O texto a seguir faz parte de um conjunto de matérias sobre o marco temporal, a tese que, se aprovada, mudará o destino dos povos indígenas do Brasil. As outras duas reportagens são de autoria dos repórteres Bernardo Esteves (O futuro nas mãos do STF) e Meghie Rodrigues (Sua casa não vai ser tomada para virar terra indígena).
Por Micheliny Verunschk
Ação movida em favor do povo Xucuru remonta o marco temporal a 1934, e não a 1988
Na manhã de 20 de maio de 1998, o cacique Xicão Xukuru foi assassinado em Pesqueira, no interior de Pernambuco. Ele trabalhava pela reorganização política dos xukurus e pela retomada de sua propriedade das mãos de fazendeiros. O cacique morreu sem poder celebrar uma vitória obtida por seu povo na Corte Interamericana de Direitos Humanos, que condenou o Brasil a reconhecer o direito dos xukurus à terra. Órgão judicial autônomo, a corte representa os membros da Organização dos Estados Americanos (OEA) e tem por objetivo interpretar e aplicar a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, tratado internacional que prevê o compromisso dos países associados com o cumprimento dos direitos humanos e o respeito à liberdade.
Em 2002, foi enviada uma petição à Corte Interamericana para que analisasse o processo de demarcação das terras xucurus, iniciado em 1989 e que não havia se consolidado até então. Em 5 de fevereiro de 2018, a corte declarou a responsabilidade do Estado brasileiro pela violação de direitos dos xukurus à propriedade coletiva e à garantia de proteção judicial. Considerou que o Brasil estava agindo com tamanha morosidade a respeito da demarcação das terras que acabou por afetar a segurança jurídica do povo Xukuru em relação à propriedade. Dois anos depois dessa decisão, a corte estabeleceu uma indenização de 1 milhão de dólares (na época, 3 milhões de reais) para os xukurus.
Apesar dessa vitória, os xucurus enfrentam desde 1992 outra ação judicial, movida por um casal de fazendeiros, que coloca em questão as suas terras demarcadas. O casal pede a reintegração de posse de uma área de 300 hectares que eles dizem ter sido invadida pelos indígenas. Em 1998, a Justiça julgou procedente o pedido do casal. Em 2001, fez-se a demarcação do território Xukuru, de cerca de 28 mil hectares de extensão, incluindo a área em disputa. O caso permanece em aberto – e o julgamento pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região foi retomado em agosto passado, no Recife.
Trata-se de uma das ações judiciais mais antigas a recorrer à tese do marco temporal, segundo a qual os povos indígenas teriam direito a reivindicar suas terras a partir de uma certa data. No caso da ação do marco temporal agora em análise no Supremo Tribunal Federal – referente ao povo Xokleng, numa região a 200 km de Florianópolis –, a data é 5 de outubro de 1988, quando foi promulgada a Constituição vigente no Brasil. Só que na ação dos xukurus o marco temporal evocado nem é a Constituição de 1988, e sim a de 1934, a primeira a fixar o direito dos indígenas às suas terras tradicionais. Se vitoriosa, a ação fará valer como marco temporal, para esse caso, a data de 16 de julho de 1934.
Em 23 de agosto passado, foi aprovado pela Comissão de Agricultura e Reforma Agrária do Senado o projeto de lei do marco temporal que tramita na Câmara dos Deputados desde 2007, que também prevê que os povos originários só têm direito às terras que ocupavam na época da promulgação da Constituição de 1988. O STF, por sua vez, retomou em 30 de agosto o julgamento do caso de reintegração de posse do povo Xokleng que definirá a vigência ou não do marco temporal de 1988. A decisão servirá de parâmetro legal para ações similares.
A tese do marco temporal é o capítulo atual da longa e cruenta pilhagem das terras dos indígenas, pois ignora amplamente a história desses povos, da colonização e da luta que eles empreendem há séculos pela retomada e manutenção de suas terras. Além disso, caso seja aprovado o marco temporal de 1988, a agenda ambiental brasileira correrá sério risco, uma vez que abrirá espaço para o avanço desmedido da exploração em áreas que deveriam estar a salvo do desmatamento, da agricultura intensiva e da toxicidade decorrente do garimpo.
