhões
* valores arredondados
RENDA MÉDIA DAS FAMÍLIAS PER CAPITA
TOTAL POPULAÇÃO
CHEFIA NEGRA OU INDÍGENA
CHEFIA FEMININA
R$
2.500
R$ 2.403
R$ 2.234
2.000
R$ 1.699
1.500
1.000
R$ 653
R$ 650
R$ 606
500
0
INSEGURANÇA
MODERADA
SEGURANÇA
INSEGURANÇA
LEVE
INSEGURANÇA
GRAVE
FONTE PESQUISA DE ORÇAMENTOS FAMILIARES (POF/IBGE)