Categorias e conceitos não podem ser moedas de troca, tampouco chavões no vazio ideológico da mídia brasileira.

 

Por Winnie Bueno

 

Nos muitos anos nos quais me dedico a compreender o pensamento de mulheres negras descobri que o poder de nomear as coisas é uma ferramenta importante para lutar. As categorias e conceitos cunhados pelo ativismo de mulheres negras tem uma intencionalidade específica. Lugar de Fala, Dororidade, Escrevivência, Interseccionalidade, Amefricanidade, Pacto Narcísico da Branquitude, Epistemicídio e outros conceitos não são meros chavões e não deveriam ser assim utilizados. São categorias que se prestam a descrever desdobramentos de um problema estrutural: o racismo.

 

Nos últimos meses observamos parte significativa desses termos e conceitos serem utilizados de forma aleatória e vazia, descolados de sua potencialidade inaugural. A estrutura analítica do pensamento feminista negro foi construída a partir de uma solidariedade epistêmica que propõe uma associação entre o fazer e o saber. Essas categorias e conceitos, que consideramos como palavras de luta, são ferramentas de definição para mulheres negras.

 

O histórico processo de supressão do pensamento de mulheres negras a partir das violências epistêmicas engendradas pelas lógicas hegemônicas de formulação do conhecimento foi enfrentado pelo mover-se das margens para o centro, visando moldar a teoria, conforme enunciado por bell hooks (2015). Essa estratégia permitiu a consolidação da práxis-crítica desenvolvida por mulheres negras na formação de conhecimento, uma ferramenta analítica que consiste em uma forma de compreender a sociedade de um lugar diferente de onde ela normalmente é entendida, a partir das experiências daquelas que são brutalmente atingidas pelas hierarquias do poder.

 

Fico imaginando se as nossas mais velhas estão satisfeitas do que é feito do esforço coletivo que mobilizaram para nomear nossas dores

 

Parte dos desafios que mulheres negras encontram no cotidiano são oriundos das limitações que se estabelecem a partir dos esforços que empreendem em conciliar as experiências pessoais, identidades, valores e perspectivas com os aspectos que vigoram nas lógicas da institucionalidade. Mulheres negras são muitas coisas ao mesmo tempo e precisam ser muitas coisas ao mesmo tempo para poder sobreviver. Elas se responsabilizam por si, pela comunidade, por outras mulheres negras. Elas precisam lutar para nomear suas próprias vivências e experiências e reivindicar que suas vozes sejam consideradas para descrever suas próprias vidas.

 

Não é incomum que todas as pessoas que não são mulheres negras tenham opiniões categóricas sobre o que somos e sobre como vivemos. Isso estabelece uma dinâmica onde qualquer pessoa tem autoridade para falar sobre nós menos nós mesmas. Nos processos de validação e valoração do que é tido como conhecimento isso se repete : ao falar de nossas vidas, nossas palavras valem menos do que as palavras dos outros.

 

Quando conseguimos, a duras penas, articular conceitos, categorias, chaves teóricas para nomear nossas vivências, a lógica epistemicida que vigora nas academias tenta a todo tempo invalidar o que constituímos como conhecimento. Seja por categorizações que colocam este conhecimento como inferior ou menos rigoroso do que o conhecimento produzido pela elite intelectual branca, seja pela alteração do sentido dos conceitos que elaboramos, seja por uma circulação parcial dos significados destas palavras, geralmente pela vinculação do conceito a uma visão única enunciada por uma ou outra mulher negra autorizada pela branquitude a visitar seus salões universitários e figurar como autoridade para falar em nome de todas nós.

 

As intelectuais do movimento de mulheres negras articularam conceitos e categorias para auxiliar nas lutas por direitos da população negra

 

As palavras de luta mobilizadas pelo ativismo intelectual de mulheres negras não foram formuladas com o objetivo dessas mulheres serem reconhecidas entre os brancos. As intelectuais do movimento de mulheres negras articularam conceitos e categorias para dar nome ao que experienciam e, sobretudo, para auxiliar nas lutas por direitos da população negra. Nem todo o conhecimento produzido pela população negra tem esse condão, mas no que diz respeito as categorias que eclodem de um legado de reinvindicação por emancipação e autonomia coletiva, o reconhecimento acadêmico não era um fim em si mesmo. Ele se constitui mais como um meio do que como objetivo final.

 

Ao visualizar essas categorias sendo atacadas por pessoas que sequer conhecem a trajetória de lutas dos movimentos de mulheres negras no Brasil, pessoas que portanto não conhecem a própria formação social do território em que vivem, sempre reflito sobre a trajetória de lutas daquelas que me antecederam. Fico imaginando se as nossas mais velhas estão satisfeitas do que é feito do esforço coletivo que mobilizaram em nomear nossas dores para que possamos enfrentar melhor os sistemas de dominação. Especialmente quando vejo esses conceitos sendo utilizados como forma a despotencializar as reinvindicações por vida justa e digna para a população negra, como quando por exemplo se mobiliza as categorias mobilizadas para analisar as inequidades econômicas no campo do trabalho, como a ideia de pacto narcísico da branquitude, para justificar negociatas que trocam os corpos de pessoas negras por alguns milhares de reais que financiam a boa vida de meia dúzia de pretos.

 

Nossas palavras de luta não podem ser moedas de troca, tampouco chavões no vazio ideológico da mídia brasileira.

 

Winnie Bueno é iyalorixá, Mestra em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos; Doutoranda em Sociologia na Universidade Federal do Rio Grande Do Sul (UFRGS); Fundadora da Winnieteca, projeto de de distribuição de livros para pessoas negras.

 

Fonte: Revista Gama, 1 de março de 2021.

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