O município pernambucano de Pesqueira, onde vivem os xukurus, tem a sexta maior população indígena do país, com 22.728 habitantes. Em 2020, o cacique Marquinhos Xukuru, filho do cacique Xicão, elegeu-se prefeito da cidade (pelo Republicanos), com 51,6% dos votos. Foi, porém, declarado inelegível pelo Tribunal Superior Eleitoral, após ser condenado por participação em um incêndio tido como criminoso. O ministro Edson Fachin, do STF, foi o único a votar a favor da elegibilidade do candidato, ressaltando que aquele crime tinha se dado num contexto controverso de conflito étnico e que negar aos xukurus o exercício dessa candidatura seria negar também um direito fundamental.
Os xukurus habitam especificamente a serra Ororubá, na mesorregião do Agreste pernambucano, em uma área de transição com o semiárido. Vivem da agricultura, da criação de gado leiteiro e da produção da renda chamada “renascença” – artesanato de origem italiana, surgido entre os séculos XV e XVI, que se aclimatou ao sertão nordestino. Por essas atividades, entre outras, os xukurus têm grande importância na economia e na política de Pesqueira.
O povo Xukuru do Ororubá é uma das mais de dez ramificações do povo Tarairiú, grupo indígena que povoou Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Os tarairiús, também conhecidos como cariris, receberam dos colonizadores a alcunha pejorativa de tapuios. Em Introdução à Antropologia Brasileira, o etnólogo Arthur Ramos diz que, originalmente, “tapuio” indicava todo aquele que não era tupi. Segundo o historiador Pedro Puntoni, no livro A Guerra dos Bárbaros: Povos Indígenas e a Colonização do Sertão Nordeste do Brasil 1650-1720, os tapuios, por não serem falantes da língua geral, eram considerados como “os de língua travada”.
Durante muito tempo se acreditou que a única língua tapuia que havia resistido ao massacre teria sido a yathe, do povo Fulni-ô, que vive no município de Águas Belas, também em Pernambuco. No entanto, vários povos indígenas do Nordeste têm procurado revitalizar e fortalecer as suas línguas de origem. Entre eles, o povo Xukuru, que fala apenas português, mas tem em seu léxico cerca de oitocentas palavras de sua língua original.
Ao nome “tapuio” dado pelos colonizadores foi se agregando um conjunto de significados que remetiam àquele povo insubmisso e resistente. Com o tempo, “tapuio” passou a significar também aguerrido, bárbaro ou inimigo. É uma construção ideológica similar à que se aplica hoje a um habitante do Nordeste quando ele é chamado genericamente de “paraíba”, “cearense” ou “baiano”, independentemente do estado onde tenha nascido. Ao tratar os tarairiús como “gente bárbara, de corso e tragadora de carne humana, amiga de guerras e traições”, como escreveu o padre Simões de Vasconcellos, no século XVII, a Coroa Portuguesa encontrou uma justificativa, com certo verniz moral, para empreender uma campanha genocida contra os povos indígenas do interior do Nordeste, na chamada Guerra dos Bárbaros.
A guerra teve início em 1651 e se estendeu até 1720. Foram quase setenta anos de conflitos envolvendo povos indígenas e vários agentes a serviço da Coroa Portuguesa, interessada na conquista do sertão nordestino, com o objetivo de fomentar o avanço da pecuária na região.
A Coroa agiu com ferocidade, matando, prendendo e deportando os indígenas e seus líderes. As ordens de Portugal eram extremas e inequívocas, como deixa evidente uma carta enviada por Matias da Cunha, governador-geral do Brasil, ao bandeirante Domingos Jorge Velho:
Espero que não só terão todas as glórias de degolarem os bárbaros, mas a utilidade dos que aprisionarem porque, por a guerra ser justa, resolvi em Conselho de Estado, que para isso se fez, que fossem cativos todos os bárbaros que nela se aprisionassem na forma do Regimento de Sua Majestade, de 1611.
