Por Liszt Vieira
“Há apenas uma escolha na eleição do Brasil – para o país e o mundo. Um segundo mandato para Jair Bolsonaro representaria uma ameaça à ciência, à democracia e ao meio ambiente” (Revista Nature).
Ainda sob o impacto da embriaguez da vitória, já é possível perceber diversos pontos no horizonte que surgirão como questões a desafiar o Governo Lula. São muitos, mas alguns merecem destaque.
Reconstrução das instituições republicanas destruídas pelo atual Desgoverno. As instituições democráticas responsáveis pela gestão pública foram duramente atacadas, algumas inteiramente destruídas.
Restabelecimento das políticas públicas nas áreas de saúde, ciência, educação, cultura, meio ambiente etc. Isso exige recuperação das verbas públicas desviadas para esse monstro chamado orçamento secreto.
Combate decisivo ao neoliberalismo que transfere para o mercado financeiro recursos públicos que deveriam ser aplicados em projetos de desenvolvimento sustentável na área econômica, social, cultural, ambiental etc.
Eliminação da armadilha do teto de gastos que impede investimento público para o desenvolvimento do país em nome de uma ideologia retrógrada que deu errado em todo o mundo. Sem investimento estatal, não há desenvolvimento.
Isolamento da extrema direita neofascista, incluindo barrar o poder político dos pastores evangélicos comprometidos com a teologia do domínio e da “prosperidade”. Isso exige criar novos laços com os fiéis e pastores progressistas.
Recuperação imediata da imagem do Brasil no exterior mediante uma política externa independente, soberana e vinculada aos legítimos interesses do país.
Combate imediato ao desmatamento, seja legal ou ilegal, e repressão às atividades ilegais de garimpeiros, mineradores, madeireiros, pecuaristas, agricultores que recebem apoio oficial para devastação da Amazônia e outros biomas.
Combate aos preconceitos que alimentam o racismo, misoginia, homofobia.
Forçoso é reconhecer que devemos ao atual presidente informações importantes. Uma delas é que os conservadores dispostos a apoiar uma ditadura não são apenas 30%, como sempre imaginei. Podemos dizer que 40% do eleitorado apoiariam hoje uma ditadura que viria certamente combinada com um modelo econômico neoliberal.
Em seguida à eleição, os números falam mais alto. Jair Bolsonaro perdeu 1,3 milhão de votos em SP, RJ e MG em relação a 2018. Já Lula avançou 7,6 milhões nessa região em relação ao candidato do PT na última eleição. Mas agora, no segundo turno, Jair Bolsonaro reduziu a diferença em relação ao primeiro turno de 6,1 milhões para 2,1 milhões de votos. Isso exige explicação dos especialistas. O que me preocupa é compreender a motivação dos eleitores de Jair Bolsonaro.
O eleitorado de Jair Bolsonaro não se constitui apenas de empresários, militares e evangélicos. A grande maioria de seus eleitores é formada por conservadores que rejeitam, assustados, não apenas o empoderamento dos trabalhadores, mas também a reivindicação de direitos pelas mulheres, negros e homossexuais. Além disso, associam desmatamento a progresso.
Assim, no eleitorado de B. não existem apenas interesses econômicos do empresariado capitalista, interesses corporativos dos militares, ou interesses de uma grande massa de evangélicos ludibriados em sua boa-fé por pastores corruptos. A grande maioria é composta por conservadores que introjetaram os valores da sociedade patriarcal, ignorados durante muito tempo pela esquerda como assunto secundário, fora do foco da luta de classes.
Após a vitória de Lula, por margem mais apertada do que imaginávamos, a luta contra os valores conservadores da sociedade patriarcal será inadiável. Em vez de desprezar a “pauta identitária”, teremos de articular essas lutas por direitos com as lutas econômicas dos trabalhadores.
No dia seguinte ao resultado da eleição, protestos de caminhoneiros fecharam rodovias em 11 estados, inclusive a Via Dutra, que liga Rio a São Paulo, e a Rio-Santos. A Polícia Rodoviária Federal, tão ativa no dia da eleição bloqueando estradas e ruas para barrar eleitores nos lugares onde Lula era o favorito, até agora nada fez. Segundo a ex-Ministra Marina Silva, o ato dos caminhoneiros é o Capitólio na versão Bolsonaro.
Com Lula eleito, declarado vitorioso pelo TSE, reconhecido pelos presidentes da Câmara e do Senado, reconhecido imediatamente pelos presidentes dos EUA, França, Argentina, Canadá, Espanha, China e outros países, não há clima político para o golpe tantas vezes anunciado. Provavelmente, ele vai recorrer alegando fraude baseado em relatório de alguma auditoria contratada para isso. Mas o recurso vai ser negado. O que fará o candidato derrotado? Protestos políticos de caminhoneiros fechando estradas são ilegais. A categoria está dividida, o STF acabará sendo acionado e obrigando o Governo a agir. Mais um conflito institucional, de consequências imprevisíveis.
Em meus textos anteriores, critiquei vários artigos que defendiam o cenário único do golpe, dado como certo por seus autores. Trabalhei com a possibilidade de diversos cenários e considerei o golpe um cenário possível, mas improvável, por falta de apoio político/militar nacional e apoio diplomático internacional. O governo dos EUA mandou três diplomatas ao Brasil com a missão de dizer que o sistema eleitoral brasileiro é confiável e dar um recado aos militares: Nada de golpe! O Senado americano chegou a recomendar rompimento de relações diplomáticas com o Brasil em caso de golpe. Afinal, Bolsonaro apoia Donald Trump que apoia Vladimir Putin, dois inimigos de Joe Biden.
As declarações e ações anti-democráticas e neofascistas do atual presidente ajudaram muito a construir a Frente Ampla. Muitos liberais vieram apoiar Lula. O atual presidente poderia ganhar a eleição com o apoio dos liberais, se fosse um pouco menos inculto e ignorante. Com um governo desastroso e declarações a favor de golpe e ditadura, ele acabou sendo um grande cabo eleitoral de Lula.
Não teremos um governo com o programa do PT. Será um governo da frente ampla. Governos de coalizão são espaços de disputa das diferentes posições que o compõem. Há quem aposte em política social avançada e política econômica mais conservadora. Mas são novos tempos. Relembrando os versos da canção de Ivan Lins, “No novo tempo/Apesar dos perigos/Da força mais bruta/Da noite que assusta/Estamos na luta”.
Teremos muita luta pela frente. Afinal, como disse Guimarães Rosa, o que a vida quer da gente é coragem.
*Liszt Vieira é professor de sociologia aposentado da PUC-Rio. Foi deputado (PT-RJ) e Coordenador do Fórum Global da Conferência Rio 92. Autor, entre outros livros, de A democracia reage (Garamond).
Fonte: A Terra é Redonda | Foto: kendall Hopes.