A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) declarou 2022 como o primeiro ano da Década Internacional das Línguas Indígenas. A iniciativa quer, assim, valorizar um patrimônio linguístico cultural mundial.
O Brasil está entre os dez países mais multilíngues do mundo. Só no Pará, relata a repórter e editora do Projeto #Colabora, Liana Melo, são faladas 34 línguas indígenas, 18 delas do tronco Tupi. No Brasil estão vivas cerca de 180 línguas indígenas. Em Roraima existem três a quadro línguas que são faladas por apenas quatro pessoas. São línguas próximas à extinção.
Mas o Brasil também é um dos países que tem a maior população monolíngue do planeta, declarou à repórter o antropólogo Marcus Vinícius Garcia, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). “Os indígenas e as línguas indígenas vivem um drama histórico, porque a sociedade brasileira dificultou a cidadania cultural desses povos originários”, agregou.
Esse boicote vem de longa data. Em meados do século XVIII, o primeiro-ministro Marquês do Pombal decretou o português como língua oficial, quando o Tupi foi banido. Quem desobedecesse era castigado e podia até ser morto. Durante a Segunda Guerra Mundial, o presidente Getúlio Vargas deu outra investida contra línguas indígenas. A ditadura cívico-militar de 1964 proibiu a transmissão radiofônica em línguas indígenas. A Constituição de 1988 reconheceu, finalmente, o direito linguístico dos povos indígenas.
“Desconhecer os falantes e ignorá-los alimenta o processo histórico de apagamento dessas línguas”, definiu a professora Ivânia dos Santos Neves, coordenadora do Grupo de Estudos Mediações, Discurso e Sociedades Amazônicas (Gedai), da Universidade do Pará, que elaborou a pesquisa “Retratos do contemporâneo: as línguas indígenas na Amazônia paraense”.
O levantamento descobriu a existência de 13 povos isolados no Pará, o que, na análise de Liana Melo, “dificulta saber se esses indígenas falam algumas das línguas já catalogadas”. Preservar a língua é também uma forma de defender seus territórios, ameaçados, em pleno século XXI, por madeireiras, garimpeiros, gado e desmatamento.
Tramitam no Congresso Nacional projetos de lei que ferem a vida dos povos indígenas. O PL 490/2007 busca inviabilizar demarcações de terras indígenas, e o PL 191/2000 tenta libertar terras indígenas para a mineração e grandes empreendimentos. Quando em campanha, o presidente da República prometeu não demarcar sequer um hectare de terra indígenas. O que ele vem cumprindo à risca, além de dar força ao desmatamento e garimpagem em áreas indígenas.
A visibilidade das línguas indígenas
Entrevista: Ana Carla Bruno, antropóloga e linguista formada pela Universidade do Arizona, nos Estados Unidos, em 2003. É pesquisadora do Inpa desde 2004 e trabalha na Amazônia desde 1991. É professora colaboradora do Programa de Pós- Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
Penso que, esta iniciativa ou ação, mais do que uma comemoração, é um alerta para visibilizar a diversidade linguística do mundo, mas também para que atentemos para a fragilidade destas línguas, aliás, das condições de vida e existência de seus falantes. Sobretudo num contexto onde seus territórios não são respeitados e estão ameaçados; a diversidade cultural e linguística não são respeitadas e os agentes sociais falantes destas línguas são estigmatizados.
No Brasil, atualmente, são faladas entre 160 e 180 línguas indígenas de diversas famílias linguísticas, e em diferentes estágios e situações de vitalidade. Não temos um retrato da situação sociolinguística das diversas etnias do nosso país.
Algumas questões importantes que necessitaríamos compreender para entender: quais posturas e atitudes têm as diferentes gerações e os grupos em relação ao uso de suas línguas indígenas? como e onde ocorre o uso destas línguas indígenas nos espaços urbanos, quais são as crenças e percepções sobre as mesmas e como os indígenas são percebidos pelos não indígenas neste contexto?
As representações e os usos da língua portuguesa e das línguas indígenas na cidade podem variar internamente em cada grupo, de acordo com suas experiências particulares e as ideologias linguísticas que aderiram. Algumas famílias internalizaram as representações estigmatizadas da população regional não indígena a respeito de suas línguas e culturas. Para que estas línguas continuem sendo faladas, cantadas, escutadas, contem histórias, é preciso que seus falantes estejam vivos e sejam respeitados.
Ninguém abandona ou “desiste” de sua língua materna porque quer. São diversos os fatores, situações, contextos, trajetórias que levam um indivíduo “perder” sua língua. O que observamos é que, vivendo nas cidades, muitos destes indígenas frequentam escolas que desconhecem suas histórias, suas línguas e experiências. E desta forma seus corpos e suas línguas são estigmatizados até ajustarem-se a novas formas de se portar e falar, como um ritual de passagem em que o indivíduo deve atravessar a fim de mudar seu status ou sua posição social
No decorrer da história do nosso país, há uma política de estado que em muitos casos vai silenciando estas línguas. Por outro lado estamos notando uma efervescência de micropolíticas linguísticas que são acionadas pelos próprios indígenas que resistem e tentam manter suas línguas. Como no caso dos Paumari que vivem na cidade de Lábrea, no sul do Amazonas; dos Tikuna que vivem no bairro Cidade de Deus em Manaus; dos Pataxós no sul da Bahia; dos Kokama e dos Apurinã, também no Amazonas, só para citar alguns exemplos. Estas línguas são tão importantes quanto o português, o inglês ou o francês. E seguimos acreditando que elas podem e devem ser faladas para além dos espaços domésticos, mas também nos espaços acadêmicos, por que não? Mas para isso seus falantes necessitam ser respeitados.
Fonte: IHU e Amazônia Real.