A guerra contra o Quilombo dos Palmares – situado numa região próxima (hoje parte do estado de Alagoas) e encerrada em 1695, com a prisão de Zumbi – acabou por se tornar mais conhecida e falada que a Guerra dos Bárbaros, o que levou a certo apagamento histórico da própria resistência indígena no sertão. Mas a Guerra dos Bárbaros foi o mais longo conflito bélico da história do país, superando a Revolução Farroupilha, no Rio Grande do Sul, que durou dez anos. Seus efeitos se fazem sentir ainda hoje, o que leva a pensar que qualquer ideia de pacificação é uma falsificação ideológica, como argumenta Ailton Krenak, pensador e líder indígena.
Krenak também diz que as guerras contra os povos indígenas atravessam os séculos, são um continuum, desde que seus territórios foram invadidos. Da Confederação dos Tamoios, no Rio de Janeiro do século XVI, passando pela Guerra dos Bárbaros, no século seguinte, pela Guerrilha dos Muras, na Amazônia do século XVIII, até os conflitos intermitentes dos nossos dias, nunca houve um baixar de armas, efetivo ou simbólico, no que diz respeito aos direitos dos povos originários no Brasil.
Um passar de olhos no mapa da população indígena divulgado recentemente pelo IBGE permite constatar o nível do genocídio no Brasil. A maioria das cidades brasileiras tem poucos moradores indígenas. Em quase metade dos municípios, há até dez moradores autodeclarados. Em 450 cidades, apenas um indígena. Pesqueira, com sua numerosa população Xukuru, é uma das exceções no Nordeste.
Os indígenas, além de serem expropriados de suas terras, também foram submetidos, desde a colonização, ao recrutamento forçado para as lutas de conquista, seja engrossando as fileiras bandeirantes, seja enfrentando os invasores estrangeiros, como franceses e holandeses.
Durante a Guerra do Paraguai (1865-70), o governo imperial criou um corpo de “voluntários da pátria”, composto por homens que quisessem lutar pelo Brasil. Em compensação, receberiam algumas vantagens, tais como promoções, acesso a empregos públicos e o uso de uma chapa metálica gravada com a insígnia da Coroa Imperial e a expressão “Voluntários da Pátria”, que poderiam usar mesmo depois da baixa. Na prática, o decreto serviu para o recrutamento forçado da população pobre, de opositores do governo, condenados por crimes, homens negros escravizados – e indígenas.
O “voluntariado forçado” de indígenas se utilizou de muitos expedientes, inclusive a captura direta e o aliciamento. A promessa, em nome do imperador Pedro II, de demarcação de seus territórios foi utilizada como meio de convencimento para o voluntariado. Indígenas da região do Chaco, como os kadiwéus, e indígenas do Nordeste, como os próprios xukurus e os fulni-ôs, entre outros, partilham a memória dessa promessa, caso participassem da Guerra do Paraguai: obter o direito às terras ancestrais, com a expulsão dos invasores. Ao retornarem da guerra, entretanto, esses combatentes indígenas se depararam com seus territórios desmantelados por invasões ainda mais avançadas.
Ocaso dos xukurus examinado pela Corte Internacional de Direitos Humanos explicita as violações sistemáticas contra os povos indígenas e seus territórios de origem. Também deixa clara a falência das medidas de proteção dos indígenas pelo Estado, que deveriam ser garantidas por lei, assim como seu direito à terra. Além disso, esse caso tem algo a dizer sobre a brutalidade da expropriação ainda hoje – e que remonta aos tempos do Brasil Colônia, como se viu.
A tese do marco temporal, por sua vez, fragiliza essa obrigação que o Estado brasileiro tem de assegurar a propriedade dos indígenas sobre seus territórios sagrados. Caso seja aprovado, é quase certo que abrirá uma nova frente sangrenta dessa guerra que dura séculos.
A situação é particularmente sensível na Região Amazônica. Ao olhar mais uma vez para o mapa da população indígena do IBGE, percebe-se que está ali a maior concentração de indígenas do país. A implantação do marco temporal poderá impactar drasticamente essa região, com um efeito tão devastador quanto aquele causado pela Guerra dos Bárbaros.
É escritora e historiadora. Publicou os romances O Som do Rugido da Onça e Caminhando com os Mortos (ambos pela Companhia das Letras).
Fonte: Revista Piauí.